terça-feira, 9 de outubro de 2018

Biologia e psicanálise

Há espécies 
que giram 
em torno 
do próprio rabo.

Há espécies 
que querem 
policiar o alheio. 

Francisco, o papa

Editorial escrito por Silvio Caccia Bava e publicado na edição deste setembro no Le Monde Diplomatique Brasil tem estes dados: 49% dos que têm mais de 25 anos ainda não completaram o ciclo do Ensino Fundamental (IBGE); 95 milhões de brasileiros têm renda de até R$ 14,00 por dia (46%), e 41 milhões, renda entre R$ 14,00 e R$ 21,00 por dia (20%). O argumento de Bava é que num cenário como o brasileiro, é preciso ser simples para se falar a linguagem do eleitorado.

Essa simplicidade é uma arte, pois ela não é sinônimo de simploriedade. Ser simplório é fácil; ser simples é difícil. No mundo de hoje, penso que dois líderes têm o dom da simplicidade: o Mujica, que foi presidente do Uruguai, e o papa Francisco, embora o pontífice argentino tenha de lidar com esta mancha asquerosa da igreja católica, que são os casos de pedofilia ao redor do mundo. Fiéis e parte do clero cobram dele mais energia ao punir religiosos pedófilos.

Um espírito aberto há de considerar alentador acompanhar as declarações do papa, que já enfrenta oposição na ala mais conservadora da igreja. Sem medo de dizer o óbvio, valendo-se de uma linguagem acessível, Francisco, para as multidões, entrega uma mensagem comprometida com a fé dos católicos e com a atualidade. Ontem, no Twitter, ele publicou: “Rezemos para que no mundo prevaleçam os programas de desenvolvimento e não aqueles para os armamentos”. Simples, de fácil compreensão, mas não simplório. 

De novo, contra a burocracia

O Brasil tem provas retumbantes de que a burocracia não funciona. Durante a ditadura militar, criaram o ministério da desburocratização. Claro que a ideia, uma contradição em si, não deu certo. A burocracia escolhe suas vítimas: o alto escalão não precisa bater continência para ela, que atravanca somente a vida de nós, habitantes do baixo escalão. A burocracia engessa quem deveria estar livre e libera quem deveria estar na teia dela.

O fetiche por excesso de papéis ou de documentos eletrônicos nada resolve. Se burocracia coibisse corrupção, o Brasil não a teria; se burocracia indicasse brilhantismo intelectual, seríamos uma nação de gênios; se burocracia assegurasse transparência, não haveria tanta coisa nublada; se burocracia implicasse produtividade, não haveria tanta coisa parada. A burocracia é a arte de tomar tempo e de nada resolver de modo inútil. Ela tira a possibilidade do ócio ou da criação, do descanso ou do trabalho útil.

Estéril, a burocracia é aquilo que quer tirar de nós o espírito criador que podemos ter. A burocracia não tem graça, não tem humor. Caso se arvore a ter, terá de ser em três vias, assinadas datadas e carimbadas, as quais ninguém lê e que serão deixadas num calabouço imbecil. A burocracia quer pompa e ares de correção onde só há perda de tempo, burrice e crueldade. 

O Começo do Sonho

Há alguns dias, assisti ao documentário O Fim do Sonho Americano, que tem uma série de declarações de Noam Chomsky. Conhecido no meio acadêmico como linguista, Chomsky tem outra faceta, que é a de se envolver com questões políticas.

Chomsky inicia o documentário alegando que a desigualdade vem da extrema riqueza nas mãos de alguns. Ainda de acordo com ele, boa parte do tão propalado sonho americano consistia na mobilidade de classe, o que, segundo ele, não é mais como já foi. A seguir, ele passa a falar dos pilares da democracia, para, então, discorrer sobre o círculo vicioso em que o poder gera riqueza e a riqueza gera poder.

Nesse momento, o intelectual faz menção a Adam Smith e seu famoso A riqueza das nações. No livro, Smith menciona os chamados “mestres da humanidade”, cujo lema é simples: “Tudo para nós, e nada para as outras pessoas”. Debruçando-se sobre as consequências desse “mantra”, Chomsky elenca dez princípios que os “mestres da humanidade” adotam para conseguir o que almejam. São estes, os princípios:

1) reduzir a democracia;
2) moldar a ideologia (coibir a rebeldia);
3) redesenhar a economia (aumentar o poder de instituições financeiras — bancos, seguradoras...);
4) deslocar o fardo (diminuir os impostos dos muitos ricos e aumentar os dos pobres);
5) atacar a solidariedade (ela é perigosa porque, segundo “os mestres da sociedade”, “nada para os outros”);
6) controlar os reguladores: o mundo dos negócios controlando a legislação;
7) controlar as eleições (empresas financiando campanhas);
8 - manter a ralé na linha (coibir organizações trabalhistas, sindicatos);
9) consentimento de produção (controlar crenças e atitudes, fabricando consumidores, compelindo-os a coisas fúteis);
10) marginalizar a população: como ela, a população, não tem força política, ela passa, por isso mesmo, a odiar instituições; outro ponto é corroer as relações sociais, de modo que grupos passem a brigar entre si.

Embora lide com a realidade dos Estados Unidos, é impossível não constatar o quanto os dez princípios dos “mestres da humanidade” estão presentes mundo afora e, de modo bem intenso, no Brasil atual. O Fim do Sonho Americano é didático, de linguagem acessível. Uma contribuição formidável dos realizadores a quem busca saber o que algumas pessoas não querem que saibamos. Sonha melhor quem procura se inteirar da realidade. 

Otimismo histórico

Há dias li texto de Norman Eisen publicado no jornal The New York Times. Diplomata judeu, ele conta sobre ocorrido quando foi designado como embaixador em Praga, em 2011: na casa em que ele moraria, havia diversas suásticas escondidas, desenhadas pela casa; uma delas, sob a superfície de uma mesa antiga. Lembranças da ocupação nazista que haviam ficado pelo lugar. Diante das suásticas, Eisen diz ter sentido não horror, mas triunfo.

A partir desse fato, ele reflete sobre a administração de Trump, criticando-a, não se esquecendo de fazer menção, também em tom de crítica, às situações na Hungria, Turquia, Itália, Áustria e em outros lugares. A conclusão de Eisen é otimista: para ele, a democracia prevalece, ainda que ameaçada; segundo ele, a história mostra tanto as ameaças que a democracia já sofreu quanto as vitórias que ela por fim conseguiria.

O pensamento de Eisen é o de que o estudo da história nos leva ao otimismo, não ao pessimismo. Para ele, a democracia já enfrentou ataques piores do que os de hoje. A fim de corroborar sua tese, volta a fato pessoal, dizendo que a mãe dele, judia, havia sido enviada a Auschwitz, tendo sobrevivido e se mudado para os EUA. Sessenta anos depois de Auschwitz, estava Eisen acendendo velas para o sabá à mesa que tem a suástica. 

Perfil

Já deverias saber que
o uniforme não faz o homem.
Não és o gênio que supões,
não és o amante desejado
nem o que imaginas ser.
Não sabes tu que teu berro
é para esconder o menino,
não confessas nem para ti
que tua agressão é fragilidade,
que teu espelho é teu abismo.
Ignoras que, em teus recônditos,
tua (in)continência e tua macheza 
imploram por sádico senhor. 

Inteligência e gentileza, burrice e truculência

Há um texto do Borges em que ele elogia o pai dele, dizendo que ele, o pai, era inteligente; logo, segundo o Borges, gentil. A gentileza sozinha não define o que seja ser inteligente, mas a tendência de haver inteligência naquele que tem gentileza é grande.

Pode haver gentileza em casa. Ou em livro. Ou no outro. Ou numa canção... Mas é preciso alguma inteligência. Que pode ser refinada em casa. Ou em livro. Ou no outro. Ou numa canção... Contudo, a burrice não sabe ser gentil.

A truculência sozinha não define o que seja ser imbecil, mas a tendência de haver imbecilidade naquele que tem truculência é grande. Inútil cogitar que um imbecil analise suas palavras, seus atos. Há coisas que só a pessoa pode fazer por si. Buscar a gentileza é uma delas. 

Apontamento 380

Existe um imperdoável defeito na morte: não há livros. 

Faroeste

Circularam nas redes sociais vídeos e fotos de eleitores portando armas na cabine de votação. O padrão é o mesmo: com as pontas dos canos das armas, apertam as duas teclas do candidato que escolheram e confirmam o voto. Filmar ou fotografar urna eletrônica no momento em que há votação é crime eleitoral. Ainda que as armas exibidas nos vídeos não sejam de verdade, o crime já está configurado. Mas, é claro, quem leva arma para uma cabine de votação encara a teia sob a ótica da aranha. 

Nossa natureza

Está no site da CNN matéria sobre as mudanças climáticas pelas quais a Terra tem passado. Os cientistas são taxativos: temos doze anos para impedirmos o aumento da temperatura no planeta. Se esse aumento, em 2030, atingir um grau e meio Celsius em relação à temperatura dos níveis pré-industriais, haverá risco ainda maior de secas extremas, incêndios florestais, enchentes e falta de alimento para centenas de milhões de pessoas.

Sabemos que quase nada será feito para se evitar essas tragédias. Na esfera individual, um aqui ou outro ali fazem algo. O problema é que, tristemente, essas iniciativas individuais não inexpressivas diante da atuação dos poderosos (o que não quer dizer que tais iniciativas devam ser abandonadas). Só para ficar num exemplo do quanto o indivíduo é menor diante do todo: o desprezível Trump retirou os EUA do Acordo Climático de Paris, assinado em 2015.

No fim de semana, assisti a um documentário que deveria servir de contraponto a quem defende capitalismo a qualquer preço. Não se trata aqui de propor um sistema econômico alternativo, mas o que importa aqui é algo simples: empatia. Isso soa ingênuo, de tão simples que é. Todavia, houvesse real empatia ou real preocupação com o outro, a realidade mostrada no documentário, que se chama The True Cost, disponível na Netflix, não seria tão impiedosa.

O documentário é sobre o universo da moda. Calma: não é sobre aqueles desfiles de futilidade que exibem para nós quando o assunto é esse. The True Cost mostra a crueldade que as grandes marcas impõem sobre países como Índia e Bangladesh, territórios onde são feitas boa parte das roupas chiques consumidas mundo afora. Dirigido e roteirizado por Andrew Morgan, The True Cost é mais uma prova da desumanidade que há quando o capitalismo sem a menor preocupação com o outro é praticado. É graças à miséria de trabalhadores do mundo têxtil na Índia ou em Bangladesh que as grandes empresas de moda têm lucros exorbitantes.

Segundo a produção, a indústria da moda já é a segunda que mais polui o planeta (a que mais polui é a petrolífera). Matérias como a da CNN ou documentários como The True Cost deveriam ser o bastante para que revíssemos nosso comportamento. Isso até pode ocorrer num indivíduo ou noutro, mas as grandes corporações continuarão lucrando às custas da tragédia alheia, a maioria de nós vai continuar sem se preocupar com isso, pagando caro por coisas inúteis. Vai chegar o dia em que as manifestações da natureza serão trágicas para todos, e ela não faz distinção entre pobres e ricos. 

Os bons costumes

Para muitos, eleições são pretexto para se fundar uma teocracia, que no fundo corrobora o machismo e camufla preconceitos, valendo-se de leis escritas há dois mil anos e, mesmo assim, cumprindo somente aquelas que interessam aos teocratas, que desprezam o princípio básico de que, em tese, o Estado é laico — ou deveria ser. O que há é uma teocracia que camufla desejo de assepsia e de embranquecimento do país; ou seja: racismo. Uma teocracia que alega patriotismo sem entender que um patriotismo genuíno abarca o outro, o diferente, o “outsider”, o estrangeiro. Gostar mesmo de um país é gostar da diversidade que ele tem e entender que nem todo mundo está interessado em bater continência, em ir a um templo ou a uma igreja, em vestir camisa da CBF ou em constituir família. Não há o menor problema em não querer essas coisas, bem como não há o menor problema em querê-las, desde que os que as querem deixem aqueles com diferentes anseios tomarem os rumos que desejarem.

Exibir bandeira do Brasil em casa ou no carro é fácil; defender a ditadura é fácil; apostar num salvador é fácil. O que não é fácil é estudar, é conhecer a história. Não é fácil, mas é um caminho civilizado. Levar arma para a cabine de votação é fácil, tentar entender o contexto que gera a violência é difícil. É mais confortável eleger um único culpado e arvorar-se como representante do bem, da moral, da lei ou de Deus, empunhando uma arma, uma Bíblia ou um preconceito. Um patriotismo que quer calar a pluralidade de vozes em nome de uma narrativa que se diz ou religiosa ou guardiã dos bons costumes não passa de ignorância, de desinformação e de preconceito travestidos de boas intenções. O verdadeiro patriotismo é solidário para com os concidadãos e não quer impor sua teocracia nem seu modo de vida, por entender o simples direito do outro de poder escolher outros caminhos.

Um patriotismo que defende coerções, torturas, linchamentos e assassinatos está mais preocupado em dizimar do que em buscar a raiz do problema. Um patriotismo que defende um messias é ingênuo. Quem se diz patriota repetindo coisas como “a corrupção vai acabar no ano que vem, teremos segurança pública com a população armada, os bandidos vão pra cadeia, a família será preservada” está repetindo perigosos chavões que estão longe de serem soluções para problemas reais. Um país complexo como o Brasil não tem soluções fáceis. Um patriotismo que apresente soluções fáceis, arbitrárias, rápidas e ditatoriais é coisa de quem não conhece o próprio território que habita, ou seja, não é coisa de patriota.

Quem alega que tudo é em nome dos bons costumes, da moral e da ausência de corrupção ou mente ou é desinformado. Ditaduras não impedem corrupção. A própria ditadura que tivemos é a prova disso, embora muitos prefiram acreditar que não houve corrupção no período. Querer que o outro tenha o credo que você tem, pensar que a disciplina só existe quando há farda ou cerceamento da liberdade, acreditar em solução veloz para problemas difíceis e acreditar em bastiões de honestidade não é ser patriota: é ser pueril. Ou interesseiro. Não faz sentido declarar-se patriota mas querer um país somente para si e para seus pares. Patriotismo que quer intimidar pela força e pela bala não é patriotismo, mas adunamento com repressão e com preconceitos.