sábado, 3 de janeiro de 2015

A PAIXÃO EM SEU COMEÇO

É muito instigante observar a paixão quando ela começa. Não me refiro ao impacto que a beleza de alguém pode causar em nós. Esse impacto pode vir a ser paixão, mas paixão ainda não é. Nela, há um clique inicial, que nem precisa ser forte. Algo nos capta a atenção; pode ser a aparência da pessoa, pode ser um talento que ela tem, pode ser a voz, pode ser o modo como ela se comporta... Pode ser isso tudo.

A paixão tem íntima conexão com a imaginação. A princípio, a gente se apaixona muito mais pela ideia que fazemos da pessoa do que pela pessoa em si. Essa fase revela mais o que somos e menos o que o outro é. Caso se tenha a chance de relacionamento com a pessoa que passou a mexer com nossa imaginação, passamos a ter referências mais reais para o mosaico que vamos construindo à medida que estamos apaixonados.

A partir das peças desse mosaico, vamos tentando compor uma imagem mais concreta da pessoa pela qual estamos apaixonados. Depois do clique inicial, passamos a reparar nela. De ouvidos aguçados e com olhares concentrados, o outro toma conta da atenção. Quando ele não está por perto, o pensamento revive os encontros havidos.

Não demora muito para que passemos a ver a pessoa como um todo. Não um todo com o qual já estamos familiarizados, mas um todo que deixamos de fatiar. Quer-se a pessoa pelos talentos que ela tem? Também por eles. Pela beleza que ela tem? Também por ela. Pelo espirituoso senso de humor? Também por ele.

Mas há sempre algo que nos escapa, que nos parece indefinível, intocável, inefável. Nem as partes nem o todo conseguem dar a exatidão dos motivos pelos quais nos apaixonamos por alguém. É por causa de algo que está em nós e por causa de algo que está na outra pessoa. É por causa de coisas visíveis, palpáveis, mas há motivos ou coisas aos quais não conseguimos ter acesso. Paira sempre uma imprecisão.

Apaixona-se pela beleza, mas a pessoa não precisa ser a mais bela do planeta (ela passa a ser a mais bela no nosso planeta). Apaixona-se pelo talento, mas a pessoa não precisa ser um gênio. Apaixona-se pelo senso de humor, mas um terceiro poderia achar esse senso de humor... sem graça.

Dizemos com frequência que nos apaixonamos pelo jeito da pessoa. Isso que a gente chama de jeito da pessoa compreende tudo o que ela é para nós. Se após o clique inicial, que pode ocorrer depois de termos visto alguém pela primeira vez, somos correspondidos ou temos a chance de demonstrar nossa paixão inicial, pode ser que haja amor à vista. Mas isso é outra história. 

ALMOÇO EM FAMÍLIA

Hoje, num calor de derreter pensamentos, uma família estava almoçando num restaurante: dois garotos loiros de olhos azuis, a mãe e o pai deles e uma senhora que me pareceu ser avó dos meninos (dava sinais de ser mãe da mãe deles). A diferença de idade entre as crianças era pequena. No máximo, de dois anos, embora eu presuma que um deles deve ter uns três anos; o outro, uns quatro.

Dos três adultos, a avó e a mãe almoçavam com civilizada voracidade. O pai estava mais envolvido com um celular; de vez em quando, ordenava ao garoto que estava à esquerda dele que se alimentasse. As duas crianças estavam mais envolvidas com “tablets” (cada uma delas portava um).

O garoto à esquerda do pai estava de costas para mim; eu podia enxergar a tela do “tablet” dele, depositado sobre a mesa, ao lado do prato de comida, com a ajuda de dispositivo que mantinha o equipamento em pé; as mãos do menino podiam, desse modo, ficar livres. Mesmo assim, ele se entretinha mais tocando a tela do que tentando manejar talheres. O outro menino, do outro lado da mesa, dividia, de modo mais ou menos igual, a atenção entre a comida e o “tablet”.

O pai, de tempos em tempos, admoestava o filho dele que estava de costas para mim. Eram ordens chochas, sem eficácia. O celular demandava mais a atenção do pai, também de olhos azuis. A mãe, morena e de cabelos castanhos claros, é quem parecia agir de modo mais afiado: “Se você não comer, vou desligar esse ‘tablet’ agora”. O garoto olhava para ela, pegava uns fios de macarrão e voltava a namorar a tela.

Assim o almoço deles prosseguia. Minutos depois, o pai se levantou e pediu à família que olhasse para ele, que estava pronto para, via celular, tirar uma foto dos comensais. A avó e a mãe logo se prontificaram. Os meninos, mergulhados nos dispositivos eletrônicos, pareciam nem ter percebido que o pai deixara a mesa. Ter a atenção do que estava ao lado da mãe foi mais fácil do que receber o olhar do outro filho.

O pai tentou uma vez: “Tiago, olha pra cá”. Tive a impressão de que a voz dele denunciava algum sotaque, mas isso poderia ser apenas impressão minha. A mãe e a avó instavam com o garoto para que olhasse na direção do celular. Como os pedidos eram infrutíferos, o pai, num tom de voz entre o solene e o grave, mandou com firmeza: “Tiago, look here now”.

Dessa vez, sem sotaque. O garoto olhou, o pai tirou a foto e voltou a se sentar. Antes de voltar a comer, mostrou a toda a família o registro que havia feito. Sorrisos de satisfação e cabeças fazendo sinal de positivo, exceto do garoto que estava à esquerda do pai; o menino olhou para a tela do celular, não sorriu e, incontinente, voltou a se concentrar no “tablet”.