sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Teclas

Sem pudicícia,
a mão assassina
elege milícia.

Com astúcia, 
a mão assassina
elege a súcia. 

Desavergonhada, 
a mão assassina 
elege a porrada.
 
Da ribalta,
a mão assassina 
elege a malta.
 
Como serva,
a mão assassina
elege a caterva. 

Do pódio, 
a mão assassina
elege o ódio.

Com alarde,
a mão assassina 
elege o covarde. 

Sem pudor, 
a mão assassina 
elege torturador. 

Com descaramento,
a mão assassina elege
o desmatamento. 

Com arrogância, 
a mão assassina elege 
a ignorância. 

Com sandice,
a mão assassina elege 
a burrice. 

Primeiras-damas

 Marcela:
“Bela, recatada e do lar”.

Michelle:
bela, recatada e dólar. 

Jornada

É preciso aprender, seja o que for, não somente para que confirmemos que sabemos pouco demais e o quanto somos pequenos; sim, somos minúsculos, mas, ao mesmo tempo, somos parte de toda a complexidade do Universo. O reconhecimento da pequenez, em saboroso paradoxo, traz maravilhamento ou encantamento. Ou deveria trazer. É que o outro lado da moeda do reconhecimento da pequenez é a ciência do quanto o que está fora (ou dentro) de nós é sutil, intrincado. Aquele que não quer aprender ou aquele que não se maravilha já está meio morto. Ou menos vivo.

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Haicais

 1
É ele quem ama:
89 mil na conta
da primeira-dama.

2
Feliz é a Michelle.
Sacou, Bolsonaro?:
89 mil à flor da pele.

3
É vil.
Na conta,
89 mil.

4
Ele viu.
Na conta,
89 mil.

5
Ele vil.
Na conta,
89 mil.

6
Desata os nós.
Queres tu 89 mil?...
Chama o Queiroz.

7
Michelle,
89 mil, Bolsonaro
não repele.

8
É isto, meus caros:
motorista com 89 mil
têm os Bolsonaros.

9
É isto, meu caro:
motorista com 89 mil
têm os Bolsonaro.

10
São 89 mil.
É bondade como
nunca se viu. 

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

O feitiço...

O queridinho de parte dos jornalistas os tem vilipendiado desde que assumiu a presidência. Agora, fingem que nada tiveram a ver com a história, arrotando um espírito democrático que nunca esteve neles. Não sabem o que fazer com a criatura em que jogaram confetes e para a qual apontaram holofotes. O monstro que ajudaram a engendrar está pronto para moê-los.

Pancadas

Hoje, a porrada é num jornalista.
Os súditos aplaudem.

Amanhã, a porrada é numa cidade.
Os súditos aplaudem.

Depois de amanhã, a porrada é na democracia.
Esmurrados, os súditos aplaudem. 

Porradas

É algo grave um político dizer que a vontade é de dar porrada ao ser questionado sobre algo que é da alçada dele responder. Algo mais grave ainda são as multidões dispostas seja a aplaudir esse comportamento seja a dar porrada a fim de defendê-lo. 

Na porrada

O menino brigão achava que tudo se resolvia na porrada.
O rapaz brigão achava que tudo se resolvia na porrada.
O homem brigão achava que tudo se resolvia na porrada.
O menino, o rapaz e o homem são a mesma pessoa.

O homem brigão chamou para a porrada outro homem.
O brigão, de cara e na cara, levou um monte de porrada.
Entendeu que insígnias não socorrem quando a porrada
vem direto na cara e um dente vermelho cai da boca.

O homem brigão juntou pudores, não pediu clemência.
O rapaz brigão quis apelar para a benevolência dos murros.
Sob saraivada de porradas, o homem, que é o rapaz.
Esfolado, luxento e chorão, foi embora um menino. 

A porrada como solução

Alguém escreveu — acho que foi o Flaubert, mas não estou certo disso — que “se a imprensa não existisse, seria preciso não a inventar”. Qualquer um sabe dos efeitos prejudiciais que o jornalismo ruim pode ter.

Todavia, perguntar para o presidente sobre os depósitos feitos por Fabrício Queiroz na conta de Michelle Bolsonaro é algo muito pertinente. Não se trata de uma pergunta boba, fora de contexto. Pode-se argumentar que a pergunta vem tarde, pode-se cogitar o motivo de não terem perguntado anteriormente ao mandatário coisas do mesmo teor.

No passado, perguntas similares foram evitadas. Parte da imprensa tenta agora um fajuto mea-culpa que não convence ninguém. Ainda assim, a pergunta sobre os depósitos de Fabrício Queiroz para Michelle Bolsonaro é necessária.

“Minha vontade é encher tua boca com uma porrada”. A resposta do marido de Michelle Bolsonaro é típica dele. Estranho seria se tivesse dado uma resposta adequada, uma resposta de quem tem espírito cívico, uma resposta que elucidasse as transações financeiras do clã, as quais são investigadas, mesmo todo mundo ciente de que a “famiglia” Bolsonaro não será afetada.

Certas questões podem ser difíceis de serem respondidas. Dizer que a vontade é de dar porrada é saída fácil, tergiversação truculenta de quem se acha mais macho que os demais. Exatamente por isso, a resposta agrada a muitos; precisamente por isso, esse tipo de resposta arregimenta admiradores. 

sábado, 22 de agosto de 2020

Razões

Ele é
ameaçador, 
arrogante, 
bobo, 
boçal, 
bronco, 
cruel, 
desavergonhado, 
desinformado, 
despreparado, 
imaturo, 
inapto, 
inepto, 
maléfico, 
mentiroso, 
nefasto, 
perdido, 
pérfido.
perseguidor, 
perverso, 
preconceituoso, 
sinistro, 
sórdido, 
tacanho, 
tosco, 
violento.

Uns o elevaram,
sem vernizes
de cultura,
sem disfarces 
de humanidade,
por ele ser 
quem ele é.

Outros o elevaram 
porque diziam,
em arremedo
de civilidade,
que ele mudaria 
quando vestisse
trajes de gala.

Uns e outros estão contentes 
porque ele é
violento,
tosco, 
tacanho, 
sórdido, 
sinistro, 
preconceituoso, 
perverso, 
perseguidor, 
pérfido.
perdido, 
nefasto, 
mentiroso, 
maléfico, 
inepto, 
inapto, 
imaturo, 
despreparado, 
desinformado, 
desavergonhado, 
cruel, 
bronco, 
boçal, 
bobo, 
arrogante, 
ameaçador. 

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Haicai 81

O plano é genocida:
para livros, impostos;
para armas, guarida. 

Haicai 80

Para livros, impostos.
Para armas, benesses.
Assassinos a postos. 

Encruzilhada

Nas prateleiras e nas geladeiras,
diversas criaturas mortas.
Há patos, galos, perus...
No açougue, bois, vacas, carneiros...
Algumas espécies podem ser
adivinhadas através das embalagens.
Outras estão fatiadas,
penduradas em ganchos,
sem embalagens.
Demandam conhecimento
técnico para que sejam identificadas.

Num dos corredores do supermercado,
há uma espécie que morreu há pouco.
Lá jaz; parece alheia aos que passam,
que parecem alheios ao corpo,
coberto por guarda-sóis.

Um tanto curioso,
alguém de nome José
quer saber 
o nome da criatura caída,
que segue morta no corredor.
“O nome dele era Moisés”,
diz Mariana, que tem
olhos vivazes.

José agradece a Mariana
pela informação.
Ele segue fazendo compras.
Vai até a seção de frios e
pega um quilo de moelas.
O gerente da empresa
segue averiguando 
os lucros do CNPJ. 

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Ele não lê

Ele não lê poesia.
Sabe que é possível viver sem ela.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse 
“o erro da ditadura foi torturar e não matar”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“eu sou favorável à tortura”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“eu acho que essa polícia militar do Brasil tinha que matar é mais”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“policial que não mata não é policial”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“o exército não matou ninguém”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“Ustra é um herói”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“eu sonego tudo o que for possível”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“espero que saia; infartada, com câncer, de qualquer jeito”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“só não te estupro porque você não merece”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“sou homofóbico, sim, com muito orgulho”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“prefiro ter um filho viciado do que um filho homossexual”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“é só uma gripezinha”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
se tratar de “histeria”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“não sou coveiro”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“e daí?”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“todo mundo morre um dia”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“vamos parar de divulgar números”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“invadam hospitais e filmem leitos vazios”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“hidroxicloroquina salva”.

Não lê poesia.
Se lesse, talvez dissesse
“é preciso tocar a vida”.

Ele não lê poesia.

Sabe que é possível matar sem ela. 

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

O que importa

Durante o trabalho, na Ilha de Vera Cruz, um servidor não preenche um papel inútil. Os hierárquicos: “É preciso duas cópias do mesmo trabalho. Assine ambas. Depois, refaça o trabalho. Uma vez tendo refeito, envie duas vias dele para os superiores. Depois de enviar, refaça-o e arquive esse refazimento”.

Durante o trabalho, na Ilha de Vera Cruz, um servidor é chamado de “gorila fedorento”. Os hierárquicos dizem nos bastidores “nada podemos fazer”; divulgam nota: “Lamentamos profundamente o ocorrido”.