domingo, 24 de abril de 2022

Paira

O mau cheiro em Patos de Minas 
é o mau cheiro do Brasil. 
A cidade fede,
o país é fedorento. 
O maquinário local
tritura ossos,
o Brasil leva pessoas 
a buscarem ossos
em lixos. 
Fedorento, o país;
fedorenta, a cidade.
O metrô nova-iorquino,
as esquinas parisienses
(“é Patos ou Paris”),
o ar patense.
A essência do Brasil. 

Leitura de crônicas

Para leitores esporádicos, a crônica é o gênero mais palatável; a poesia, o menos. 

"Ordens são ordens"

(O texto abaixo era para ter sido publicado há um mês. Ainda assim, ei-lo.)

Bolsonaro manda.
Milton Ribeiro obedece. 

Os amigos deles ganham.
O restante das escolas perdem.

A caterva aplaude.
A horda bate palma. 

"Divino"

Muitas coisas feitas em nome de deus deixam o diabo muito feliz ou o fazem dar zombeteira gargalhada. 

Entrevista com Luís André Nepomuceno


Dos filtros em redes sociais

Enquanto os pobres estão procurando por comida em lixeiras, a classe média faz de conta que não tem nada com isso, o que significa fazer de conta que não elegeu, conscientemente, a barbárie, a defesa de ditadores e de ditaduras, a pobreza em qualquer sentido e a violência em todos os sentidos. Essa mesma classe média, fingindo bom-mocismo, faz suas doações de alimentos, postando a seguir as fotos em redes sociais. Um dos filtros do Instagram é a hipocrisia. 

Tolhimento

Sou contra qualquer coisa que tolhe o crescimento psíquico e intelectual. Por isso, sou contra a burocracia. Ela sequestra nosso tempo, nosso corpo e nossa mente, jogando-nos num porão sem luz, quente e abafado, pleno de coisas que não servem para nada, mas com as quais somos obrigados a lidar. 

Ode à velha camiseta surrada

Está no romance Relicário de todas as coisas, do escritor Luís André Nepomuceno: “Profundas como são, as noites dizem mais do que o dia”. Sim. Sou criatura da noite. Não só pelo que cantam o Bruce Springsteen e a Patti Smith: “A noite pertence aos amantes”. Ou estes àquela. Tanto faz. Além do mais, noites abarcam “mistérios”, sugestões, aquilo que só é intuído mas não tornado claro nem clarividência. Felizes os que mergulham na noite saindo de casa; felizes os que mergulham na noite ficando em casa.

Todavia, a noite, em tese, não tem algo que é um prazer dos dias: a velha camiseta surrada. Sim, ela pode ser usada à noite, mas essa velha camiseta é insuperável quando vestida, por exemplo, numa pacífica tarde de domingo. A noite tem suas belezas, suas sombras, suas luzes, seus meios-tons, seus matizes indefinidos, imprecisos. O dia e a noite têm glórias diferentes. Uma das glórias do dia é usar a velha camiseta surrada. Elas podem ser usadas à noite, o que seria uma libertação. Afinal, isso seria levar para a noite a essência do que somos durante o dia.

A velha camiseta surrada em que entramos durante o dia, num dia de folga, é companheira que gostaríamos de levar para a vida toda. Nem precisam ser passadas; se estão limpinhas, nos envolvem com sua tranquila experiência, fazendo com que sejamos aquilo que somos quando destituídos de vaidades, de acessórios, de manhas, de artimanhas, de invólucros. A velha camiseta surrada é expressão do que somos quando estamos à vontade, seja sozinhos, seja acompanhados. Usualmente, não a vestimos diante dos quais não conhecemos bem, não a vestimos perante desconhecidos, não a vestimos quando queremos conquistar, não a vestimos quando é hora de sair para o trabalho. Fazer tudo isso com ela, repito, seria libertador, mas não é a norma.

A velha camiseta surrada é abrigo, familiaridade, descompromisso bom, preguiça benéfica, relaxamento necessário, paz revigoradora, refúgio ascético. Ela, sim, conhece nosso cheiro real, sabe daquilo que somos quando não precisamos fingir nem usar máscaras. A noite nos dá a possibilidade de exercemos um lado que é um rito, e, como ritual, requer preparo, roupagem, essências não produzidas por nós. A noite com suas poções e suas nuances é o exercício de nosso lado escuro, obscuro, de que somos também feitos e de que tanto precisamos. A velha camiseta surrada é a nossa parceira de nossa faceta solar.

Não é fácil se livrar de uma velha camiseta surrada. Os desavisados, por vezes, não entendem os motivos pelos quais não nos desapegamos de vez de uma peça que, em aparência, nada mais tem a oferecer. Tenho três ou quatro dessas camisetas mantidas há décadas (a velha camiseta surrada é um dos prazeres da maturidade). Sempre que abro o guarda-roupas e me deparo com uma delas, penso ser chegado o momento de me livrar dela. Resoluto, retiro-a do cabide. No momento de jogá-la fora, eu a revisto, revestindo-me de regozijo. A velha camiseta surrada me lembra de que a simplicidade é confortável e sábia.