Está no romance Relicário de todas as coisas, do escritor Luís André Nepomuceno: “Profundas como são, as noites dizem mais do que o dia”. Sim. Sou criatura da noite. Não só pelo que cantam o Bruce Springsteen e a Patti Smith: “A noite pertence aos amantes”. Ou estes àquela. Tanto faz. Além do mais, noites abarcam “mistérios”, sugestões, aquilo que só é intuído mas não tornado claro nem clarividência. Felizes os que mergulham na noite saindo de casa; felizes os que mergulham na noite ficando em casa.
Todavia, a noite, em tese, não tem algo que é um prazer dos dias: a velha camiseta surrada. Sim, ela pode ser usada à noite, mas essa velha camiseta é insuperável quando vestida, por exemplo, numa pacífica tarde de domingo. A noite tem suas belezas, suas sombras, suas luzes, seus meios-tons, seus matizes indefinidos, imprecisos. O dia e a noite têm glórias diferentes. Uma das glórias do dia é usar a velha camiseta surrada. Elas podem ser usadas à noite, o que seria uma libertação. Afinal, isso seria levar para a noite a essência do que somos durante o dia.
A velha camiseta surrada em que entramos durante o dia, num dia de folga, é companheira que gostaríamos de levar para a vida toda. Nem precisam ser passadas; se estão limpinhas, nos envolvem com sua tranquila experiência, fazendo com que sejamos aquilo que somos quando destituídos de vaidades, de acessórios, de manhas, de artimanhas, de invólucros. A velha camiseta surrada é expressão do que somos quando estamos à vontade, seja sozinhos, seja acompanhados. Usualmente, não a vestimos diante dos quais não conhecemos bem, não a vestimos perante desconhecidos, não a vestimos quando queremos conquistar, não a vestimos quando é hora de sair para o trabalho. Fazer tudo isso com ela, repito, seria libertador, mas não é a norma.
A velha camiseta surrada é abrigo, familiaridade, descompromisso bom, preguiça benéfica, relaxamento necessário, paz revigoradora, refúgio ascético. Ela, sim, conhece nosso cheiro real, sabe daquilo que somos quando não precisamos fingir nem usar máscaras. A noite nos dá a possibilidade de exercemos um lado que é um rito, e, como ritual, requer preparo, roupagem, essências não produzidas por nós. A noite com suas poções e suas nuances é o exercício de nosso lado escuro, obscuro, de que somos também feitos e de que tanto precisamos. A velha camiseta surrada é a nossa parceira de nossa faceta solar.
Não é fácil se livrar de uma velha camiseta surrada. Os desavisados, por vezes, não entendem os motivos pelos quais não nos desapegamos de vez de uma peça que, em aparência, nada mais tem a oferecer. Tenho três ou quatro dessas camisetas mantidas há décadas (a velha camiseta surrada é um dos prazeres da maturidade). Sempre que abro o guarda-roupas e me deparo com uma delas, penso ser chegado o momento de me livrar dela. Resoluto, retiro-a do cabide. No momento de jogá-la fora, eu a revisto, revestindo-me de regozijo. A velha camiseta surrada me lembra de que a simplicidade é confortável e sábia.
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