segunda-feira, 14 de junho de 2021

Ativismo de “hashtags”

Antes que algum apressado se arvore em dizer que neste texto estou sendo incongruente com o que venho escrevendo ao longo dos séculos, digo que sou a favor de serviços públicos. Não sou adepto da sanha neoliberal, sou contra privatizações. Além do mais, embora, a rigor, não seja necessário, esclareço que criticar determinado aspecto do serviço público não é o mesmo que defender privatizações. Minha crítica poderia ser interpretada, devido a alguma ruim e má interpretação, como piscadela a favor de retirada de direitos da população. Não é.

Devido à pandemia, o baixo escalão do serviço público se vê nesta situação: em páginas oficiais de internet e em inócuos e piegas comunicados internos, lê que esse tipo de serviço se diz preocupado quanto à situação da covid no Brasil. Há campanhas a favor do uso de máscara, há dados sobre o número de mortos, há envios de normativas para os servidores sobre os cuidados que, em tese, estão sendo tomados... Tudo muito lindo, mas, no alto escalão, o que vem daqueles que tomam decisões, sem, claro, consultarem o baixo escalão, está em desacordo com o suposto humanismo divulgado por parte do serviço público. Os cargos de chefia, com frequência, são concedidos pelos superiores, sem que tenha havido eleição dentre os pares. O que advém disso nas redes sociais é que servidores que realizam pose de conscientes, de engajados, escrevendo, em seus perfis pessoais, coisas do tipo “#DefendaOSus”, “#VivaOSus”, “#VacinaSim”, “#FiqueEmCasaSePossível”, “#VivaACiência” e afins, nos bastidores do serviço público, assumem pautas tão genocidas quanto aquelas que criticam.

É muito fácil propor ativismo em rede social e, longe do olhar público, assumir pautas que estão em concordância com a anticiência, com a desvalorização da vida (vírus nos olhos dos outros é refresco). Na prática, isso revela uma atitude condizente com a iniciativa privada, em cujas engrenagens o trabalhador é um número. Se amanhã esse trabalhador morre, depois de amanhã, há outro no lugar do morto. O serviço público, com muita frequência, assume em seu aspecto externo preocupações com os cidadãos, quando, internamente, manda os trabalhadores assumirem risco de morte e coloca em risco os que dependem de determinado serviço — mesmo quando há alternativas outras que não contenham esse risco para que uma dada atividade continue em movimento e mesmo quando os servidores em cargos de chefia têm poder de veto, justamente por serem chefes, quanto a proposições contra a vida.

Seria ingenuidade supor não haver no baixo escalão dos serviços públicos quem defenda pautas de morte. Não é preciso procurar muito para achar um burocrata isolado em sua casa, trabalhando à distância, com sua fachada de descolado em redes sociais, sendo, em sua atuação trabalhista, a favor de que os colegas e a população se entreguem a riscos, ainda que haja alternativas para que esses riscos não sejam corridos. Mesmo assim, em sua maioria, o que ainda resta de humanidade nos serviços públicos está no baixo escalão, pois o alto escalão, em suas microesferas de poder, no todo, não dá a mínima para a existência alheia. Tristemente, são raros os que, no poder, importam-se com as vidas dos outros, embora, como já dito, não seja essa a fachada apregoada nem por eles em suas redes sociais nem pelas instituições em que trabalham. Acessei há pouco páginas de diversos órgãos públicos. Todos têm campanhas anticovid e pró-cuidados contra ela em suas páginas. É o falso cuidado, o humanismo de fachada. É a hipocrisia pública virtual.