sexta-feira, 27 de agosto de 2021

“Groênlandia” “a fora”, de animais únicos “à atrações turísticas”


Que grandes empresas não dão a mínima para clientes, qualquer um sabe. A consequência desse não se importar com os consumidores desemboca no desprezo com o idioma. No dia 24 de dezembro de 2020, o Google estampou em sua página inicial “siga a jornada dele mundo a fora”. No dia 24 de agosto deste 2021, a tela do Windows continha o trecho “de animas únicos à atrações turísticas”. Ontem (26/08/21), enquanto eu assistia à partida entre Fluminense e Atlético/MG, chamada do SporTV exibiu na tela a palavra “Groênlandia”.

Num país em que pessoas aprovam a gasolina custar sete reais, aprovam um presidente imbecil, ditatorial e genocida e aprovam um ministro da economia que não vê problema em o custo da energia aumentar nem em atirarem restos de comida para os pobres, é natural que desleixo com o idioma não seja percebido; se for, esse desleixo é encarado como desimportante. O descuidado com o português é sintoma de um país esculhambado que não capricha em nada. De professores a advogados, passando por juízes, empresários e “coaches”, usa-se uma linguagem que parece querer se articular, mas que acaba transmitindo algo diverso do que era a intenção. 

Qualquer idioma é muito difícil, todo mundo erra ao lidar com palavras. Contudo, o que há em parte do Brasil é preguiça, desinteresse em aprender, não preocupação com o acerto; no caso de grandes empresas, nem contratam revisor. Uma parcela do país é burra, negligente, imediatista. Essa parcela adora falar bem do capitalismo, mas não tem a básica inteligência de perceber que dar resposta a e-mails pode atrair clientes. Escrever mal e falar mal são consequências do modo de ser de uma multidão que exibe com orgulho tacanho a ignorância, por não ter a coragem e o ânimo para buscar o conhecimento. Uma parte do Brasil é um país covarde, pobre e pusilânime, usando disfarce de civilidade. 

terça-feira, 24 de agosto de 2021

Atire a primeira pedra

Integrante do legislativo municipal, durante reunião da câmara municipal, reclamou de objeto de estudo de estudante de mineração. Na opinião do vereador, em vez de questões sociais, a discente deveria ter se detido sobre “trabalhos voltados sobre a classificação do mineral, calcário, sobre não sei o quê”. De cara, diga-se que o estudo de determinado aspecto técnico não impede o estudo de questões sociais. Manifestar o pensamento de que uma questão técnica anula uma questão humanística é típico de quem desconhece o processo de evolução das ciências e das humanidades. O que é técnico e o que não é técnico são faces de uma moeda.

Ainda se referindo ao trabalho da estudante, o político patense declara: “Os trabalhos feitos, na disciplina dela, que é mineração, não faz [sic] sentido. Isso aí tá parecendo mais trabalho de ciências sociais. Ela não vai chegar numa Vale da vida, vai ficar falando de quilombola pro pessoal. Ela vai querer fazer um estudo, análise daquela terra, daquela mineração, pros trabalhos da empresa. Se eu fosse empresário, contrataria nesse sentido”.

O discurso tem cara de nobreza, de quem se importa com o que está sendo estudado, de quem se importa com o futuro da jovem; todavia, é uma falácia. Primeiro, na proposta de que deve haver uma radical separação entre o que é técnico e o que é social; segundo, por postular que se alguém se envolve com um estudo técnico, não caberia a esse alguém refletir sobre a sociedade em que vive. O discurso da autoridade tem cara de preocupação social, quando, na verdade, está propondo ausência de reflexão.

O fato de alguém estudar uma determinada disciplina técnica não impede que esse mesmo alguém reflita sobre a sociedade que está em torno desse conhecimento técnico. A separação da realidade entre aquilo que é técnico e aquilo que não é técnico é errônea ou malévola. Essa separação pressupõe divisão do que somos, pressupõe que a uns cabe análise técnica e a outros cabe, por exemplo, análise sociológica, e ai do que técnico que se aventurar a análises sociológicas, ai do sociólogo que quiser compreender questões da matéria. 

Na citação do vereador, a Vale foi mencionada. Qualquer busca rápida na internet revela o quanto a Vale é capaz de destruir. Quem está em Brumadinho sabe disso. Ainda assim, numa realidade em que empresas matam pessoas e biomas, o vereador advoga a favor de técnicos que não pensam sobre a realidade em que vivem, mas que tão somente se dediquem a estudar os aspectos técnicos da profissão que exercem ou que possam vir a exercer.

Para a Vale, só para se ter um exemplo, é ótimo que um técnico não pergunte, não questione. A partir da fala do vereador, conclui-se ser ótimo que, digamos, um eletricista não produza pesquisa sobre as injustiças do mundo e sobre o processo histórico. Se o sujeito lida com mineração, na visão do vereador, não caberia a esse sujeito produzir trabalhos que se debrucem sobre questões sociais; esse sujeito, na visão do político, em vez de tentar entender o mundo em que está, deveria se debruçar unicamente sobre minerais.

O vereador ignora (ou prefere passar a ideia de que ignora) o básico: a pedra se chama pedra porque recebeu do homem esse nome; o mineral se chama mineral porque recebeu do homem esse nome. O conhecimento técnico, seja da mineração seja de qualquer outra área do conhecimento, é intermediado pela humanidade, é realização da humanidade. Os minerais não se classificaram, não se nomearam, não se estudaram; as pedras não se coletaram, não determinaram elas mesmas as suas origens, as suas idades. O ser que atribui nomes e classificações à natureza é o ser humano.

Gente não pode ser decalcada nem retirada da teia histórica de que faz parte. A mesma pessoa que estuda uma pedra é a pessoa que chega em casa, abraça os pais ou se emociona com uma canção. A mesma pessoa que estuda uma pedra é a pessoa que pode se perguntar, em trabalho acadêmico, por que os índios estão sendo mortos ou por que o Brasil está sendo queimado. A mesma pessoa que estuda uma pedra pode responder, em trabalho acadêmico, à maneira dela, o motivo de haver brasileiros que defendem tortura e ditadura.

Para gente como o vereador e para empresas como a Vale, é bom que os que estudam pedras não fiquem se fazendo perguntas demais. “Se você estuda pedras, dedique-se a estudar pedras. Nada de ficar estudando quilombolas. Isso não é de sua alçada”, alegariam. Pensamentos como o do vereador desprezam a natureza eclética do ser humano e a reduzem a algo mecânico, obediente, petrificado. O vereador representa um Brasil que não quer gente pensando, mas, sim, pedras.

Pedras não questionam, não têm múltiplos interesses, não expõem realidades incômodas, não fazem perguntas perturbadoras. Pedras obedecem, estudam o que o outro determina que deve ser estudado. Políticos há que não querem cidadãos, mas pedras que votem neles. Tendo votado, que a pedra continue sendo pedra. Uma pedra não retrucará, não contextualizará, não fará associações, não produzirá arte nem história nem ciência. 

Gente não é pedra. Você, que quer viver num conforto em que haja seres estáticos baixando a cabeça, pode espernear. Gente não foi, não é, não será pedra, por mais que você insista. Uma pessoa que reflete sobre si mesma e sobre o mundo em que vive é perigosa porque desestabiliza construções que servem a poucos e banem muitos. Que aquele que queira estudar pedra estude pedra; que aquele que queira estudar questões sociais estude questões sociais. Que aquele que queira estudar pedra e que queira estudar questões sociais estude pedra e questões sociais.

Que a pedra, como metáfora e como material de estudo, seja bem-vinda. Como metáfora, que a firmeza dela sirva de inspiração. Que se tenha firmeza de pedra, delicadeza de brisa, paixão de fogo, paciência de estalagmite. Gente é pedra, vereador; pessoas são pedras; pedras em movimento com asas poderosas, cientes de que “pedras que rolam não criam limo”. Pessoas vão se polindo, lapidando-se, aprendendo, estudando. Ideias impedem que pessoas se tornem lodosas. A má notícia para o vereador é haver pessoas que são pedras pensantes. Quando atiram pedras nessas pessoas, essas pessoas sabem segurar pedras. Em metáfora e em literalidade. 

Lembranças

Sim, Lembranças [Remember me, 2010], dirigido por Allen Coulter e roteirizado por Will Fetters, é estadunidense demais. Defende os valores deles, exalta a individualidade deles, ainda que poetize essa individualidade. Nenhuma obra de arte deve ser estudada fora da realidade que a produz; o problema de Lembranças é exaltar um aspecto da realidade ou da história que corresponde à imagem que os EUA vendem de si, com seus mitos e histórias (de superação). A produção lambe uma ferida que é do país deles e que foi por ele causada. No contexto histórico internacional, uma produção cheia de problemas; como narrativa fílmica, um primor.

Nos segundos iniciais da produção, duas famosas edificações aparecem ao fundo, o que “adianta” o desfecho e confere a Lembranças um caráter não somente típico da imagem que os EUA continuam passando para o mundo, mas também faz com que a própria cidade em que a história se passa seja, por assim dizer, personagem do enredo. O filme, todavia, tem a sensibilidade de perceber que por trás de cada habitante há uma história, e que essa história é avaliada ou reavaliada quando há um momento divisório na vida. 

Aquilo de que somos feitos: nossas derrotas, vitórias, vivências, modo de vida; aquilo que representamos, as coisas que defendemos, o que condenamos; nossas idiossincrasias, o que fazemos, o que deixamos de fazer, o que foi feito de súbito... Isso serve para algo? Caso sirva, para quê? Esses questionamentos ficam rondando a mente depois que o filme termina. Não há respostas; a existência delas poderia incorrer em amadorismo ou em pieguice. 

Lembranças é também sobre o fio do destino, não no sentido de pré-destinação, mas no sentido de esmiuçar o que ocorreu até o dia em que a vida dos personagens foram marcadas pelo histórico evento que há no fim. Como escrito, Lembranças não oferece respostas; em contrapartida, semeia profícuos e belos questionamentos. 

Os personagens convencem ainda que o filme não tivesse o desfecho que tem. Em função desse mesmo desfecho, olhamos para as vidas deles em retrospecto, passamos a nos simpatizar (mais) com eles, que, por serem quem são, já eram convincentes. É rico o modo como o filme mostra o quanto a História reverbera na história de cada dos personagens, e em como qualquer tentativa de compreensão, seja da realidade individual seja da realidade histórica, somente dever ser esboçada a partir do conhecimento. 

Lembranças é um filme sobre um fato histórico? Hum... É... Não há como separar o fato histórico a que faz referência das vidas dos personagens; contudo, a poesia do filme está na necessária compreensão de que o fato histórico tem consequências individuais. A produção lida com histórias individuais na História. 

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Pague minha lua de mel

Há muita gente lucrando, de modo desonesto, com o governo Bolsonaro. Estes, é claro, não se importam com alguma corrupção que possa partir dele ou que por ele possa ser encoberta. Há os que o apoiam por causa das pautas preconceituosas por ele defendidas; num país pleno de preconceituosos, essas pautas ganham adeptos facilmente. Por fim, há os imbecis que caíram na lábia de que Bolsonaro seria combate contra corrupção. Votou em Bolsonaro quem está a fim de lucrar de modo corrupto, quem tem preconceitos e/ou quem acredita em balelas.

Em abril de 2020, o excelente Lúcio de Castro já havia revelado esquema de superfaturamento do então deputado Jair Bolsonaro em reembolso da verba de combustível. Agora, mais recentemente, os autores Eduardo Militão, Eumano Silva, Lúcio Lambranho e Edson Sardinha, livro Nas Asas da Mamata, revelam que Jair Bolsonaro e Michelle Bolsonaro viajaram, durante lua de mel, bancados por dinheiro público. Ainda segundo o livro, Flávio Bolsonaro e Carlos Bolsonaro também tiveram viagens particulares bancadas com dinheiro público.

Os corruptos, os preconceituosos e os tolos não precisam se preocupar: em caso de aperto de algum deles, Paulo Guedes já separou a lavagem, que será oportunamente jogada no chão, para que os famintos possam lambê-la. Será mais um modo de essas criaturas satisfazerem os desejos, gostos e caprichos dos verdugos, que podem fazer, com dinheiro público, quantas luas de mel quiserem. 

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

A rocha, o vendaval, a onça sem fome


Há dias, recebi um vídeo, que, tenho a impressão, é montagem. Nele, uma escavadeira, sem intenção de, deixa uma rocha descer uma encosta. Segundos depois, a rocha se aproxima de um carro azul. Nesse momento, o espectador tem dimensão abrangente do tamanho da rocha; ao que parece, ela vai esmagar carro e motorista, que buzina. A rocha para ao lado do carro, tocando-o de leve. Nesse momento, o vídeo termina, com uma voz masculina comentando: “Nossa Senhora! Se essa mulher não buzina, a pedra não tinha parado, não”.

Não sei como a voz sabia que era uma mulher que estava dirigindo (pode até ser que nem houvesse motorista dentro do carro, tendo o barulho de buzina sido acrescentado depois, em edição), não sei onde o fato teria ocorrido, não sei quando teria ocorrido. Sendo peça de ficção ou sendo um breve registro do que estava diante da câmera do celular, o vídeo vai além do divertido comentário feito pelo homem, mesmo já valendo a pena pelo humor que tem.

Antes de eu comentar sobre o alcance não apenas humorístico do vídeo, ele me remeteu a uma montagem fotográfica que me enviaram há alguns anos. No registro aéreo, feito com grande angular, havia uma série de casas de madeira destruídas, quem sabe, por um vendaval, por um tornado ou por algo assim. Em meio aos destroços, intacta, incólume, altiva, orgulhosa, bem no meio do quadro fotográfico, uma única casa. Claro que a inverossimilhança, nesse caso, não é problema. A imagem vale não pelo caráter de realidade com que não se preocupou (nem tinha de se preocupar), mas pelo que ela prega: além da foto, havia uma frase de cujas palavras não me lembro com exatidão. Eram mais ou menos assim: “O Senhor protege a casa do que tem fé” (o que nos leva a concluir que, na fotomontagem, os que estavam nas casas derrubadas não tiveram fé ou não a tiveram, talvez, o bastante — não sei se a fé tem gradações ou se é algo absoluto).

Tanto o vídeo quanto a foto ilustram a crença de que ações ou rogos humanos têm poder de interferir no curso dos acontecimentos ou da natureza, como se os acontecimentos se importassem com a gente, como se a natureza se importasse com a gente. Certa vez, um amigo comentou que, esperando por um ônibus num abrigo, em estrada de roça, percebeu uma onça atravessando o caminho. Ela olhou para ele por um ou dois segundos; logo após, foi embora. Conclusão do amigo: “Ela não estava com fome nem tinha filhotes com fome”.

Se o felino estivesse com fome ou se os filhotes dele estivessem com fome, o amigo poderia ter sido uma opção no cardápio. Não passariam pela cabeça do bicho coisas como “Fulano é gente fina, é um professor responsável, é dedicado pai de família. Vou poupá-lo”. Um vendaval ou um furacão destrói indiscriminadamente, sem levar em conta a fé das pessoas ou sem levar em conta se o cidadão já quitou a última prestação da casa. Uma rocha despencando pela ribanceira não vai mudar o trajeto nem vai parar de rolar por causa de uma buzina, que pode ter sido acionada num reflexo (o que não mudaria a trajetória da rocha).

A natureza é indiferente a prédicas, a apelos, a orações. O homem a modifica não por intermédio do que diz ou do que pensa, mas por meio do que desmata, do que polui, não importa o nome que se dê (desespero na hora do aperto, reflexo, fé) no instante em que alguém roga ou buzina na intenção de modificar a física, a química, a biologia. Do mesmo modo que nada intervirá a favor da zebra no momento em que o leão estiver a centímetros do pescoço dela, nada interferirá a nosso favor quando uma onça faminta ou que se sente ameaçada estiver a centímetros de nos abocanhar. Se nos safarmos, não terá sido por causa de algumas palavras proferidas nem por causa de uma buzina a percorrer o espaço com desespero. A natureza teria sossego se o homem, sempre tão preocupado com o próprio umbigo, se contentasse com proferir palavras ou com buzinar. 

Parvoíces

Bolsonaro é um parvo cruel eleito por cruéis parvos. Prova disso é que continuam o apoiando. O envolvimento do presidente com neonazistas, para ficar em divulgação recente, e a manutenção do apoio ao governante dizem muito sobre ele e sobre os que o elegeram. Afinal, a desumanidade de Bolsonaro já era bem conhecida antes da eleição; afirmar "eu não sabia dela" é cinismo. O que muitos não supunham é a desumanidade dos que o elegeram.