quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

DUBAI

Em Dubai, nem todos os fogos são de artifício. E todos queimam ao mesmo tempo. 2016 começou. 

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

PARA CARLOS

João atira pérolas aos porcos sabendo serem pérolas.
Teresa atira pérolas aos porcos supondo serem pedras.
Raimundo atira pedras aos porcos supondo serem pérolas.
Maria atira pedras aos porcos sabendo serem pedras.

Joaquim se matou por não ter conseguido transformar pedras em pérolas.
Lili e J. Pinto Fernandes criam porcos. 

TITO E O PNEU

DIÁLOGO POP

— Cara, você sabia que o vocalista do Wallflowers é filho do Bob Dylan?
— E o que você quer dizer com isso?
— Eu quero dizer com isso que o Bob Dylan é pai do Jakob Dylan. 

EMPREENDER COM EMOÇÃO

Houve uma época em que a expressão “inteligência emocional” se espalhou mais do que o mosquito da dengue, num tempo em que este não se espalhava tanto como hoje. A tal da inteligência emocional foi um modismo. Não que o conceito estivesse errado (há séculos, sabe-se que a inteligência abarca mais do que habilidades com números), mas era apenas uma expressão marqueteira para se referir a ideias antigas, que há séculos habitam, por exemplo, o mundo da literatura. O engodo reluziu: a inteligência emocional vendeu livros, invadiu as escolas. A estratégia de dar nomes novos para coisas velhas passa, para os desavisados, a ideia de que estão antenados com o que há de mais ousado e inédito, quando estão, na verdade, revisitando (mal) velhos terrenos. Isso deu lucro.

Hoje em dia, a palavra da moda é “empreendedorismo”, que tem se espalhado mais do que o mosquito da dengue, num tempo em que este se espalha muito. O tal do empreendedorismo é um modismo. Não que o conceito esteja errado (há séculos, sabe-se que é preciso criar o novo e ter conhecimento), mas é apenas um termo marqueteiro para se referir a ideias antigas, que há séculos habitam, por exemplo, o mundo dos negócios. O engodo reluz: o empreendedorismo vende livros, invade as escolas. A estratégia de dar nomes novos para coisas velhas passa, para os desavisados, a ideia de que estão antenados com o que há de mais ousado e inédito, quando estão, na verdade, revisitando (mal) velhos terrenos. Isso dá lucro. 

APONTAMENTO 308

Amor calado faz barulho em quem o cala. 

LEITURA MÉDICA

Ontem, li uma entrevista com Kate Edgar, que trabalhou com Oliver Sacks, o qual já mencionei em alguns textos meus. Sempre que falo de Sacks, chamo a atenção para o seguinte: ele tratava seus pacientes como... gente. É o que tem faltado para muitos médicos. Eles parecem se esquecer de que diante deles há, “simplesmente”, outra pessoa.

Mas o parágrafo anterior é para dizer que o Jung, numa frase, resume o que deveria ser a postura médica: “Não é o diploma médico, mas a qualidade humana, o decisivo”. A impressão que muitos médicos têm deixado é a de que negligenciam os pacientes. Será que a leitura de profissionais como Sacks e Jung poderia sensibilizá-los? Minha premissa é ao mesmo tempo uma esperança — a de que o interesse por humanistas pudesse levá-los à qualidade humana a que se refere Jung. 

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

CEIA

Vinte e quatro de dezembro. 
Mesa farta. 
Comensais, idem. 

NO CONSULTÓRIO (5)

— Por que você parou de escrever?
— Quando eu escrevia, eu queria que as pessoas me amassem. 

NO CONSULTÓRIO (4)

— O que você acha que o ano novo trará?
— Janeiro. 

NO CONSULTÓRIO (3)

— Se eu não fosse tão inseguro, eu poderia ser uma espécie de Oscar Wilde.
— Ser uma espécie de Oscar Wilde requer coragem. 

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

CONTO 83

Maciel sempre relê “As relações perigosas”. Desde a primeira leitura, marca com chave, o sinal adotado na matemática, os trechos de que gosta. A cada releitura, novas marcações. Veio o tempo em que não sobrara nenhuma linha ou nenhum trecho sem chave. Há pouco, Maciel começou a ler o livro outra vez. Já inseriu o primeiro colchete. 

domingo, 27 de dezembro de 2015

OS FEIOS

A linda morena, de Búzios, e o namorado dela, também de lá, estão visitando a cidade. No meio da conversa, ela declara: “Patos de Minas é uma cidade de homens feios. As mulheres são bonitas, mas os homens são muito feios. Que cidade de homens feios!”. Fiquei tão desconsertado com o vaticínio dela, que estou cogitando me mudar de Patos, na tentativa de ficar bonito. 

HOLANDA PODE PAGAR SALÁRIO A CIDADÃOS

Utrecht, cidade na Holanda, e mais dezenove municípios de lá estão aventando a possibilidade de pagar salário a todos os cidadãos, estejam eles trabalhando, estejam não trabalhando. Uma das intenções, caso a proposta se efetive, é dar a oportunidade para que as pessoas possam escolher o tipo de trabalho que querem ter.

Heleen de Boer, que tem atuação política na Holanda, alega que as pessoas não vão ficar assistindo à TV se receberem dinheiro do governo. O argumento dela é bonito, humanista: “Precisamos confiar nas pessoas”. Para mais informações, clique aqui

APONTAMENTO 307

À capacidade de criar o mal, chamam de demônio. À capacidade de criar o bem, chamam de deus. O homem tem as duas capacidades em si. Se as há fora do homem, não sei. Do que sei, é que uma ida à esquina mais próxima prova que a capacidade de criar o mal tem tido mais sucesso do que a capacidade de criar o bem. 

sábado, 26 de dezembro de 2015

(DES)APONTAMENTO 47

“Belos e malditos”, gravada pelo Capital Inicial, cuja letra é do Renato Russo, é sobre o mito da taverna. 

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

PROMESSAS NOTURNAS

O céu escureceu.
A partir de agora, 
tudo aquilo que a noite promete, 
mas que a vida nunca cumpre.

Sussurros, apelos, suores... 
Mas é para casa que as pessoas voltam.
A noite é aquilo que a vida deveria ser.

Utopia feita de corpos, luzes, músicas, álcool e semitons.
Depois, silêncio espesso.
Mas não esmorecemos.
A noite há de voltar.
Voltaremos nós para suas promessas. 

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

ANÚNCIO PUBLICITÁRIO

Leia a paciência.
Leia a ciência.

Leia a calma.
Leia a alma.

Leia a escanção.
Leia a canção.

Leia o confrade.
Leia o frade.

Leia o imundo.
Leia o mundo.

Leia o ateu.
Leia o teu.

Leia a procela.
Leia a cela.

Leia o vulcão.
Leia o cão.

Leia o ardor.
Leia a dor.

Leia o café.
Leia a fé.

Leia o Chico.
Esqueça o fuxico.

Leia o oblívio.
Leia o Lívio. 

(DES)APONTAMENTO 46

Primeiro, dispensou o Rodrigo Constantino; depois, deletou os textos dele do “site”. Até a Veja tem assomos de lucidez. 

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

CARTEIRADA

O Brasil é pleno de patrões, autoproclamados paladinos da honestidade, que não assinam a carteira de trabalho dos funcionários com o valor real recebido pelos empregados. Só para constar: isso já ocorria antes de 2003. 

AT WORK

Eu me culpo quando não gosto de uma banda legal. Men at Work é show de bola. Não curto. Não me desculpo. 

MEIA-NOITE


Felicidade tem pressa 
quando não vivenciada. 
Estendamos o prazer.

Desdita é não saber
a transcendência que uma canção excita.
Somos bem-aventurados e gratos. 

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

ABERTURA

Não há janela que não me faça lembrar de ti.
Que exista janela que se abra para o mundo.
Que exista janela que se abra para nossa casa.
Fiz projeto, medi a área, comecei a assentar alvenaria.
Com janela, a parede se enche de possibilidades. 

CHIQUE

Chico é chique.
Em Patos ou em Paris.
No Rio ou em São Paulo.
Agredir não é tomar partido.
Chico é chique.
Tem mais o que criar. 

APONTAMENTO 306

Em minha vida, com os que quero bem, sou verborrágico. No que escrevo, sou contido. Aborreço os amigos; tento não aborrecer o leitor. 

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

APONTAMENTO 305

Quem volta não partiu. 

HAICAI 45

Agulhas apontam para o céu.
Estoicamente, ela as pisa.
Não há queixa nem escarcéu. 

APONTAMENTO 304

A feitura precisa estar à altura da ideia. 

HAICAI 44

Pipocam os celulares.
Mas, em feio às festas,
são poucos os lares. 

sábado, 19 de dezembro de 2015

HERÁCLITO

No limiar, esquecido de todo mistério,
refugiou-se em silêncio líquido e espesso,
mergulhando hábil nas águas do rio.
Do outro lado, acolhido pela margem,
voltou, mergulhado em todo mistério. 

"MIDNIGHT IN HARLEM"


Há momentos em que não tenho estrutura para o tamanho da beleza. Choro. Essas lágrimas são muito bem-vindas; são vislumbres de uma utopia, da possibilidade um mundo melhor, de uma beleza alcançável. Eu escutei, eu chorei, eu saí pulando, eu fiquei louco, eu urrei, eu devaneei. Nunca mais vou parar de escutar “Midnight in Harlem”.

NOSSA EXPRESSÃO SOCIAL

Baldassare Castiglione publicou, em 1528, o livro “O cortesão”, que contém regras de como o nobre deveria se comportar em público. Trata-se de um manual de etiqueta para a nobreza renascentista. Num trecho, escreve Castiglione:

“Muitos existem que pensam fazer muito, desde que copiem um grande homem em alguma coisa; e muitas vezes se apegam ao que neles é apenas um vício. Mas, tendo eu várias vezes pensado de onde vem essa graça, deixando de lado aqueles que nos astros encontraram uma regra universal, a qual me parece valer, quanto a isso, em qualquer outra, a saber: evitar ao máximo, e como um áspero e perigoso escolho, a afetação; e, talvez, para dizer uma palavra nova, usar em cada coisa uma certa sprezzatura [displicência] que oculte a arte e demonstre que o que se faz e diz é feito sem esforço e quase sem pensar. É disso, creio eu, que deriva em boa parte a graça, pois das coisas raras e bem feitas cada um sabe as dificuldades, por isso nelas a facilidade provoca grande maravilha; e, ao contrário, esforçar-se, ou, como se diz, arrepelar-se, produz suma falta de graça e faz apreciar pouco qualquer coisa, por maior que ela seja. Porém, pode-se dizer que é arte verdadeira aquela que não pareça ser arte; e em outra coisa não há que se esforçar, senão em escondê-la, porque, se é descoberta, perde todo o crédito e torna o homem pouco estimado” [1].

O conceito da “sprezzatura” sempre me instigou. A princípio, ele me chamou a atenção, sem que eu soubesse exatamente o motivo pelo qual isso ocorrera. Os anos se passaram, sem fazer com que a ideia de Castiglione deixasse de me ocorrer com muita frequência.

Nela, o escritor advoga que, em público, as atitudes do nobre devem ter aspecto espontâneo, quando, na verdade, são estudadas, treinadas. Antes de atuar no teatro social, o nobre era orientado. Uma vez em sociedade, a graciosidade e o espírito arguto e refinado pareciam ser naturais, não pareciam ter sido exercitados de antemão, como se a graça e o refinamento fossem inerentes ao nobre.

Uma das coisas que sempre me chamaram a atenção na “sprezzatura” é que, em certo sentido, ela não deixou de existir. Se por um lado Castiglione tenha escrito seu livro para uma classe social do Renascimento, por outro, a convivência social requer de nós pose e “teatro”. Quer-se passar a ideia de espontaneidade e de ausência de afetação (nem sempre com sucesso), mesmo ciente de que tal comportamento é consequência de atitude premeditada. O contexto é outro, as classes sociais são outras; a essência da “sprezzatura” é a mesma.

Outra coisa que me instiga nela é a questão de que não somente a espontaneidade tem o potencial para ser encantadora (embora, em público, eu suponha que espontaneidade absoluta seja impraticável — a não ser pelos loucos): há um encanto advindo da técnica, da prática, do treino, do estudo, do polimento. É verdade que a espontaneidade pode ser cativante, mas isso não aniquila a possibilidade que o não espontâneo tem de ser atraente.
_______________

[1] CASTIGLIONE, Baldassare, 1478-1529. O cortesão / Baldassare Catiglione. Tradução Carlos Nilson Moulin Louzada. São Paulo. Martins Fontes. 1997. Pp. 40-41. 

NANDO REIS E O SUCESSO

Há um tempão estou querendo escrever sobre o Nando Reis, em função da genuína admiração que tenho pelo trabalho dele. Já cheguei a rabiscar apontamentos sobre o trabalho do cantor e compositor em pedaços de papel. Esses apontamentos se perderam, o texto não foi escrito. Padeço de procrastinação mórbida.

É assombroso o quanto Nando Reis é capaz de fazer canções populares, com refrões e melodias grudentos, que têm uma excelência avassaladora. Ele é um criador de sucessos. Há nele um popular e apurado senso poético; tudo isso desemboca em obras-primas extremamente cantáveis.

A música popular (ou o pop, como queira) não raro é execrada por alguns, que partem do estranho princípio de que se é popular, é ruim. Admitir que há obras-primas na canção popular não é o mesmo que ser condescendente com o de ruim que esse tipo de canção produz.

Há muita coisa ruim que faz sucesso, mas isso não é o mesmo que dizer que tudo o que faz sucesso é ruim. Nando Reis é sucesso; é excelente. O que lamento não é a música popular fazer sucesso, mas não haver mais canções populares de outros mestres sendo conhecidas. 

APONTAMENTO 303

Podemos até contar os segundos, mas o que acerta os ponteiros é a vida. 

DOIS INTEIROS

Ele é pleno. 
Ela é plena. 
Fazem um
amor cheio
de plenitude. 

OFERTA

Das coisas possíveis, 
tu és meu romance. 
Das improváveis, 
meu desejo.

Das coisas do tato, 
tu és a pele sonhada. 
Das coisas do verso, 
teu é o poema concebido. 

O ARCO

LETRA DE MÚSICA 39

Todo mundo é um relicário,
mas nem todo mundo sabe
dos tesouros que tem em si.
Eu conto as gotas que caem da chuva.
Elas se tornaram tempestade,
mas eu não perdi a conta.
Eu conto os segundos para o trovão.
Eu me esqueci de estar na chuva para me molhar.

Bonito é dar certo, bonito é gostar de si.
Tu me contas de ti sem te saberes meu espelho.
A infelicidade que carregas é a que levo.
As paredes da sala não revelarão nosso segredo.
O pai que não fui quer te pegar pela mão e te guiar.
Eu nunca soube jamais o que fazer do que sou,
mas enxergo o ouro que não vislumbras em ti.
Eu vou ficar bonito como quem se ama.
Serei exemplo, pois tua beleza merece ser amada por ti. 

APONTAMENTO 302

Escrevo com uma ilusão: a de ser para algum leitor do futuro tão mágico quanto Borges é para mim. Borges mais do que me torna leve (o que já seria muito). Borges me deixa feliz, enleva-me. Não me canso de escrever sobre ele, não me canso de ler o que ele escreveu: a felicidade genuína não cansa, mas, sim, revigora o enlevo a cada releitura. 

APONTAMENTO 301

Se os livros não existissem, minha vida seria insuportável. 

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

‪#‎OCUPACBF‬ É HOJE À TARDE

O Bom Senso F.C. se compõe de jogadores e ex-jogadores de futebol. O grupo tem a intenção de propor caminhos modernos para o esporte. É claro que a Confederação Brasileira do Futebol (CBF) não o apoia. Para hoje, às 15h, está programado o #OcupaCBF, ato público que ocorrerá no Rio de Janeiro, diante da sede da entidade. Grandes nomes do esporte brasileiro estão apoiando o #OcupaCBF. Zico é um deles.

O próprio Bom Senso F.C. não descarta a possibilidade de ter um candidato à presidência da CBF, que mantém, há décadas, um modo de trabalho corrupto e antiquado. Como o modus operandi da CBF tem tentáculos nas federações e apoios dos cartolas do futebol, parece-me pouco provável que um candidato do Bom Senso vença as eleições; isso, obviamente, não é razão para que esse candidato não seja apresentado.

O Bom Senso F.C. é um alento, bem como é um alento o #OcupaCBF, que contará com a (já anunciada) cobertura da ESPN Brasil. Caso você se interesse por futebol, acompanhe a cobertura pelo canal, pois o SporTV pertence às organizações Globo, e a família Marinho é notória por não praticar jornalismo, mas interesses próprios e entretenimento imbecil e alienante travestido de trabalho jornalístico.

Gosto de futebol. Devaneio com o dia (que não virá) em que o torcedor compreendesse que é preciso tirar os calhordas da CBF do poder. Enquanto isso, que haja movimentos como o #OcupaCBF, que haja a cobrança e os protestos sugeridos pelo Bom Senso F.C. Em minha cabeça, não deixo de conceber um dia em que o torcedor boicote os estádios. Mesmo ciente de que isso não virá, fica o marcador: ‪#‎Desocupaoestádio‬. 

domingo, 13 de dezembro de 2015

APONTAMENTO 300

Desde que cumpridas algumas protocolares, bobas e chatas obrigações civilizatórias, não deixe de achar um jeito de soltar a besta que há em você. 

(DES)APONTAMENTO 45

Sou um incompetente: não tenho a menor ideia do que fazer com o que sou. 

APONTAMENTO 299

O envolvimento não garante o gostar, mas não há gostar sem envolvimento. Onde não havia gostar, pode haver, desde que haja envolvimento. De imediato, pode haver uma fagulha que leve ao desejo de convivência; pode-se sentir uma atração imediata por algo ou por alguém. Isso, todavia, ainda não é envolvimento. Além do mais, é exatamente o envolvimento que pode fazer com que a fagulha inicial não vire chama.

Por outro lado, mesmo não tendo havido tal fagulha, o envolvimento pode levar à chama, à amizade, à paixão, ao amor. É possível passar a gostar ou a amar sem que, de início, nada tenha sido sentido ou pressentido. Há um desejo de proximidade que pode ir num crescendo à medida que nos envolvemos. Temos o poder de nos envolvermos. Por vezes, ele leva a outro poder, que é o de amar. Faz todo sentido dizer: passou a amar porque se envolveu. 

PALAVRA POR PALAVRA

Lendo o livro “Essa estranha instituição chamada literatura”, que contém uma entrevista com Jacques Derrida, deparo-me, na introdução, escrita por Evando Nascimento, com o instigante trecho: “Um dia a literatura poderá desaparecer (talvez já esteja desparecendo, submersa num contexto hipermidiático e hipermercadológico), pois não passa de uma simples inscrição, um traço discursivo diferencial”. O trecho é de Nascimento.

A literatura, tal como é configurada hoje, pode acabar. O que não pode acabar é a palavra. A princípio, o enunciado é paradoxal. É que estou considerando literatura não qualquer enunciado produzido a partir da palavra. Num sentido bem amplo, se há palavra, há literatura. Assim, um texto publicitário poderia ser considerado literatura, desde que nele houvesse palavra(s).

Chamo de literatura, numa definição rápida e simples, a literatura de imaginação; levo em conta textos ficcionais, poéticos; textos “inúteis”, no sentido da gratuidade com que podem ser escritos. Em suma, textos sem função mercadológica, ainda que posteriormente o autor venha a lucrar com eles. Essa literatura talvez acabe; a habilidade ao lidar com a palavra não pode acabar.

O manejo da palavra pode levar à clareza de pensamento, à lucidez. Muitas vezes não se tem uma noção clara das coisas exatamente por não se ter a capacidade de lidar com essa coisa por intermédio da palavra. Sim, há o inefável, mas se não se acha sequer uma tentativa de se transmiti-lo, ele morre com quem passou por ele. É preciso que se tente dizer, ainda que o inefável seja o que se esteja tentando dizer. A palavra é um meio de dizer. Um meio para a compreensão, a clareza.

Não considero perigoso não haver literatura; considero perigoso não haver palavra. Ou, igualmente perigoso, haver palavra somente para alguns; mais perigoso ainda, se esses alguns tiverem pretensões de poder. É preciso buscar, não necessariamente a literatura, mas a palavra. Sem ela, é-se vítima fácil, e quem tem interesse em vitimar ou dominar não se furtará a usar a palavra como uma das ferramentas. A palavra é para todos, pois todos podem se tornar melhores e mais inteligentes com ela. 

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

SEDES

A garganta acusa o desejo pela água,
mas a sede está no corpo todo.

O boca acusa o desejo pelo beijo,
mas a sede é do corpo todo. 

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

A QUE LUTA

Em noites insones, 
ia do asfalto
às estrelas.

Em certa
madrugada, 
perdeu o sono, 
perdeu o juízo. 
Mas só depois
de perder o medo, 
achou-se. 

PRATO

APONTAMENTO 298

A vida já é cheia demais do que poderia ter sido. Capricha no que é. 

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

COMO CONQUISTAR UM CLIENTE

1
Há uns quinze anos, entrei em uma loja para comprar um equipamento de som. Já na hora do pagamento, a gerente, que eu já conhecia, inicia com o vendedor um teatrinho:
— Uai, Fulano, você tem certeza de que o preço tá certo? Tá muito barato, não?
O vendedor, já devidamente amestrado pelos empreendedores, cumpre o papel dele exigido: maneja alguns papéis, finge estar consultando tabelas; por fim, diz à gerente:
— Conferi aqui; o preço é esse mesmo.
Quase pedi aos dois que parassem com aquele teatro fajuto, pois eu levaria o equipamento de som. Além do mais, por eu já conhecer a gerente, não esperava aquela atitude vindo dela. Levei o som. Nunca mais voltei à loja.

2
Hoje pela manhã, entrei em uma mercearia para comprar café, arroz e açúcar. O arroz era de marca desconhecida por mim. Ao perguntar a um rapaz se a marca era boa, ele pergunta para uma senhora, não sei se exercendo truquezinho de vendedor:
— Mãe, lá em casa a gente usa este arroz aqui, não é?
— Não. Lá em casa eu uso marca melhor.
Eu trouxe para casa o café e o açúcar. Mesmo não tendo trazido o arroz, a mercearia ganhou um cliente. 

domingo, 6 de dezembro de 2015

APONTAMENTO 297

Quando se ama, qualquer palavra ou manifestação vinda do ser amado assume significado transcendental. O que vem do ser amado eleva, por mais banal que seja. Um “bom-dia” via celular, um doce, o simplesmente estar perto de quem tanto se quer. A voz, a pele, o som da risada, o jeito de caminhar, os gestos, os talentos. As coisas que compõem o que a pessoa é significam demais para quem contempla; diante do ser amado, pacifica-se, agita-se, sonha, perde-se; longe dele, pacifica-se, agita-se, sonha, perde-se, comprazendo-se no desassossego. Quem ama quer falar do amor que sente. Se não pode fazê-lo, quanto mais se cala, mais sente necessidade de manifestar o amor sentido. Quando conversa com alguém, quer achar um modo de falar nem que seja o nome de quem se ama, pois é sempre gostoso pronunciar o nome de quem se ama. 

VASCO NA SÉRIE B

O Vasco é grande, é maior do que qualquer cartola, mas, neste momento, tem o tamanho de seu presidente. 

APONTAMENTO 296

Nunca nutri grandes esperanças nem quanto à humanidade nem quanto aos desígnios da vida, se é que os há. Há em mim um intenso sentimento de resignação; todavia, do outro lado da moeda, um intenso desejo de rebeldia. Eu me rebelo contra, para me valer de uma expressão do Drummond, o “sistema de erros” do mundo, mesmo sem nutrir expectativas quanto à mudança de atitude na pequenez do homem. Essa minha inútil rebeldia convive com a profunda certeza de que nada vai mudar. Se mudar, será para pior. Mas sei que minha rebeldia não se calará. Ela não deixa de ser uma espécie de esperança. Inútil. Mas esperança. É paradoxal, mas é assim. Apesar de minha resignação, eu me rebelo, também numa tentativa de me sentir mais próximo de outros que já se rebelaram. Minha rebeldia é meu jeito de ter esperança, ainda que uma esperança estranha. Minha rebeldia é meu modo de não me render à insanidade. 

ZUM NO TITO




Para estas fotos do Tito, meu cachorro, decidi me valer de uma técnica chamada de “zooming”: aumenta-se o tempo de exposição, baixando-se a velocidade; a seguir, enquanto se aperta o obturador, move-se a lente, lidando com o zum dela, seja aproximando-se do assunto, seja afastando-se dele. É possível brincar bastante com a técnica. 

sábado, 5 de dezembro de 2015

"INVENCÍVEL"

Ter uma grande história em mãos pode, paradoxalmente, ser “perigoso” quando se deseja contá-la, pois, quando é contada, a produção pode ficar menor do que a história, pode não fazer jus a ela. É o que ocorreu com “O show de Truman”. O argumento do enredo é brilhante; mesmo assim, a execução dele não gerou um filme à altura.

Não é o que ocorreu com “Invencível” [Unbroken], de 2014. O roteiro, além de ter os irmãos Coen como autores, conta com o trabalho de Richard LaGravenese e William Nicholson. É baseado no livro “Unbroken: A World War II Story of Survival, Resilience, and Redemption”, de Laura Hillenbrand (a mesma autora de “Seabiscuit”). Não conheço o livro, mas, a partir dele, nasceu um grande filme.

A produção é dirigida pela Angelina Jolie. Para mim, isso foi surpresa. Eu não sabia da atuação dela como diretora. Comecei a assistir a “Invencível” nos momentos iniciais, sem saber que havia sido dirigido pela atriz. Terminado o filme, já nos créditos, é que fiquei sabendo que ela é a diretora. E que direção ela realizou!

“Invencível” narra a trajetória real do atleta Louis Zamperini. Durante a Segunda Guerra, o avião em que ele estava cai no Pacífico. Quarenta e sete dias depois, período esse passado num bote, Zamperini e outros dois sobreviventes da queda do avião são resgatados — por japoneses. O que já estava penoso para eles torna-se tortura, humilhação e desumanidade.

Como cheguei desavisado ao filme, eu o assisti pensando que se tratava de história “meramente” ficcional. Eu, que já estava gostando do que estava assistindo, mais ainda gostei quando, nas cenas finais, fiquei sabendo que a produção é inspirada na vida de Zamperini. “Invencível”, a despeito da violência que retrata, humaniza e sensibiliza, por Zemperini mostrar a força e a nobreza que o espírito humano pode ter.

APONTAMENTO 295

Ora, já que a educação é um produto, pode-se descer o cacete à vontade: um produto não sente dor. 

O PRODUTO DA EDUCAÇÃO

Para alguns empreendedores, 
educação é um produto.

Para alguns empreendedores, 
educação é um produto
em que se pode bater com cassetete.

Para alguns professores, 
educação é gente. 

APONTAMENTO 294

Se a burocracia resolvesse alguma coisa, as coisas estariam... resolvidas... 

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

CONTRA SI

Ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo. É sabido, todavia, que governos e autoridades já se valeram de determinado ato legal realizado pelo cidadão para condenar o indivíduo. Uma, digamos, inocente ida ao cinema poderia ser usada pelas autoridades como justificativa para encarceramento, sob alegação de que o sujeito, em vez de assistir ao filme, estava... hum... tramando contra o Estado. Havia ainda a ação de delatores, simpatizantes de alguma causa repressora. Pode-se, é claro, tramar algo num cinema, mas nem sempre é o caso. Contudo, qualquer gesto pode ser usado a fim de punir quando o algoz é insano.

Hoje, um celular capta áudio e vídeo. O cidadão pode produzir, numa escala bem maior do que a que existiu no passado, condenação contra si mesmo. Há uma vigilância e um desejo de punir que são bem mais perigosos do que foram outrora: essa atitude punitiva continua sendo exercida não somente por quem é considerado ou nomeado autoridade, mas, de modo bem mais vigoroso do que no passado, pelos concidadãos, que, devido à tecnologia, têm mais possibilidade de registrar ações num dispositivo eletrônico; tais ações podem ser usadas numa condenação, seja ela de ordem legal, seja ela de ordem estritamente moral.

Muito mais do que no passado, é preciso ficar atento, é preciso não confiar, é preciso tomar cuidado com o que é dito para alguém ou com o que é feito diante de alguém. Além do mais, as redes sociais fizeram boa parte das pessoas banir o limite entre o público e o privado. Nos tempos que correm, viver é produzir “provas” contra si mesmo. 

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

FOTOPOEMA 381

APONTAMENTO 293

O artista deve auscultar o coração. O seu e o dos outros. Essa auscultação implica falar menos e escutar mais. Que o artista escute, não importa se esteja auscultando os muitos tagarelas ou se, quando possível, os poucos silenciosos. 

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

AUTOAJUDA

Quando se trata do gênero autoajuda, não há como discordar da mensagem: penso que ninguém contestaria, por exemplo, o pensamento de que é preciso ter perseverança. O que torna o gênero autoajuda pobre não é nem tanto a mensagem em si, mas a obviedade. Os truísmos do discurso da autoajuda chegam a ser irritantes. Autores e palestrantes do gênero, espalhando lugares-comuns, acabam por retirar da vida uma complexidade que existe. Não há no discurso deles espaço para nuances; não há áreas sombrias, incompreendidas.

Livros e palestras de autoajuda incomodam por, de modo enviesado, afirmarem também que não se sabe interpretar um exemplo. Digamos que eu tome conhecimento da vida de uma pessoa que saiu de uma cidadezinha qualquer do interior e se deu bem, financeira e pessoalmente (sendo que esse era o objetivo dessa pessoa) numa metrópole, depois de muito cair e levantar. Ora, uma trajetória assim é exemplo eloquente. Não é necessário alguém dizer que é preciso ousar para se dar bem.

O discurso da autoajuda passa a ideia de que a fórmula do êxito foi finalmente descoberta. Cientes disso, palestrantes, valendo-se de técnicas teatrais, jogam suas “pérolas” para a multidão: “Novos tempos pedem novos paradigmas! O mundo é multifacetado. Não se vive mais hoje como se vivia há dez anos. Aquele que não se atualiza está fora do mercado! Vamos, ajam! O que vocês estão esperando? Sejam os donos das vidas de vocês!”. Como parte do “kit”, uma canção pode ser executada quando o evento está prestes a acabar. Lembro-me muito bem de um tempo em que “Friends for life (amigos para siempre)” era moeda corrente depois de palestras.

Boa parte dos discursos de autoajuda preferem ignorar que não há receita para o sucesso. Ou, dizendo com outras palavras, não há a garantia de que se determinados passos forem seguidos, o sucesso vai ser alcançado. Se, por um lado, é difícil imaginar que a inação leve a grandes êxitos, por outro, não é certo que todo aquele que age e persiste conseguirá o que almeja. Além do mais, êxito ou fracasso estão inseridos numa trama tão vasta e com tantos elementos, que não há como afirmar com exatidão o que levou alguém a fracassar ou a ter sucesso. 

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

APONTAMENTO 292

Não faria sentido viver integralmente com a preocupação quanto ao legado. Uma generosa dose de inconsequência premeditada, por mais paradoxal que isso possa soar, é necessária. Essa inconsequência premeditada, contudo, não nos livra da responsabilidade que temos com relação a nosso legado. Se a dose dessa inconsequência deve ser generosa, também generosa deve ser a preocupação com o legado. Isso vale para uma pessoa, para uma empresa, para um profissional, para a imprensa. É incrível o quanto esta não está preocupada com o legado que tem produzido. 

APONTAMENTO 291

É curioso: quando a gente assiste a um filme novamente, a trama parece se passar mais rapidamente, o enredo parece ser mais resumido e econômico. Quanto mais tempo demoramos para rever a produção, maior é essa impressão. É como se o filme tivesse sido “encurtado”. Os desdobramentos da história parecem se resolver de modo mais sucinto do que a primeira vez em que conferimos o trabalho. 

DO CÉU

Um negro muro de água 
se forma no céu. 
A alvenaria aérea rui. 
Estilhaços líquidos 
caem sobre a terra,
que suga todos eles, 
matando uma sede
ancestral e fecunda. 

APONTAMENTO 290

Já escrevi que acho a palavra "perfunctório" horrorosa; é uma das mais feias da língua portuguesa. Já "calêndula" é perfeita: não bastasse a beleza da flor a que a palavra se refere, "calêndula" é gostosa de se pronunciar.

DUO

Por ti, 
duas partes:
uma é tesão, 
a outra é ternura.
Nesse todo, 
enquanto
uma parte explode, 
a outra eclode. 

(DES)APONTAMENTOS 44

Terá a peça “Macaquinhos” entrado para os... anais do teatro brasileiro?

A HISTÓRIA POR TRÁS DA FOTO (87)

Esta foto começou a ser feita às 21h14. O tempo de exposição foi de quatro minutos e quarenta e um segundos. Logo, a foto, iniciada às 21h14, terminou às 21h18. Durante esse tempo, a câmera registrou o movimento das nuvens.

A intenção inicial não era captar movimento de nuvens, mas, sim, de estrelas, que comporiam o cenário de fundo para esta árvore, que acho belíssima. Contudo, havia luar, a noite estava clara. De acordo com um calendário lunar que consultei via internet, a Lua estaria numa fase em que não estaria visível.

Não foi o que ocorreu. Como havia luar, uma exposição muito longa, o que era a intenção inicial, para se produzir o facho das estrelas, faria com que houvesse luz demais, com que a imagem ficasse muito clara. Ainda assim, fui experimentando diferentes ajustes, diferentes exposições, até o ponto em que o movimento nas nuvens fosse registrado. 

ALQUIMIA

Tens um encantamento.
A magia que tens fascina
por seres quem és.
Tu existes.
Existindo,
tu me encantas.
Quem me dera
ser mágico,
quem me dera
coser tramas,
cozer sortilégios,
misturar poções
numa química
que te trouxesse.
Tuas mágicas me incitam.
Excitado, anseio
por feitiço que te traga. 

(DES)APONTAMENTO 43

Quando se expressa, a inteligência pode, às vezes, ser chata. Quando se expressa, a imbecilidade sempre é. 

VERSOS POBRES

Charlie Sheen revelou que pessoas 
extorquiram grana dele para 
que não divulgassem 
que ele tem aids.

Em Governador Valadares, 
houve comerciante que aumentou 
o valor da água mineral 
depois da tragédia no Rio Doce.

Um problema pessoal, 
uma tragédia causada por uma empresa ou 
a educação pública propalada pelos 
chamados empreendedores 
como um produto.

Você lucra com o quê? 

sábado, 14 de novembro de 2015

EM CAMPO

Revoada de quero-queros no jogo entre Vitória e Ceará, pela série B do brasileiro. O futebol ainda tem beleza. 

É PATOS OU...

Encaradas na perspectiva da passagem do tempo, as coisas podem vir a soar de modo diferente. Nessa perspectiva, o que era risível pode se tornar, na falta de adjetivo melhor, estranho. Dito com outras palavras: o contexto pode mudar o sentido do que foi dito. Políticos locais (sou de Patos de Minas), em arroubos ufanistas, costumavam dizer: “É Patos ou Paris”. 

VALE!

Num certo dia, mata-se uma pessoa.
Em outro certo dia, uma multidão.

Num certo dia, mata-se um peixe.
Em outro certo dia, um doce rio.

O que vale é lucrar. 

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

POEMA DATADO

Hoje, sexta-feira 13.
Amanhã, sábado 14.
Depois de amanhã, domingo 15.

E ontem, quinta-feira 12. 

terça-feira, 10 de novembro de 2015

"QUANTO VALE OU É POR QUILO?"

“Quanto vale ou é por quilo?” (2005), do diretor Sergio Bianchi, não pode ser acusado de fugir de temas que pululam no cotidiano brasileiro. Bianchi também assina o roteiro, ao lado de Sabina Anzuategui, Eduardo Benain e Newton Cannito. O filme aborda o racismo e a corrupção, ambos entranhados na cultura do brasileiro.

“Quanto vale ou é por quilo?” é levemente inspirado num conto de Machado de Assis — o brilhante “Pai contra mãe” — e em alguns textos de Nireu Cavalcanti. Há várias tramas no filme, vários personagens. Uma dessas tramas é inspirada no conto de Machado. Contudo, mesmo os personagens que são inspirados em “Pai contra mãe” têm uma psicologia diferente.

O fio condutor é o de que as relações sociais de exercício do poder não mudaram desde a abolição da escravatura. É feito um paralelo entre o tempo em que a escravidão era institucionalizada e a era moderna, em que a escravidão, velada, vale-se de outros mecanismos.

O lado bom do filme: sobra para todo mundo: pretos, brancos, ricos, pobres, ONGs, entidades filantrópicas, políticos, polícia, empresas... Ninguém presta, nada presta. Paradoxalmente, isso acaba se tornando um dos problemas de “Quanto vale ou é por quilo?”: ele é maniqueísta demais — todo mundo é bandido. Ou, pelo menos, aqueles que têm voz são. Além do mais, uma cena ou outra me pareceram artificiais, a despeito de bons atores na trama. Essa inverossimilhança de uma cena ou outra e o maniqueísmo dos personagens que vivem o enredo não desabonam o trabalho, que exibe nossa feiura.  

Um ingrediente vital do filme é mostrar que quem é vítima de vícios e de corrupções há séculos, acaba, mesmo assim, reproduzindo esses mesmos vícios e essas mesmas corrupções. E um lembrete: quando os créditos começam, há uma cena final que modifica cena prévia do filme. É importante assistir a essa cena final.

A temática é pesada, densa, violenta.  Um trabalho ousado que quer abarcar não somente a questão racial, mas também a questão da política, da corrupção, do jeito capitalista de resolver as coisas, do jeitinho brasileiro de resolver as coisas. O filme escancara a sujeira do Brasil. Por tocar feridas e por suscitar reflexões, imprescindível. 

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

EU RIO

Não consigo rir dos vereadores de Campinas.
Não consigo rir dos Bolsonaros.
Não consigo rir dos Malafaias.
Não consigo rir dos Cunhas.
Não consigo rir dos Danilos Gentilis.
Não consigo rir dos Rafinhas Bastos.
Não consigo rir dos que jogam cascas de bananas.

Não consigo rir de tombo.
Não consigo rir de banguela.
Não consigo rir de quem deu branco.
Não consigo rir de quem fala “célebro”.
Não consigo rir de quem caiu na pegadinha da TV.
Não consigo rir de quem crê em certos pastores.
Não consigo rir de quem acredita em certos padres. 

MAIS UM FRACASSO

Como um todo, a natureza nos faz desprovidos de bilhões de habilidades e providos (mas nem tanto assim) de outras. Minha incapacidade em abrir embalagens é vexaminosa. Eu me perco diante de uma. E de nada adianta seguir as instruções que comumente estão expressas nas embalagens; em vez de me ajudarem, essas instruções me confundem. Qualquer coisa para mim está sempre muito, muito bem fechada. Meu sangue não tem uma gota de algo que se pareça com o talento do MacGyver, aquele do seriado que fazia proezas com, por exemplo, um chiclete e um grampo para cabelos.

Mais cedo, eu havia pedido cartuchos de tinta para a impressora. Chegaram há pouco. Um dos cartuchos é para imprimir em preto-e-branco; o outro, em cores. O que imprime em cores está ainda intocado; há trinta e dois minutos estou lutando para tentar abrir a embalagem do que contém tinta preta. Até agora, o fracasso é vergonhoso.

Na embalagem, há a instrução de como ter acesso ao cartucho. Procurei segui-la. Além do mais, anos de convivência com a língua inglesa têm de servir para algo de vez em quando. No invólucro do cartucho, há uma lingueta na parte superior; nela, lê-se: “Open (tear open here)”. Confiando em meu inglês, manejei a lingueta, a qual acabei destruindo, sem conseguir abrir o continente do cartucho, que, lá de dentro da embalagem, dando gargalhadas estrondosas, zomba de mim. Se num futuro remoto eu conseguir abri-la, haverá depois o drama de tentar inserir o danado do cartucho na impressora... 

ANTES

Numa exceção, 
encolheram o nome dele
depois que ele nasceu. 
Foi assim que Irineu
começou a vida
avant la lettre

SUPERFICIAL

A neve sobre a grama,
um quadro de Van Gogh,
a capa de The dark side of the moon,
a textura da pétala,
a casca da romã,
o livro em Braille,
a cor de tua pele:
nem toda superfície
é fútil. 

(DES)APONTAMENTO 42

Amigo comenta que foi dispensado do serviço militar porque o peso dele não era o bastante para os requisitos do exército: na época, esse amigo pesava quarenta e cinco quilos. Foi a partir desse episódio que o Kundera chegaria ao título “A insustentável leveza do ser”. 

VERMELHIDÃO

sábado, 7 de novembro de 2015

A TOALHA

Tatiana acordou. Teve um sonho ruim, em que um ônibus, estando na pista central das três que compunham percurso de rodovia, tentou pegar a da direita. Só que o acesso ousado pelo motorista era nada mais do que um barranco. Mal começara a atravessá-lo, o ônibus se descontrolou. Tatiana acompanhava a cena dirigindo um carro que seguia atrás do ônibus. Quando ele chegou à pista que era seu objetivo, tombou. Nesse momento, Tatiana acordaria.

Durante alguns minutos, ficou se perguntando que significado o sonho teria. Não chegando a conclusão alguma, prometeu a si mesma começar, finalmente, a leitura de “A interpretação dos sonhos”, do Freud. A manhã ainda não estava aberta, mas nesgas de luz se insinuavam pelo quarto através da janela. Pela respiração de João Carlos, marido dela, Tatiana sabia que ele ainda dormia pesado.

Com passos sonolentos, ela entrou no banheiro. Assim que olhou para a direita, viu a toalha no suporte, ao lado do espelho. Intuiu naquele instante que o dia dela seria terrível. Ficou olhando para a toalha, que, a rigor, não estava pendurada, mas embolada no suporte, entre este e a parede. Há anos aquilo a irritava. 

No auge da paixão, relevam-se coisas que depois passarão a espezinhar. Nos meses seguintes ao casamento, Tatiana ignorava o modo como a toalha era deixada no suporte por João Carlos. Duzentos e treze dias depois de estarem casados, ela pediu ao marido que não deixasse a toalha daquele jeito, mas, sim, que a pendurasse, para que ela secasse rapidamente, para que não ficasse com cheiro ruim. Como o pedido foi infrutífero, ela voltou a abordar o assunto com o marido, argumentando que sempre tivera um certo asco quanto a toalhas, e que não era higiênico deixar uma toalha toda espremida entre o suporte e a parede. De nada adiantou. Meses depois, veio uma discussão. Ela não segurou: “Será que o senhor é tão incompetente que não consegue pendurar uma toalha?”.

Depois da discussão, a toalha viveu dezesseis dias de estiramento. Passado esse tempo, voltou a ser o chumaço criado diariamente por João Carlos. A fim de evitar brigas, Tatiana não expressava o incômodo que sentia. Dois filhos e seis anos se passaram. Naquela manhã em que sonhou com o ônibus, levantou-se e se deparou com o bolo entre a parede e o suporte. Houve em Tatiana algo inédito, a clarividência com a qual admitiu o que vinha se insinuando há tempos, mas que ela, a princípio, negara para si mesma: não mais suportava a convivência com o marido. Tempo houve em que isso foi apenas um sussurro, um sopro. As repetidas miudezas do cotidiano, de mansinho, fizeram com que aquilo que era uma nuvenzinha fosse se agigantando até o ponto em que ela teve a certeza de que não queria mais viver com João Carlos.

Encarando a toalha toda embolada, ela não sabia se sentia mais raiva do marido ou de si mesma, por não ter tido a coragem de acabar com um relacionamento cujos sonhos e alegrias não mais existiam. O que havia era um arremedo de casamento, um teatro social e familiar. Deixando de olhar para a peça no suporte, mirou-se no espelho, perguntando-se o que tinha feito da própria vida. De onde estava, pôde ouvir o marido mudar a posição do corpo na cama. Mas ela sabia que ele ainda não acordara. Olhando-se no espelho, disse em voz baixa: “Tenho trinta e um anos”. Sentiu-se velha. Reparou nas rugas, que ainda eram incipientes, mas que lhe pareceram profundas e ancestrais. Culpou-se por não mais querer o marido, pois sabia que ele a amava; culpou-se por não conseguir passar por cima dos defeitos dele; culpou-se por não ter deixado de sonhar com alguém mais idealista, mais ambicioso, mais cheio de ímpeto; culpou-se por cozinhar para ele de modo automático, por fazer amor de modo automático, por ostentar uma alegria automatizada. Teve vontade de chorar. Por segundos, voltou a olhar para o que considerou um trapo entre o suporte do banheiro e a parede. Apoiando as mãos na pia, estava se observando outra vez. Esquadrinhava o rosto quando disse, novamente em voz baixa: “Você precisa mudar de vida, Tatiana”. Depois, jogou a toalha. 

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

"MEDIANERAS"

É muito bom quando filmes ou livros continuam existindo dentro da gente depois de conferidos. Há filmes ou livros que nos deixam com saudade. Já estou com saudade de “Medianeras” (2011), do diretor Gustavo Taretto; o roteiro é dele também. No elenco, Javier Drolas (Martín) e Pilar López de Ayala (Mariana).

O filme é um delicado e reflexivo retrato do que são as relações (amorosas) no mundo de hoje. Na execução, Taretto fez com que Buenos Aires se tornasse, por assim dizer, personagem do filme. Mostra-se a relação do homem com as grandes cidades. Cada pessoa acaba sendo mais uma em meio às multidões. Em outras palavras: a solidão de cada um em meio aos aglomerados. 

Se a cidade é cenário, também é cenário a clausura de cada um. Pessoas fechadas em apartamentos e fechadas em si mesmas — mas que procuram gente, ainda que diante de um teclado de computador. Procurar gente é também um modo de querer ser achado. 

“Medianeras” faz uma terna e delicada reflexão sobre as relações virtuais em que, se, por um lado, há comunicação, por outro, cada um está em seu próprio lugar, diante de seu próprio monitor, digitando sua solidão. Comunica-se com o mundo, é verdade, mas não há o encontro físico.

Como toda obra artística primorosa, “Medianeras” possibilita desdobramentos. São elementos do enredo a função social da arquitetura, a despersonalização que as metrópoles ou as multidões causam, o paradoxo da solidão humana num mundo que possibilita, graças à tecnologia, o contato com o antípoda. Com ar despretensioso, o filme diverte e convida à reflexão.

Os percursos de Martín e Mariana acabaram me remetendo ao belo poema “Amor à primeira vista”, da autora polonesa Wisława Szymborska. Certa vez, quando escrevi sobre o filme “O voo”, também inseri o poema de Szymborska em meu comentário. Pela segunda vez, uma produção cinematográfica me remete ao texto dela, que transcrevo a seguir. A tradução é de Regina Przybycien.
_____

Amor à primeira vista — Wisława Szymborska

Ambos estão certos 
de que uma paixão súbita os uniu. 
É bela essa certeza, 
mas é ainda mais bela a incerteza.

Acham que por não terem se encontrado antes 
nunca havia se passado nada entre eles. 
Mas e as ruas, escadas, corredores 
nos quais há muito talvez se tenham cruzado?

Queria lhes perguntar, 
se não se lembram — 
numa porta giratória talvez 
algum dia face a face? 
um “desculpe” em meio à multidão? 
uma voz que diz “é engano” ao telefone? — 
mas conheço a resposta. 
Não, não se lembram.

Muito os espantaria saber 
que já faz tempo 
o acaso brincava com eles.

Ainda não de todo preparado 
para se transformar no seu destino 
juntava-os e os separava 
barrava-lhes o caminho 
e abafando o riso 
sumia de cena.

Houve marcas, sinais, 
que importa se ilegíveis. 
Quem sabe três anos atrás 
ou terça-feira passada 
uma certa folhinha voou 
de um ombro ao outro? 
Algo foi perdido e recolhido. 
Quem sabe se não uma bola 
nos arbustos da infância?

Houve maçanetas e campainhas 
onde a seu tempo 
um toque se sobrepunha ao outro. 
As malas lado a lado no bagageiro. 
Quem sabe numa note o mesmo sonho 
que logo ao despertar se esvaneceu.

Porque afinal cada começo 
é só continuação 
e o livro dos eventos 
está sempre aberto no meio. 

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

APONTAMENTO 289

A vida é um ensaio, diante da plateia, para um show que não ocorrerá. 

LIÇÃO DE EMPREENDEDORISMO

César, 
Antônio, 
Rejane, 
Tatiana, 
Cássio 
Freitas 
são colegas de trabalho.

Fora de lá, 
César dá aulas particulares de matemática, 
Antônio faz aula de dança, 
Rejane cultiva orquídeas, 
Tatiana estuda à noite, 
Cássio pinta quadros.

Freitas quer ser promovido. 
Em evento da empresa, propõe tarefa. 
Pede que
César, 
Antônio, 
Rejane, 
Tatiana
e
Cássio
fiquem todos sobre um só jornal. 
Liga o som e os conclama a dançarem rumba.

Depois, ele mesmo, Freitas, 
antes de sua fala, 
sobe numa mesa grande, 
imita macaco, cuincha. 
Boa parte dos funcionários fica exultante. 
O dono da empresa achou tudo engraçado. 
Chorou de rir. 
Em seu discurso, 
disse que toda a equipe
deveria se espelhar 
no espírito empreendedor de Freitas.