Eu me surpreendi com a densidade e com as implicações de “O voo” [Flight, 2012], do diretor Robert Zemeckis. O roteiro é de John Gatins. Comecei a assisti-lo sem saber quem era o diretor; pensei que se tratava de mais um daqueles filmes que lidam com catástrofes quando um avião cai.
Não é o caso de “O voo”. Se, de fato, há a queda de uma aeronave, isso é somente pretexto para que questões como o alcoolismo e o papel do direito num processo judicial sejam abordadas. Julgar é muito, muito difícil; isso paira o tempo todo.
O filme é estrelado por Denzel Washington. Prestem atenção no quanto ele está impecável no papel de William “Whip” Whitaker, piloto da aviação civil. Nos momentos em que está tenso, há trejeitos e tiques que se repetem e que se intensificam nas cenas finais. Washington convence como alcoólatra que se nega a assumir o vício.
Interessante é que Whitaker é um daqueles personagens que nos fazem torcer por ele, mesmo estando nós cientes de suas graves irresponsabilidades. É que reconhecemos o genial profissional que ele é, ao mesmo tempo em que logo sacamos que sua empáfia é sintoma de quem finge saber lidar com o alcoolismo.
Whitaker acaba conhecendo Nicole, interpretada por Kelly Reilly. Nicole é dependente de drogas. O encontro que haverá entre os dois é sugerido numa sequência tensa: Nicole está em terra, numa maca, depois de ter consumido droga pesada; Whitaker está pilotando um avião, que está prestes a cair.
É uma cena rápida, que me remete ao poema “Amor à primeira vista”, da poeta polonesa Wisława Szymborska. No poema, há a sugestão de que o primeiro encontro entre um casal já estava sendo tramado antes que ocorresse. Não sei se Zemeckis, o diretor, ou se Gatins, o roteirista, tinham o poema em mente ao compor a cena. À parte isso, ela faz lembrar o texto de Szymborska: a arte imita a arte.
Outro ponto alto do filme é a trilha sonora, regada a clássicos do pop/rock, em especial The Rolling Stones. Se Whitaker está curtindo alguma canção, ou se o figuraça Harling Mays, interpretado por John Goodman, entra em cena, esteja certo de que isso é garantia de boa música. Repare que próximo ao fim da película, em sequência gravada num elevador, “With a little help from my friends”, dos Beatles, é apropriadamente executada, em breve e sutil solo de piano.
Às vezes, julgamos uma pessoa por um gesto, por um delito. Julgar é complicado. Se por um lado Whitaker tem habilidade rara ao pilotar, por outro, é consumido pelo vício. E se o vício e o talento estiverem num mesmo instante?... Por fim, abaixo, a transcrição do poema que mencionei, de Wisława Szymborska. A tradução é de Regina Przybycien.
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Amor à primeira vista — Wisława Szymborska
Ambos estão certos
de que uma paixão súbita os uniu.
É bela essa certeza,
mas é ainda mais bela a incerteza.
Acham que por não terem se encontrado antes
nunca havia se passado nada entre eles.
Mas e as ruas, escadas, corredores
nos quais há muito talvez se tenham cruzado?
Queria lhes perguntar,
se não se lembram —
numa porta giratória talvez
algum dia face a face?
um “desculpe” em meio à multidão?
uma voz que diz “é engano” ao telefone? —
mas conheço a resposta.
Não, não se lembram.
Muito os espantaria saber
que já faz tempo
o acaso brincava com eles.
Ainda não de todo preparado
para se transformar no seu destino
juntava-os e os separava
barrava-lhes o caminho
e abafando o riso
sumia de cena.
Houve marcas, sinais,
que importa se ilegíveis.
Quem sabe três anos atrás
ou terça-feira passada
uma certa folhinha voou
de um ombro ao outro?
Algo foi perdido e recolhido.
Quem sabe se não uma bola
nos arbustos da infância?
Houve maçanetas e campainhas
onde a seu tempo
um toque se sobrepunha ao outro.
As malas lado a lado no bagageiro.
Quem sabe numa note o mesmo sonho
que logo ao despertar se esvaneceu.
Porque afinal cada começo
é só continuação
e o livro dos eventos
está sempre aberto no meio.