Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, professores da Universidade de Harvard, escreveram “Como as democracias morrem” (2018). Didático (o que já fica claro no título) e em linguagem simples, o livro detalha como... as democracias morrem...
Para os autores, foi-se o tempo em que democracias sucumbiam a partir de estrondosos golpes militares, como os que a América do Sul conhece tão bem. Levitsky e Ziblatt alegam que no século XXI as democracias morrem a partir de estratégias que são legais ou que têm cara de serem.
Num primeiro exame, é paradoxal supor que uma democracia pode morrer (ou pode começar a morrer) a partir de estratégias legais ou constitucionais, já que a Constituição de países democráticos existe exatamente para garantir a democracia. Todavia, os autores, numa instigante, profícua e iluminadora reflexão, comentam sobre a letra da lei e o espírito da lei. E mais: não raro, democracias começam a ruir porque governantes ou exageram na letra da lei ou executam ações que, embora legais, quebram pactos de civilidade, de respeito e de diplomacia.
Palavras como comedimento, tolerância e discrição entram na intrincada fórmula que sustenta uma democracia, que no dia a dia, requer paciência. Não é, por exemplo, respondendo “isso não é da sua conta” a uma repórter que pergunta sobre ligações da família de um presidente com milícias que se joga o jogo democrático.
O livro defende a ideia de que regras informais são tão importantes para a democracia quanto as regras formais; jogar no lixo aquelas pode ser tão danoso à democracia quanto levar às últimas consequências estas. Ao manejo democrático das regras informais e das regras constitucionais, os autores dão o nome de “reserva institucional”: “Para nossos propósitos, a reserva institucional pode ser compreendida como o ato de evitar ações que, embora respeitem a letra da lei, violam o seu espírito. Quando as normas de reserva são robustas, políticos não usam suas prerrogativas institucionais até o limite, mesmo que tenham o direito legal de fazê-lo, pois tal ação pode pôr em perigo o sistema existente”. [1]
Os autores tocam na delicada questão de que os eleitores podem, de fato, não estar aptos a escolher com a razão seus governantes. Levitsky e Ziblatt escrevem que a responsabilidade de impedir que políticos com viés autocrata disputem eleições é dos partidos políticos. Os autores são peremptórios: “Os partidos políticos são os guardiões da democracia”. [2]
Para que a democracia esteja robusta, num cenário em que os partidos tenham filtros que impeçam a ascensão de antidemocratas, é preciso, que eles, os partidos, estejam fortemente comprometidos, é claro, com a democracia e com a reserva institucional. A partir do momento em que ataques pessoais e rixas políticas levam ao rompimento das regras informais, a democracia está em risco.
“Como as democracias morrem” lida com o contexto dos EUA e contextualiza o surgimento de Donald Trump, típico autocrata. Ao contextualizaram, os autores mencionam golpes contra a democracia na América do Sul. Não só por isso, o livro nos ajuda a entender o momento pelo qual o Brasil passa. A obra é também sobre a importância da palavra que concilia, do espírito público e dos bons modos na política. São coisas que parecem simples. Quando faltam, damo-nos conta de que um regime democrático pode estar correndo perigo.
Mencionei sobre o didatismo do livro. Prova desse didatismo é uma tabela que os autores elaboraram para elencar os sinais de que um político é autocrata. Tomo a liberdade de compartilhar, a seguir, a tabela.
1. Rejeição das regras democráticas do jogo (ou compromisso débil com elas)
Os candidatos rejeitam a Constituição ou expressam disposição de violá-la?
Sugerem a necessidade de medidas antidemocráticas, como cancelar eleições, violar ou suspender a Constituição, proibir certas organizações ou restringir direitos civis ou políticos básicos?
Buscam lançar mão (ou endossar o uso) de meios extraconstitucionais para mudar o governo, tais como golpes militares, insurreições violentas ou protestos de massa destinados a forçar mudanças no governo?
Tentam minar a legitimidade das eleições, recusando-se, por exemplo, a aceitar resultados eleitorais dignos de crédito?
2. Negação da legitimidade dos oponentes políticos
Descrevem seus rivais como subversivos ou opostos à ordem constitucional vigente?
Afirmam que seus rivais constituem uma ameaça existencial, seja à segurança nacional ao modo de vida predominante?
Sem fundamentação, descrevem seus rivais partidários como criminosos cuja suposta violação da lei (ou potencial de fazê-lo) desqualifica sua participação plena na arena política?
Sem fundamentação, sugerem que seus rivais sejam agentes estrangeiros, pois estariam trabalhando secretamente em aliança com (ou usando) um governo estrangeiro — com frequência um governo inimigo?
3. Tolerância ou encorajamento à violência
Têm quaisquer laços com gangues armadas, forças paramilitares, milícias, guerrilhas ou outras organizações envolvidas em violência ilícita?
Patrocinaram ou estimularam eles próprios ou seus partidários ataques de multidões contra oponentes?
Endossaram tacitamente a violência de seus apoiadores, recusando-se a condená-los e puni-los de maneira categórica?
Elogiaram (ou se recusaram a condenar) outros atos significativos de violência política no passado ou em outros lugares do mundo?
4. Propensão a restringir liberdades civis de oponentes, inclusive a mídia
Apoiaram leis ou políticas que restrinjam liberdades civis, como expansões de leis de calúnia e difamação ou leis que restrinjam protestos e críticas ao governo ou certas organizações cívicas ou políticas?
Ameaçaram tomar medidas legais ou outras ações punitivas contra seus críticos em partidos rivais, na sociedade civil ou na mídia?
Elogiaram medidas repressivas tomadas por outros governos, tanto no passado quanto em outros lugares do mundo? [3]
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[1] Levitsky, Steven. Como as democracias morrem. Steven Levitsky, Daniel Ziblatt. Tradução de Renato Aguiar. 1. ed. Rio de Janeiro. Zahar. 2018. P. 107.
[2] Idem. P. 31.
[3] Ibidem. Pp. 70 e 71.