quarta-feira, 12 de novembro de 2008

CAMINHO DE SANGUE

Todo esse sangue bombardeado.
Todo esse sangue inocente.
Todo esse sangue poluído.
Todo esse sangue perverso.

Não no chão, mas nas veias,
deveriam estar todos
esses sangues correndo.

“DECAMERÃO – O SANTO MILAGREIRO”

Ontem, a partir de 19h15, no Teatro Municipal Leão de Formosa, aqui em Patos de Minas, ocorreu o espetáculo teatral “Decamerão – o santo milagreiro”.

A peça é uma adaptação da primeira das cem histórias que compõem o livro “Decamerão”, de Giovanni Boccaccio (1313-1375). A direção foi de Consuelo Nepomuceno (Unipam), coordenadora do grupo Tupam (Teatro Universitário de Patos de Minas).

A história de Boccaccio narra o ocorrido com o senhor Ciappelletto. Em tom de galhofa e prestes a morrer, ele decide se “confessar” a um bondoso frade. Tendo sido cafajeste a vida toda (“era o pior homem que viera à luz, em qualquer época” – tradução de Torrieri Guimarães), o próprio Ciappelletto argumenta, no leito de morte, que uma ofensa a mais, numa vida tão plena delas, não fará nenhuma diferença. Para o frade, narra pecadilhos infantis, ninharias, a despeito da vida nada virtuosa que levara.

Impressionado com o suposto caráter elevado de Ciappelletto, o frade cuida rápido de dizer a todos que tão nobre conduta durante toda uma vida só podia indicar santidade. Dá a “boa nova” a seus colegas, que contam para outros, que contam para outros. Ciappelletto é enterrado com honrarias, é sepultado como santo. Rapidamente, fiéis passam a procurar o túmulo do “santo” em busca de milagres, numa amarga ironia de Boccaccio.

A peça contou ainda com música, sob o comando do professor de música e percussionista Castor. Após o espetáculo, o professor Luís André Nepomuceno, coordenador do curso de Letras do Unipam, contextualizou Boccaccio e sua obra numa Idade Média que assistia então ao surgimento do Humanismo. Infelizmente, devido a compromisso de trabalho, não pude acompanhar toda a fala do professor. Entretanto, ele próprio me disse posteriormente que houve uma interação proveitosa, a partir do momento em que o público se sentiu à vontade para opinar e fazer perguntas.

“No teatro, mudar uma peça de maneira radical muitas vezes é – por mais contraditório que possa parecer – a melhor maneira de ser fiel a um dramaturgo”. Esse trecho é de Gabriela Mellão, em crítica sobre montagem da peça “O Quarto”, de Harold Pinter, sob a direção de Roberto Alvim. Gabriela Mellão ressalta que as liberdades de Roberto Alvim, paradoxalmente, não deturparam o trabalho de Harold Pinter.

Comento isso pelo seguinte: o “Decamerão” não é texto escrito originalmente para o teatro. Ainda assim, o grupo Tupam foi feliz na adaptação que fez. As liberdades (sem radicalismos) tomadas quanto ao original e quanto a recursos cênicos mantiveram o saboroso humor de Boccaccio. Aqueles que têm familiaridade com o "Decamerão" reconhecem de imediato a atmosfera da história de Ciappelletto, a despeito das mudanças. Ao mesmo tempo, o espectador não deixa de presenciar a corrosiva ironia. Em suma: a trupe acertou no tom.

Não sei se há a intenção de se reapresentar a peça. Caso isso ocorra, esteja lá. E em tempo: é um espetáculo que eu gostaria de fotografar.