quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Chamas e mesóclises

“Até que enfim temos um presidente que sabe falar, que sabe português”, disseram alguns pró-golpistas logo após Temer ter solapado a presidência. Pois aquele cujo português foi elogiado cortou e congelou gastos na... educação. Há vários modos de queimar um país. Nem todos são por intermédio de chamas. 

A fogueira

Queimem os museus!
Queimem Luzia!
Queimem as universidades públicas!
Queimem os institutos federais!
Queimem os hospitais públicos!
Queimem os gays!
Queimem a Petrobrás!
Queimem os Correios!
Queimem as cartas!
Queimem os bandidos!
Queimem as mulheres!
Queimem os livros!
Queimem os velhos!
Queimem o Cerrado! o Pantanal! a Amazônia!

Rápido!: 
queimem o nordeste,
a Rocinha, 
os doentes,
os falidos,
as Marias, 
os Josés, 
os comunistas,
os professores,
os amantes,
os cubanos,
os que andam de bicicleta,
os deficientes,
os feios,
os índios,
Lula,
os que visitam Lula,
os que votam em Lula, 
os que não votam em Bolsonaro,
os que não têm armas,
as putas,
os ateus,
os desdentados,
os gentis,
os sem-terra,
os loucos!

Vamos salvar o Brasil!
Queimem os rios agora!
Só assim essa gente vai arder,
sem ninguém para jogar água na fogueira! 

Uma curiosidade

Frases de Bolsonaro:

• “Espero que saia; infartada, com câncer, de qualquer jeito” (referindo-se a Dilma). 
• “O erro da ditadura foi torturar e não matar”. 
• “Eu sou favorável à tortura”.
• “Eu acho que essa polícia militar do Brasil tinha que matar é mais”. 
• “Vamos fuzilar a petralhada”.
• “Ustra é um herói”.
• “Através do voto você não vai mudar nada nesse país. Só vai mudar no dia em que partimos para uma guerra civil”.
• “Eu sonego tudo o que for possível”.
• “Só não te estupro porque você não merece”.

O que Bolsonaro teria dito tivesse não ele (mas outro presidenciável) passado pelo que passou ontem em Juiz de Fora? 

Apontamento 379

Sem leitura, somos a versão mais feia de nós mesmos. 

“Todo Dia a mesma Noite”

O jornalismo brasileiro não se dedica a matérias de fôlego, alimentando-se da preguiça mental de parte dos leitores, ao mesmo tempo em que fomenta essa mesma preguiça. Uma das exceções é a revista Piauí, que ainda realiza matérias densas, escritas com capricho.

Outra louvável exceção no jornalismo do país é a Daniela Arbex, autora de Holocausto Brasileiro e de Cova 312. A jornalista lançou neste 2018 Todo Dia a mesma Noite: a História não Contada da Boate Kiss.

Na noite de vinte e sete de janeiro de 2013, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, a Kiss pegou fogo. Duzentas e quarenta e duas pessoas morreram. Ao esmiuçar a tragédia, Daniela Arbex mistura inteligência, objetividade e afeto num texto que, a despeito da abordagem jornalística, que ela não abandona, emociona não pela desgraça do ocorrido, conhecida de todos, mas por a jornalista evidenciar o aspecto humano e individual de alguns dos personagens que perderam entes no dia do incêndio.

Esse debruçamento sobre o indivíduo já havia sido feito no brilhante Holocausto Brasileiro, em que a jornalista conta a história de famoso manicômio em Barbacena/MG, que por décadas do século XX foi uma usina que fazia adoecer e matava pessoas, com a anuência de políticos e de parte de uma ignorante sociedade. A mesma ignorância e a mesma desumanidade estão presentes em Todo Dia a mesma Noite. Ao se aproximar de sobreviventes ou ao abordar familiares destroçados pelas perdas de familiares na boate, Daniela Arbex revela o descaso e o oportunismo de políticos ou o radicalismo tosco e a falta de compaixão de quem se diz religioso, ao mesmo tempo em que, ao se voltar para os que perderam filhos no incêndio, a jornalista exibe as minúcias do que é ser gente.

O olhar cuidadoso, terno e jornalístico que Arbex tem ao contar a história acaba fazendo com que ela roce a literatura, o que só torna o livro mais grandioso ainda. Marcelo Canellas, autor do prefácio, foi muito feliz ao escrever que Todo Dia a mesma Noite é um “inventário de saudades”. A poética expressão de Canellas dá o tom do livro, que, a despeito de lidar com perdas e com sofrimento, em momento algum resvala na pieguice.

Os objetos que temos são parte de nossa história. Assim, um batom, um par de sapatos, um vestido ou um telefone podem assumir uma dimensão tocante quando os associamos a uma pessoa. Enquanto as dezenas de corpos eram retirados da boate, num dos celulares, ao lado da palavra “mãe”, havia cento e trinta e quatro chamadas não atendidas.

Ao se aproximar dos que foram diretamente afetados pelo incêndio, incluindo familiares, sobreviventes e profissionais que lidaram com o acontecimento, Daniela Arbex emociona; além do mais, o livro acaba sendo alerta quanto ao que pode ocorrer quando há descaso e protelação. Todo Dia a mesma Noite é um documento, uma obra-prima do jornalismo, um sopro de literatura e um testemunho de humanidade. 

Todas as pessoas

A leitura é o começo.
O princípio é o verbo.
Que foi conjugado.
Sou conjugação.
És.
Conjuguemos. 

Uma ponte entre o interior do Brasil e o interior da Escócia


Há tempos, venho fotografando a ponte sobre o Rio Paranaíba, aqui em Patos de Minas. Recentemente, desde que passei a fotografar com um drone, voltei a fotografar a construção, que acho muito bonita.

Há alguns dias, assisti ao filme Calibre, em cartaz na Netflix. Logo no começo da produção, dois amigos estão no interior da Escócia, num carro, dirigindo-se a um local onde iriam caçar. Numa tomada aberta, uma ponte aparece. Ela é muito parecida com a ponte do Paranaíba.

Não sei com exatidão onde fica a ponte lá na Escócia. Nesta postagem, a primeira imagem é uma foto que tirei da tela da televisão enquanto eu assistia ao filme; a segunda é uma foto que tirei da ponte aqui em Patos de Minas. 

Cabelo

Assisti ao filme Hair (1979) quando eu tinha oito ou nove anos. Não entendi o enredo, não entendi a proposta, não entendi o contexto, não entendi a linguagem, não entendi nada. Depois, no fim da adolescência, fui trabalhar em rádio; a emissora tinha o álbum (salvo engano, LP duplo) com a trilha sonora do filme. Com frequência, eu executava “Aquarius”, cantada pela Melba Moore. Quando eu levava ao ar a canção, eu prometia a mim mesmo que assistiria novamente a Hair. Há pouco, quase quarenta anos depois do lançamento do filme, conferi novamente o musical. Que filmão! O diretor é Milos Forman; o roteiro ficou por conta de Gerome Ragni, James Rado e Michael Weller.

Toda obra de arte é fruto do período em que foi produzida. Hair, além de ser consequência do espírito de fim da década de 70, teve a intenção de levar às telas um retrato do que era esse mesmo período. Focando na crítica contra a guerra que os EUA deflagraram no Vietnã, Hair tem a intenção de se voltar para a mesma época que o produziu, desnudando-a. Conseguiu.

A cultura rebelde do período está no filme. Jovens se voltando contra a insana guerra no Vietnã se veem obrigados a embarcar para o conflito, de onde nem sabem se voltarão vivos. Foi natural que o cinema dos EUA voltasse suas lentes para o evento. Nessa visita, muita bobagem foi feita, mas Hair faz parte das obras-primas que abordaram o que ocorreu no Vietnã.

Numa época como a de agora, em que a caretice dá berros e se excita com o uso de cassetetes, Hair prova que envelheceu bem, mostrando-se necessário quando de seu lançamento e na atualidade. O libelo pacifista, com sua ode ao corpo, à música e à juventude, é um manifesto libertário conclamando ao amor. É tudo a que, por exemplo, um defensor de torturadores não quer assistir. 

A negação da história

Um intelectual pode saber mais sobre determinado aspecto de um país do que um cidadão desse mesmo país, não importa qual ele seja. Assim, um italiano pode saber mais sobre Shakespeare do que um inglês, um austríaco pode saber mais sobre Machado de Assis do que um brasileiro.

Todavia, espera-se que a embaixada de determinado país saiba algo do território que representa. Mesmo assim, quando a embaixada da Alemanha no Brasil postou vídeo sobre o nazismo, os comentários de alguns brasileiros foram sintoma do que parte da população se tornou: um grupo que não se informa e que, em consequência, nega qualquer ciência ou qualquer evidência.

Houve brasileiros que, no perfil do Facebook da embaixada alemã, disseram que o holocausto... não existiu. Comentários desse naipe revelam a cegueira que a falta de conhecimento pode causar. O correspondente, fosse na física, seria dizer que a Terra não é redonda, o que muitos dizem, não só no Brasil. O problema é que a ignorância é raivosa; a mordida dela pode matar.

Casos como esse revelam um dos problemas do excesso de ignorância: ele atravanca o desenvolvimento por se agarrar a noções primárias, pueris. Uma coisa é uma criança de cinco anos se surpreender ao saber que o planeta que habita é redondo; outra é um adulto esbravejar e brigar por causa disso.

A ignorância torna-se inimiga da história, do óbvio, do outro. A ignorância é confortável, fugir dela dá trabalho. Ela não atrapalha somente os que a escolhem. A falta de sutileza quer que o Sol gire em torno da Terra ou que a história seja apagada e reescrita em caixa alta, com grunhidos, muitas onomatopeias e uma profusão de xingamentos, preconceitos e pontos de exclamação. 

De volta

Quando a seca vai embora,
o cerrado não renasce: 
não morreu.
No tempo das águas,
ele sai de casa. 

Sob o signo da inteligência

O essencial W. H. Auden, numa de suas tiradas, escreveu num de seus ensaios que “algumas pessoas são inteligentes demais para se tornarem escritores”. Quando leio ou releio Wisława Szymborska (1923-2012), expressões como “que inteligência espantosa” sempre me ocorrem. A impressão que ela me passa é a de que tem uma inteligência inesgotável, por mais generalizado ou impreciso que algo assim possa soar.

Com a tradução de Regina Przybycien, a piauí deste setembro publicou alguns breves textos da autora polonesa. São eles respostas dadas por Szymborska a leitores que queriam seus textos publicados numa revista para a qual a escritora trabalhava. As respostas de Szymborska revelam mais uma vez brilhantismo e humor.

Um exemplo: “Não, não temos manuais de escrita de romances. Parece que nos Estados Unidos se publicam coisas assim, mas nos permitimos duvidar de seu valor, isso porque o autor que conhecesse uma receita infalível para o sucesso literário preferiria ele próprio se valer dela em vez de ganhar a vida escrevendo manuais. Simples, não é? Simples”.

Outro: “A falta de talento literário não é nenhuma desgraça. Pode acontecer a pessoas inteligentes, esclarecidas, nobres e extremamente talentosas em outras áreas. Quando dizemos que um texto é pobre, não pretendemos ofender ninguém nem lhe tirar a fé no sentido da existência. Mas, de fato, nem sempre proferimos o nosso julgamento com uma cortesia chinesa. Ah, os chineses. Esses sabiam, em tempos idos, antes da Revolução Cultural, responder aos poetas pouco afortunados. A resposta era mais ou menos assim: ‘Os seus poemas superam tudo que já foi e que ainda será escrito. Se fossem publicados, sob sua luz ofuscante empalideceria toda a literatura, e os outros autores que dela se ocupam sentiriam dolorosamente o seu próprio nada...’”.

O humor e a inteligência de Wisława Szymborska me deixam com vontade de ter sido amigo dela, ou de, pelo menos, ter tido a oportunidade de conviver com ela. Ao interagir com pessoas, ela era tão adorável quanto é no que escreveu? Nunca terei resposta para isso, mas a pergunta me ocorre. Algumas pessoas são inteligentes demais. 

Apontamento 378

Viver não é amanhã nem logo ali nem ontem. A vida é agora. O resto é imaginação e memória. 

Política e futebol


Tentar separação radical entre futebol e política seria negar o uso que governos nacionais e internacionais já fizeram do esporte, bem como negar a atuação politizada de estrelas do futebol. A democracia corintiana, cujo rosto mais conhecido era Sócrates, é só um exemplo da imbricação entre os conteúdos esportivo e político.

Recentemente, desde quando torcidas em estádios começaram a manifestar ameaçadora burrice, alguns clubes tornaram público que discordam de atitudes beligerantes ou preconceituosas, mostrando mais uma vez que há momentos nos quais futebol e política se misturam. As ilustrações desta postagem, disponíveis no Twitter do brilhante Mauro Cezar, exibem alguns dos clubes que se posicionaram contra a intransigência. 

Biologia e psicanálise

Há espécies 
que giram 
em torno 
do próprio rabo.

Há espécies 
que querem 
policiar o alheio. 

Pelo direito à jabuticaba

Hamilton Mourão disse que o décimo terceiro salário é jabuticaba. Na analogia dele, jabuticabas e décimo terceiro são coisas que só existem no Brasil. O que ele disse, seja por ignorância, seja por má-fé, não é verdade, pois outros países pagam o décimo terceiro salário.

#MourãoNão #JabuticabaSim

Francisco, o papa

Editorial escrito por Silvio Caccia Bava e publicado na edição deste setembro no Le Monde Diplomatique Brasil tem estes dados: 49% dos que têm mais de 25 anos ainda não completaram o ciclo do Ensino Fundamental (IBGE); 95 milhões de brasileiros têm renda de até R$ 14,00 por dia (46%), e 41 milhões, renda entre R$ 14,00 e R$ 21,00 por dia (20%). O argumento de Bava é que num cenário como o brasileiro, é preciso ser simples para se falar a linguagem do eleitorado.

Essa simplicidade é uma arte, pois ela não é sinônimo de simploriedade. Ser simplório é fácil; ser simples é difícil. No mundo de hoje, penso que dois líderes têm o dom da simplicidade: o Mujica, que foi presidente do Uruguai, e o papa Francisco, embora o pontífice argentino tenha de lidar com esta mancha asquerosa da igreja católica, que são os casos de pedofilia ao redor do mundo. Fiéis e parte do clero cobram dele mais energia ao punir religiosos pedófilos.

Um espírito aberto há de considerar alentador acompanhar as declarações do papa, que já enfrenta oposição na ala mais conservadora da igreja. Sem medo de dizer o óbvio, valendo-se de uma linguagem acessível, Francisco, para as multidões, entrega uma mensagem comprometida com a fé dos católicos e com a atualidade. Ontem, no Twitter, ele publicou: “Rezemos para que no mundo prevaleçam os programas de desenvolvimento e não aqueles para os armamentos”. Simples, de fácil compreensão, mas não simplório.