terça-feira, 7 de janeiro de 2014

"EDUCAÇÃO"

Assisti na madrugada que passou ao filme “Educação” [An education], lançado em 2009. Recomendadíssimo. A direção é de Lone Scherfig; roteiro de Nick Hornby. O filme é baseado num livro de memórias escrito por Lynn Barber (o roteiro de Nick Hornby também foi lançado em formato de livro).

Há texto de Barber em que ela comenta sobre a surpresa que foi quando a procuraram para adaptarem as memórias dela para o cinema. O que ela conta em “An education” é o relacionamento que ela teve, no começo da década de 60, com Simon Goldman (não é o nome real; no filme, o nome, também fictício, é David) quando ela tinha dezesseis anos.

De acordo com Barber, Simon dissera ter vinte e sete, mas, ainda segundo ela, ele deveria estar se aproximando dos quarenta. Ela, desde que nascera, tinha um destino traçado: estudar em Oxford. Tanto que ficou muito surpresa quando obteve dos pais a autorização para que saísse à noite com um cara desconhecido e mais velho do que ela, em vez de ter de ficar em casa estudando.

Tanto gostei do filme que assim que terminei de assisti-lo fui buscar informações. Fuça daqui, fuça dali, eu me deparei com um texto de Barber, com aproximadamente nove páginas, em que ela conta ou resume a história dela com Goldman. O texto foi publicado no jornal The Guardian, e pode ser conferido aqui.

O que me chamou a atenção foi o quanto o texto dela publicado no jornal proporciona uma bela oportunidade para se refletir sobre o que a arte e suas “mentiras” podem fazer com a realidade. Na abertura do trabalho, Barber conta, de modo direto, que estava esperando ônibus, depois de sair de um ensaio, quando um estranho (Goldman), num carrão, ofereceu carona; a despeito das recomendações de que uma garota não deveria aceitar carona de estranhos, ela entrou no carro.

No roteiro de Nick Hornby, há chuva na cena inicial enquanto Barber, encharcada, espera no ponto de ônibus. Goldman encosta o carro, dizendo estar preocupado com o violoncelo dela. Embarcando na brincadeira, ela coloca o violoncelo dentro do carro, mas não entra: Goldman dissera que entenderia se ela não quisesse entrar; afinal, não se deve aceitar carona de estranhos.

Barber começa a caminhar na chuva. Goldman, bem devagar, segue com o carro ao lado dela, enquanto conversam. Manhoso, bem-humorado, ele logo a convence a entrar no carro, dando início à convivência entre os dois, na qual ela logo aprenderia sobre um mundo feito de charme, conversas inteligentes e viagens.

Essa cena ilustra muito bem o que talento, inteligência e imaginação são capazes de fazer com uma realidade que pode não ser tão interessante assim. A narrativa de Barber no jornal The Guardian é “seca”: não havia... chuva... Barber “simplesmente” entrou no carro após o convite; no roteiro de Hornby, além da chuva, houve todo um diálogo esperto entre os personagens.

A comparação entre o que houve e o que Hornby fez do que houve oferta possibilidades de reflexão sobre a realidade, substrato da arte, e o que ela, a arte, faz com esse mesmo substrato. Hornby, por assim dizer, inventa uma realidade, ele nos conta uma “mentira”, que é, convenhamos, no caso específico, mais interessante do que o retrato fiel da realidade.

O Quintana escreveu que “a imaginação é a memória que enlouqueceu”. Em sua “loucura”, Hornby se valeu da memória de Barber para criar um roteiro que, se por um lado, preserva a moldura da narrativa da escritora, por outro, cria uma outra história que é vigorosa em imaginação, sem com isso pecar pela falta de verossimilhança.

Quando a realidade vai para o papel, o que está no papel não é a realidade em si. Chamam isso de simulacro, que é, nesse sentido, uma representação da realidade. Ainda que um texto seja o mais fiel que conseguir à realidade que conta, o texto em si não é a realidade — é um simulacro dela. Nessa acepção, qualquer forma de arte é um simulacro.

Não sei se o livro de Lynn Barbar é bom; na Amazon, pode-se dar uma espiada em alguns trechos dele, o que fiz durante a madrugada. Como o roteiro de Nick Hornby também está à venda, vou comprar o livro e o roteiro. Afinal, tudo ensina, tudo serve para a educação, seja um simulacro, seja uma pessoa.