sábado, 19 de dezembro de 2015

HERÁCLITO

No limiar, esquecido de todo mistério,
refugiou-se em silêncio líquido e espesso,
mergulhando hábil nas águas do rio.
Do outro lado, acolhido pela margem,
voltou, mergulhado em todo mistério. 

"MIDNIGHT IN HARLEM"


Há momentos em que não tenho estrutura para o tamanho da beleza. Choro. Essas lágrimas são muito bem-vindas; são vislumbres de uma utopia, da possibilidade um mundo melhor, de uma beleza alcançável. Eu escutei, eu chorei, eu saí pulando, eu fiquei louco, eu urrei, eu devaneei. Nunca mais vou parar de escutar “Midnight in Harlem”.

NOSSA EXPRESSÃO SOCIAL

Baldassare Castiglione publicou, em 1528, o livro “O cortesão”, que contém regras de como o nobre deveria se comportar em público. Trata-se de um manual de etiqueta para a nobreza renascentista. Num trecho, escreve Castiglione:

“Muitos existem que pensam fazer muito, desde que copiem um grande homem em alguma coisa; e muitas vezes se apegam ao que neles é apenas um vício. Mas, tendo eu várias vezes pensado de onde vem essa graça, deixando de lado aqueles que nos astros encontraram uma regra universal, a qual me parece valer, quanto a isso, em qualquer outra, a saber: evitar ao máximo, e como um áspero e perigoso escolho, a afetação; e, talvez, para dizer uma palavra nova, usar em cada coisa uma certa sprezzatura [displicência] que oculte a arte e demonstre que o que se faz e diz é feito sem esforço e quase sem pensar. É disso, creio eu, que deriva em boa parte a graça, pois das coisas raras e bem feitas cada um sabe as dificuldades, por isso nelas a facilidade provoca grande maravilha; e, ao contrário, esforçar-se, ou, como se diz, arrepelar-se, produz suma falta de graça e faz apreciar pouco qualquer coisa, por maior que ela seja. Porém, pode-se dizer que é arte verdadeira aquela que não pareça ser arte; e em outra coisa não há que se esforçar, senão em escondê-la, porque, se é descoberta, perde todo o crédito e torna o homem pouco estimado” [1].

O conceito da “sprezzatura” sempre me instigou. A princípio, ele me chamou a atenção, sem que eu soubesse exatamente o motivo pelo qual isso ocorrera. Os anos se passaram, sem fazer com que a ideia de Castiglione deixasse de me ocorrer com muita frequência.

Nela, o escritor advoga que, em público, as atitudes do nobre devem ter aspecto espontâneo, quando, na verdade, são estudadas, treinadas. Antes de atuar no teatro social, o nobre era orientado. Uma vez em sociedade, a graciosidade e o espírito arguto e refinado pareciam ser naturais, não pareciam ter sido exercitados de antemão, como se a graça e o refinamento fossem inerentes ao nobre.

Uma das coisas que sempre me chamaram a atenção na “sprezzatura” é que, em certo sentido, ela não deixou de existir. Se por um lado Castiglione tenha escrito seu livro para uma classe social do Renascimento, por outro, a convivência social requer de nós pose e “teatro”. Quer-se passar a ideia de espontaneidade e de ausência de afetação (nem sempre com sucesso), mesmo ciente de que tal comportamento é consequência de atitude premeditada. O contexto é outro, as classes sociais são outras; a essência da “sprezzatura” é a mesma.

Outra coisa que me instiga nela é a questão de que não somente a espontaneidade tem o potencial para ser encantadora (embora, em público, eu suponha que espontaneidade absoluta seja impraticável — a não ser pelos loucos): há um encanto advindo da técnica, da prática, do treino, do estudo, do polimento. É verdade que a espontaneidade pode ser cativante, mas isso não aniquila a possibilidade que o não espontâneo tem de ser atraente.
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[1] CASTIGLIONE, Baldassare, 1478-1529. O cortesão / Baldassare Catiglione. Tradução Carlos Nilson Moulin Louzada. São Paulo. Martins Fontes. 1997. Pp. 40-41. 

NANDO REIS E O SUCESSO

Há um tempão estou querendo escrever sobre o Nando Reis, em função da genuína admiração que tenho pelo trabalho dele. Já cheguei a rabiscar apontamentos sobre o trabalho do cantor e compositor em pedaços de papel. Esses apontamentos se perderam, o texto não foi escrito. Padeço de procrastinação mórbida.

É assombroso o quanto Nando Reis é capaz de fazer canções populares, com refrões e melodias grudentos, que têm uma excelência avassaladora. Ele é um criador de sucessos. Há nele um popular e apurado senso poético; tudo isso desemboca em obras-primas extremamente cantáveis.

A música popular (ou o pop, como queira) não raro é execrada por alguns, que partem do estranho princípio de que se é popular, é ruim. Admitir que há obras-primas na canção popular não é o mesmo que ser condescendente com o de ruim que esse tipo de canção produz.

Há muita coisa ruim que faz sucesso, mas isso não é o mesmo que dizer que tudo o que faz sucesso é ruim. Nando Reis é sucesso; é excelente. O que lamento não é a música popular fazer sucesso, mas não haver mais canções populares de outros mestres sendo conhecidas. 

APONTAMENTO 303

Podemos até contar os segundos, mas o que acerta os ponteiros é a vida. 

DOIS INTEIROS

Ele é pleno. 
Ela é plena. 
Fazem um
amor cheio
de plenitude. 

OFERTA

Das coisas possíveis, 
tu és meu romance. 
Das improváveis, 
meu desejo.

Das coisas do tato, 
tu és a pele sonhada. 
Das coisas do verso, 
teu é o poema concebido. 

O ARCO

LETRA DE MÚSICA 39

Todo mundo é um relicário,
mas nem todo mundo sabe
dos tesouros que tem em si.
Eu conto as gotas que caem da chuva.
Elas se tornaram tempestade,
mas eu não perdi a conta.
Eu conto os segundos para o trovão.
Eu me esqueci de estar na chuva para me molhar.

Bonito é dar certo, bonito é gostar de si.
Tu me contas de ti sem te saberes meu espelho.
A infelicidade que carregas é a que levo.
As paredes da sala não revelarão nosso segredo.
O pai que não fui quer te pegar pela mão e te guiar.
Eu nunca soube jamais o que fazer do que sou,
mas enxergo o ouro que não vislumbras em ti.
Eu vou ficar bonito como quem se ama.
Serei exemplo, pois tua beleza merece ser amada por ti. 

APONTAMENTO 302

Escrevo com uma ilusão: a de ser para algum leitor do futuro tão mágico quanto Borges é para mim. Borges mais do que me torna leve (o que já seria muito). Borges me deixa feliz, enleva-me. Não me canso de escrever sobre ele, não me canso de ler o que ele escreveu: a felicidade genuína não cansa, mas, sim, revigora o enlevo a cada releitura. 

APONTAMENTO 301

Se os livros não existissem, minha vida seria insuportável.