Por um lado, é preciso louvar a bela iniciativa da editora Autonomia Literária por ter ela editado Realismo capitalista, de Mark Fisher (1968-2017); por outro, justamente em função de o livro ser um monumento, merecia uma edição mais cuidadosa: os erros de português que a tradução tem são numerosos, amadores, irritantes. O livro merece mais.
Realismo capitalista é paradoxal: a lucidez lancinante constata a maçada em que estamos por causa do capitalismo/neoliberalismo; ao mesmo tempo, essa mesma lucidez propõe possíveis alternativas, ainda que elas não exibam contornos exatos; não é propósito do livro sugerir uma solução pronta. Num tom quase casual, Fisher mistura o erudito e o popular, longe de academicismos mas íntimo de uma contundência iluminadora.
É um livro contra, em seu sentido pejorativo, a individualidade, tão queridinha do neoliberalismo, que, exitoso, faz recair unicamente sobre o indivíduo as derrotas que ele vivencia. A balela da meritocracia talvez seja a faceta mais conhecida desse individualismo; todavia, Fisher vai além, discorrendo sobre outro aspecto cruel do neoliberalismo: se o sujeito tem uma doença mental, somente ele é o responsável por isso. O autor leva em conta a dimensão químico-cerebral de problemas psíquicos, mas ele tem a clareza de entender que esses problemas podem ser reflexos de uma sociedade doente: “É óbvio que toda doença mental tem uma instanciação neurológica, mas isso não diz nada sobre a sua causa” [1] (itálicos de Fisher).
A expressão que Fisher usa para esse estado de coisas é “privatização do estresse”. Se o cidadão sucumbe diante de pressões neoliberais, a culpa é somente dele, que, nesse estado de coisas, seria fraco, incapaz. Não bastasse, há ainda o peso da burocracia, que acabou infestando e apodrecendo os serviços públicos. No campo da educação, o autor descreve com exatidão o que se dá em decorrência dessa opressora e estúpida burocracia: “No caso de inspeções de escolas e universidades, o que será avaliado em você não são suas habilidades como professor, mas sua diligência como burocrata” [2].
A solução de Fisher para que uma alternativa ao neoliberalismo seja implementada não tem contornos nítidos, não é um manual com tópicos exatos sobre como resolver a enrascada em que estamos. Além do mais, as saídas que o autor aponta contam com a existência da democracia e de instituições, como, por exemplo, um parlamento, não importa o regime governamental. Fácil perceber que no caso do Brasil uma alternativa que dizime o projeto neoliberal está, no contexto atual, distante.
Todavia, não nos enganemos: em Realismo capitalista, a constatação de que o neoliberalismo venceu não é para que nos entreguemos à ideia de que não há alternativa, “mantra” apregoado por Margaret Thatcher. Há, sim, alternativa. Ela não se evidencia ainda, mas não virá do indivíduo, sobre quem já recaem coisas demais. Dentre outros bens, Fisher escancara que o capitalismo baniu a solidariedade. Não caiamos no conto de que não há nada a ser feito: “É nossa tarefa desenvolver alternativas às políticas existentes, mantê-las vivas e disponíveis até que o politicamente impossível se torne politicamente inevitável” [3].
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[1] Fisher, Mark. Realismo capitalista. Tradução de Rodrigo Gonsalves, de Jorge Adeodato e de Maikel da Silveira. Autonomia Literária. 2021. Pág. 67.
[2] Idem. Pág. 87.
[3] Ibidem. Pág. 151.