segunda-feira, 24 de março de 2014

"SOMOS TODOS ÍNDIOS"

Em carta com a data de primeiro de maio de 1500, Pero Vaz de Caminha dá notícia ao rei de Portugal sobre o achamento (palavra essa usada por Caminha) de um novo lugar, a Ilha de Vera Cruz.

A carta deixa claras algumas das intenções dos portugueses quando chegaram por aqui. Por ora, não as comento. Quero é transcrever trechos nos quais Caminha destaca o escambo que estava ocorrendo entre os portugueses e os índios, com o escrivão mencionando a ingenuidade dos nativos daqui, seduzidos por bugigangas. 

Escreve Caminha num trecho da famosa carta: “Davam-nos daqueles arcos e setas em troca de sombreiros e carapuças de linho, e de qualquer coisa que a gente lhes queria dar”. Outro trecho: “Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha velha e por qualquer coisa”. Um último: “Alguns deles traziam arcos e setas; e deram tudo em troca de carapuças e por qualquer coisa que lhes davam”.

Deixando para trás o ano de 1500, voltemos para 2014. O motivo de eu ter citado no parágrafo anterior os trechos da carta do Caminha se deve a uma matéria que li recentemente na edição deste mês de março do Le Monde Diplomatique Brasil.

O título da matéria já elucida: “A Chevron polui, mas não quer pagar suas multas no Equador”. No texto, Hernando Calvo Ospina explica como um gigante do petróleo, a Texaco, depois comprada pela Chevron, destruiu vidas humanas e poluiu o ambiente no Equador. 

Quinhentos e treze anos depois da carta de Caminha, leio no texto de Ospina, que cita Jimmy Herrera, interlocutor entre os indígenas do Equador e o atual governo: “As comunidades indígenas foram as mais afetadas, pois a Texaco alterou sua existência a ponto de algumas desparecerem. (...) A petroleira solucionava os inconvenientes dando ‘espelhinhos’ de presente aos índios (...), ou ameaçando com a repressão do Exército”. 

"PAIXÃO OBSESSIVA"


“Paixão obsessiva” é um filme sinistramente suave. Sim, o título que deram em português não ajuda. O título original é sarcástico — “The good doctor”. Martin Blake (Orlando Bloom), o doutor a que o título em inglês faz menção, tem domínio do ofício. Todavia, tal domínio não implica equilíbrio psicológico.

É um filme suavemente sinistro. A cadência é lenta, quase monótona. O tom monocórdio, curiosamente, evidencia a perversidade e o caráter doentio de Blake. Que coisa... Não é um filme de terror, mas é um filme assustador. Blake desenvolve fixação por Diane Nixon (Riley Keough), que é paciente dele. Para que ela não receba alta, ele a mantém “medicada”.

O filme é de 2011. Tem a direção de Lance Daly. O roteiro ficou por conta de John Enbom. “Paixão obsessiva” evidencia de modo brilhante a velha ideia de que é preciso separar o homem de sua obra. Blake domina a técnica, sabe o que faz. Sua competência, entretanto, é inversamente proporcional à sua ética.

Blake é o grande doente. Ele irrita porque, tendo inventado para si um personagem, engana, manipula, trapaceia, burla, convence. Ele é um monstro competente. No fim das contas, não precisamos ficar em dúvida se ele é médico ou se é monstro. Blake é talentoso, mas não é médico. Ele é outra coisa. É uma imitação do que é um médico. Eficaz no arremedo, mas arremedo.

O filme é assustador sem querer assustar. A perversidade não vem embrulhada em clichês. A quase ausência de artifícios destaca a personalidade doentia de Blake e joga holofotes sobre o estupendo trabalho realizado por Orlando Bloom. A película é um retrato horrendo do que um bom “médico” é capaz de fazer, do que uma “boa” pessoa pode realizar.