quinta-feira, 28 de setembro de 2017

(Des)apontamento 54

In the rat race, not everyone will be a ratter. Most of us will be rats. 

Da ingratidão

Permitam-me falar da ingratidão. Em primeiro lugar, pela facilidade que há em ser ingrato. É mais fácil ser ingrato, mais confortável. Na ingratidão, não é preciso reconhecer o que o outro fez de bom nem é preciso reconhecer o que se possa ter feito de ruim.

A ingratidão pode implicar empáfia por parte de quem recebeu o bem, é típica de quem prefere apontar os erros do outro e esquecer as qualidades dele, em vez de admitir que recebeu o bem desse outro.

A ingratidão é vizinha da falta de justeza, pensa que sabe muito. A ingratidão é duplamente cega: tem a cegueira de quem não sabe olhar para si e de quem não sabe olhar para o outro. Se não é cega, tem pelo menos uma visão distorcida tanto de si quanto do outro. Ao olhar para si, não enxerga os defeitos que todos temos; ao olhar para o outro, enxerga somente os defeitos que todos temos.

Há dois tipos de ingratidão: a silenciosa e a barulhenta. Os ingratos barulhentos se valem das armas que os convencem, as quais podem ser gritos, missivas, ausências de delicadeza. Os ingratos barulhentos gritam porque não sabem entender nem as sutilezas do agradecimento nem as gradações da gentileza. Gritar é mais fácil do que olhar para si, ser ingrato é mais fácil do que reconhecer os acertos do outro.

É da natureza do ingrato apagar o bem que por ventura tenha recebido. Se não o apaga totalmente, apaga-o quase completamente. Para o ingrato, bom é quem está longe, não quem está no árduo dia a dia. Para o ingrato, a grama é sempre mais verde do outro lado da cerca. Ele ovaciona a miragem que lhe promete (apenas promete) água fresca, mas desdenha da fonte de conhecimento e de dedicação que jorrou ao lado dele o tempo todo.

O ingrato é leve porque é ignorante, porque não enxerga a riqueza do outro, porque simplesmente acha que não tem o que agradecer. Ele é leve porque sempre tem um pretexto. Não raro, chama esse pretexto de boa intenção. Ao se olhar no espelho, o ingrato não enxerga ingratidão.

Há profunda beleza em reconhecer que se é uma pessoa melhor graças ao outro, a despeito da imperfeição tanto de quem recebe quanto de quem oferta, não importa o que esteja sendo doado nem o que esteja sendo recebido. Mas os ingratos estão mais ocupados em apontar as imperfeições alheias e em ignorar as suas.

Ser grato é ser maduro o bastante não para ignorar as falhas do outro, mas para reconhecer que a doação desse outro pode ser maior do que os erros dele. A gratidão é bonita porque sabe reconhecer no outro o que ele tem de bom, sabe receber dele o que ele tem de bom. Felizes os que sabem agradecer. 

Cruzeiro, Flamengo, Tito e uma dama

Antes da partida que decidiu a final da Copa do Brasil, há pouco, no Mineirão, havia a dúvida se Raniel começaria a partida ou se Arrascaeta começaria. Aos quatro minutos do primeiro tempo, Raniel, contundido, deixou o campo chorando; Arrascaeta entrou em campo no lugar do jovem Raniel. Pouco tempo depois, aos seis minutos, Guerrero, cobrando falta, acertou o travessão do goleiro Fábio; a bola foi para fora.

Aos catorze minutos, foi a vez de Thiago Neves perder chance de gol dentro da grande área. Eu não saberia dizer se faltou talento ou se faltou calma (ou os dois) no momento do chute. Enquanto isso, o Cruzeiro, talvez devido à tensão, fazia mais faltas do que o Flamengo. Erros simples ocorriam tanto num time quanto no outro.

Não deve mesmo ser fácil jogar uma decisão desse tamanho. Por mais que se treine, por mais que haja preparação física e psicológica, a carga de tensão e de adrenalina, suponho, é muito grande. Eu mesmo, por muito menos, em situações prosaicas, corriqueiras, fico com a voz trêmula e com vontade de estar aqui em casa, colocando uma pipoca no micro-ondas ou lendo as aventuras da elusiva dama Chatterley.

Diferentemente do meu nervosismo, que nunca passa, a impressão com que fico é a de que o nervosismo dos jogadores, lá pelos vinte minutos do primeiro tempo, já foi embora. É a partir daí que se pode ter uma noção mais clara do que os times podem apresentar. Cruzeiro e Flamengo apresentaram o tal do equilíbrio, a despeito de chance perdida pelo cruzeirense Arrascaeta, que não conseguiu dominar a bola dentro da área, aos trinta e cinco do primeiro tempo. Aos trinta e oito, Berrío, do Flamengo, errou o alvo, chutando de fora da área.

Não há muito o que dizer sobre o primeiro tempo. Se por um lado não foi um jogo ruim, por outro, não foi memorável. Mas não foi monótono a ponto de eu deixar de assistir à partida e ir para o quintal brincar com o Tito, meu cachorro, que manifestava medo sempre que algum fogo de artifício espipocava como pipoca em panela ou em micro-ondas.

Mal começado o segundo tempo, pareceu que o jogo seria menos truncado, mais espontâneo, menos estudado. Foi isso mesmo o que ocorreu. Ainda que não tenha havido grandes chances de gol de nenhum dos times, pelo menos a partida não ficou tão presa a esquemas táticos. Muito se falou do Muralha, codinome mais do que apropriado para um goleiro, embora muitos achem não ser essa uma alcunha adequada para o goleiro do Flamengo. Aos trinta e três do segundo tempo, ele rebateu uma bola de modo incorreto, possibilitando a Arrascaeta a chance de marcar. Ele não conseguiu. Aos quarenta e dois, Fábio fez bela defesa depois de chute de Guerrero.

Ambos os times apresentaram futebol equilibradamente mediano. Não importa com quem o título tivesse ficado, teria havido mérito igual. Nos pênaltis, o Cruzeiro venceu. Como o jogo terminou, hora de renovar a água para o Tito. Depois, voltar para a dama Chatterley. E esse Mellors, hum, não sei, não...