domingo, 22 de abril de 2018

O conto de Lucas

Quaquá, uma cidade que fica no exoplaneta 2405, tem políticos e empresários que barraram o florescimento de uma universidade pública no local. Nesse longínquo tempo, um cidadão chamado Lucas Bridge protestou contra a falta de espírito público desses empresários e políticos, criou petições, acionou o ministério público. Os que impediram a universidade, donos de Quaquá, riram tanto de Lucas que as gargalhadas puderam ser ouvidas lá na Terra. 

quarta-feira, 18 de abril de 2018

Azul e amarelo

Durante catorze anos disseram que azul é amarelo.

Tomé levou um dia para acreditar que azul é amarelo.
Jeane levou dois dias para acreditar que azul é amarelo.
Tatiane levou três anos para acreditar que azul é amarelo.
Gustavo levou quatro anos para acreditar que azul é amarelo.
Pedro levou treze anos e meio para acreditar que azul é amarelo.

Ana Vitória nasceu.
Abriu os olhos.
Viu que isso era bom.
A primeira coisa que disseram para ela foi que azul é amarelo. 

Dai aos patos o que é dos patos

Quando lancei meu quarto livro, fui ao Rio de Janeiro participar do programa Conversa com o Autor, apresentado por Katy Navarro. Na ocasião, ela me perguntou se havia mineiridade no que escrevo. Eu disse que não há. Pelo menos não há a confirmação do mito da mineiridade, um mito que povoa o imaginário precisamente pela força que os mitos têm. Se há algo de mineiro no que escrevo, isso se deve apenas ao fato de eu ter nascido em Minas Gerais. Não há nada demais nisso; eu ter nascido aqui é apenas algo circunstancial. Eu não valeria nem mais nem menos se tivesse nascido lá no Acre ou lá em Tegucigalpa.

No que já publiquei em livros, Patos de Minas está presente, de modo explícito, duas vezes. No Algo de Sempre, escrevi:

Patos de Minas.
Cidade incrível. 
Aqui acontecem coisas 
que só acontecem 
em todo lugar.

No Dislexias, escrevi:

Nasci em Patos de Minas.
Contra patos não há argumentos.

Menciono a mim mesmo não por empáfia infantiloide, mas para ilustrar que não embarco nisso de mineiridade. Com isso, não nego que Minas Gerais tenha suas peculiaridades, mas, ora, todo lugar tem suas peculiaridades. Ao mesmo tempo, Minas pode ser universal, assim como pode ser universal qualquer lugar.

Qualquer região é peculiar e universal. Isso vale para coisas ruins. É frequente atribuírem a Patos de Minas um conservadorismo que existiria somente aqui. Mas há gente conservadora no mundo inteiro. De modo análogo, isso vale para o bairrismo, a vaidade, o desejo de a cidade ser maior do que é, a ilusão de que aqui é mais especial do que ali ou do que lá ou acolá. Isso não são exclusividades patenses.

Li no Patos Hoje que alguns têm criticado, seja por hipocrisia, seja por conservadorismo, um quadro de Gisele Tavares (não a conheço). É óbvio que tanto a hipocrisia quanto o conservadorismo metido a moralista são lamentáveis. Com o que não concordo, é com os que têm dito que somente numa cidade como Patos de Minas poderia haver tamanha hipocrisia ou tamanho conservadorismo.

Na hora de dizer que a amálgama entre representação do triângulo (invertido) da bandeira de Minas Gerais e dos pelos vermelhos de uma mulher é algo libertino, acionam sua verborragia, eriçam seus pruridos “virtuosos”. O “cidadão de ‘bem’” é assim em sua hipocrisia ou em seu conservadorismo seletivo. Só que a caretice, a hipocrisia e o conservadorismo não são atributos só de cidades pequenas. Tentativa de banimento de performances em museus já ocorreram em grandes centros, obras artísticas já foram proibidas de ficarem em lugares públicos em capitais.

Há sempre representantes dos bons costumes berrando contra o que consideram delitos. O que praticam nunca é delitoso. Escreveu Oscar Wilde: “Pornográfico é o sexo dos outros”. Patos de Minas merece críticas pelo conservadorismo, pela empáfia, pela vaidade, pela caretice, pela falta de cultura, pelos políticos que tem e teve. Mesmo assim, dizer que essas coisas são piores aqui é ser injusto com a terra dos patos selvagens. 

Portas

Abre a porta.
Abre a outra porta.
Abre todas as portas.
Se quiseres,
brincamos o jogo em que
entro pela janela.

Tua casa é meu lar,
meu bar.
Entro sedento,
saio embevecido.
Eu me vou embora.
Sei que voltarei.
Tua casa é por onde entro
para querer não mais sair. 

terça-feira, 17 de abril de 2018

Modos de expressão

A edição 138 da revista Piauí tem um (excelente) texto de Michel Laub intitulado “Notas sobre o fígado”. O artigo é sobre os bastidores dos prêmios literários no Brasil. Num trecho, Laub escreve: “Segundo um juiz habitual de prêmios no país, quando há debates para se chegar a um consenso, a melhor coisa para um livro é ter um defensor ‘agressivo’, pois isso constrange quem precisa argumentar contra’”.

Quem já conviveu em grupo sabe que defensores agressivos de fato constrangem, intimidam, não importa se no trabalho, se em família, se numa conversa de bar, se em redes sociais. A sutileza não tem espaço; o ruído que ela faz é solapado pelos decibéis da retórica sem conteúdo mas dita em volume alto.

Saber quando calar e quando falar é arte difícil e ligada a questões pessoais. Não bastasse, ainda que maduros, ainda que experientes, é comum falarmos e depois nos arrependermos ou não falarmos e depois nos arrependermos. Mesmo sendo difícil lidar com esse equilíbrio entre silêncio e palavra, a sutileza não pode ser abandonada quando optamos por dizer.

Quem fala alto ou quem grita convence muitos, quem vocifera se impõe diante de turbas animalescas. Sempre foi moeda corrente as pessoas deixaram-se levar não pelo conteúdo de algo, mas pelo modo tosco como esse algo é dito. O mundo é um lugar inóspito para a elegância, para a ponderação. Bons modos convencem poucos; isso não quer dizer que devamos abrir mão deles.

Ponderação ou sutileza não deveriam se calar. Os barulhentos sabem que não precisam de ideias, mas quem as tem não deveria deixar de expô-las. Não na esperança de convencer os que se deixam levar por quem rosna nem na expectativa de fazer os ruidosos mudarem as práticas. A elegância da expressão não deveria se calar porque elegância é sintoma de humanidade e de inteligência.

Essas são duas coisas que nunca estiveram na moda, mas são viáveis, possíveis, fazem parte do que há em ser gente. Elas existem; em nós, o que existe, se existe mesmo, quer se manifestar, quer ser. Quem oferece a truculência age assim porque é o que tem a oferecer; aquele que tem a elegância não deveria deixar de ofertá-la. Além do mais, exercer a elegância que se tem é, antes de tudo, um dever da pessoa para consigo mesma. No que diz respeito à convivência, há quem atribua charme no silêncio, sem se dar conta de que a expressão pode ser sedutora. 

sábado, 14 de abril de 2018

"Radio Gaga"

Decidi hoje comprar um rádio. Eu nem sabia que ainda eram fabricados. São. Uma mercearia aqui perto de casa os vende. Perguntei para o casal que é dono do estabelecimento quem ainda compra rádio. Segundo eles, o pessoal que mora na roça.

Patos é uma roça um pouco maior (não sou pejorativo ao afirmar isso; sou daqui). Mas é claro que não foi por isso que comprei um rádio. Comprei para conviver outra vez com um dispositivo que sempre tive por perto, por causa do meu pai, que sempre escutava rádio.

O modelo que comprei é simples, barato (custou só cento e quinze reais), pequeno (mede vinte e um e meio de largura e treze e meio de altura). Embora abra concessões modernosas (aceita pendrive, cartão SD e capta áudio de TVs), é no visual e nos atributos um aparelho de rádio à moda antiga. Sintoniza AMs (embora estejam migrando para a frequência modulada), FMs e ondas curtas.

À medida que o sintonizador é girado, pode-se escutar o chiado típico que há quando o aparelho tenta achar as emissoras. Tanto gostei de manejar o brinquedo que mesmo para sintonizar as rádios locais de maior potência não recolhi a antena. Estações se misturam, uma ou outra é escutada ao fundo, lá “longe”. O Queen está certo: “Radio, someone still loves you”. 

terça-feira, 10 de abril de 2018

Filha de Deus

Ana de Armas é uma das mais talentosas e belas atrizes da nova geração (outra talentosa e bela é Alicia Vikander). De Armas nasceu em Cuba; tem vinte e nove anos.

Vale demais a pena conferir as atuações dela em Cães de Guerra, em Blade Runner 2049 e em Filha de Deus (direção e roteiro de Gee Malik Linton). Este é estrelado por ela, que está no papel de Isabel de la Cruz, católica no nome e no comportamento.

O namorado dela está no Iraque, tendo sido convocado pelo exército americano. Num jantar com a família dele, ela anuncia que está grávida, declarando ser isso um milagre. Claro que ninguém acredita nela.

Paralelamente, o detetive Galban, interpretado por Keanu Reeves, está investigando o assassinato de seu parceiro profissional. Pouco antes de ser assassinado, havia tirado fotos de Isabel e de amigos dela, que estavam em frente a uma boate. Junte-se a isso o fato de que Isabel vê “fantasmas”. Há ainda a convivência dela com a garota Elisa (interpretada por Venus Ariel; foi o papel de estreia dela no cinema), que é aluna de Isabel numa escola infantil.

Quando Isabel diz que a gravidez dela é um milagre, ficamos sem saber se ela é embusteira ou se é louca. O ritmo do filme, um tanto lento, acelera-se nas sequências finais, quando se elucidam a questão de gravidez de Isabel, da convivência dela com Elisa e do assassinato do detetive. É quando Filha de Deus se revela um drama de fortes implicações psicológicas, a ponto de Isabel ter me remetido a Trevor Reznik, o personagem de Christian Bale em O Operário

Versão eletrônica de livro sobre Lula pode ser baixado gratuitamente

Em iniciativa da editora Boitempo, é possível baixar de graça a versão digital do livro “A verdade vencerá”, sobre Lula. É uma entrevista concedida aos jornalistas Juca Kfouri e Maria Inês Nassif, ao professor de relações internacionais Gilberto Maringoni e à editora Ivana Jinkings, fundadora e diretora da editora Boitempo. Há também textos de Eric Nepomuceno, Luis Fernando Verissimo, Luis Felipe Miguel e Rafael Valim. Do texto do Verissimo, cito o trecho abaixo.

(...) “A desigualdade brasileira não é uma fatalidade, tem autores identificáveis, pais conhecidos. Através da história, ela vem sendo mantida, principalmente, pelo que pode ser chamado de controle de natalidade de qualquer opção de esquerda, proibida de nascer ou se criar. Até onde a casta dominante está disposta a ir para evitar que a esquerda prolifere, nós já vimos. Os gritos de dor dos torturados pela ditadura de 1964 ainda ecoam em porões abandonados. E 1964 é apenas um exemplo do que tem sido uma constante histórica”. 

Apontamento 373

Cozinhar é temperar alquimia com paciência. 

sábado, 7 de abril de 2018

Uma ideia

Nunca duvidei de que prenderiam Lula. Era questão de tempo. Levando-se em conta o ataque de décadas contra ele, demoraram. É que quiseram dar um ar de legalidade e de civilidade aos preconceitos e ao ódio que têm.

Claro que não concordo com as estratégias sujas deles, embora esteja por demais evidente que obtiveram sucesso. Isso prova que o êxito, dependendo do que o causa, depõe contra os bem-sucedidos.

O impedimento de Dilma, o acordo entre judiciário, imprensa e meios de comunicação, a prisão de Lula... Mas não se iludam: a elite perniciosa que o Brasil tem só vai sossegar quando Lula morrer. Por causa do fanatismo dessa elite, ele vai morrer no cárcere. Aí, sim, o plano deles terá recebido o que querem.

Haverá júbilo entre eles. Serão estrepitosos (assim como estão sendo agora). Talvez coloram as ruas vestidos com camiseta da CBF; alegarão patriotismo, terão orgulho em dizer que fizeram tudo pelo bem do Brasil. Sabemos que é para o bem deles, e, no caso desse pessoal, o bem deles implica impedir que aqueles que não são do time deles possam ter algo. Quem não é do time deles tem de ser erradicado, assim como vão erradicar Lula.

Em discurso realizado hoje, ele disse: “Eu vou sair de lá [da prisão] de cabeça erguida e de peito estufado”. Não acredito que ele vá sair vivo do cárcere. Não se trata de exercício barato de adivinhação nem de pessimismo de minha parte. Para afirmar isso, levo em conta o que a direita tem feito contra o Lula. Não vão deixá-lo sair vivo da prisão.

Mas ele mesmo se definiu, no mesmo discurso de hoje: “Eu não sou um ser humano, sou uma ideia”. Isso, sim, não há direita que mate. Nem a Globo nem a Veja nem o judiciário são capazes de matar a ideia de um Brasil para todos. Ela está em mim, ela está em você. Nós somos transitórios, Lula é transitório. A ideia, não. Ela já existia antes de nós, antes do Lula; ela existe, vai continuar existindo.

O corpo de Lula vai ficar na prisão. A história escancara o que fazem com o corpo de quem tem uma ideia: encarceram, torturam, matam. Mas o corpo que expressou uma ideia não ficou sozinho. A multidão de corpos se faz num mesmo espaço, num mesmo tempo. A multidão de ideias não depende do mesmo instante nem do mesmo local para existir. Vez ou outra, nossos corpos podem estar juntos. Mesmo quando não estiverem, mesmo quando eu tiver ido embora, mesmo quando você tiver ido embora, a ideia de um país que é também dos pobres vai existir. Isso independe de mim, de você, do Lula e das sacanagens da direita.

Uma ideia, a princípio, pode parecer vaga, etérea, imprecisa. Não é. Uma ideia é o auge do corpo; depois que ela sai da cabeça, não pode ser aprisionada. Engana-se quem pensa que apagar um corpo é apagar o pensamento. Nesse percurso, a direita ainda fará várias vítimas. Mas isso não impede nem vai impedir estes nossos corpos e outros corpos vindouros de disseminarem ideias e sonhos. 

De novo, Reinaldo Azevedo

Sou leitor do Reinaldo Azevedo desde quando ele escrevia para a revista Bravo!. Passado esse tempo, fiquei anos sem ter notícia do jornalista; depois, ele passou a escrever para a Veja, espaço em que se firmou como um dos porta-vozes da direita brasileira. Mesmo eu não concordando com o que ele escrevia para o semanário, era fácil reconhecer que ele escreve bem. Depois que deixou a Veja, Azevedo foi para a Jovem Pan (fácil reconhecer que ele tem voz boa e excelente dicção); tendo saído da emissora, foi para a Band. Nos estúdios do canal, tem sido uma das vozes da razão. Sobre a prisão de Lula, ele mesmo disse que há “um caso claro de perseguição política”.

Acho que entendo Azevedo. Ele é antiLula, nunca escondeu isso. Só que, ao que parece, ele tem honestidade intelectual. No fundo, na leitura que faço, ele não quer dar à esquerda motivos para que ela reclame com razão do que tem sido feito com o Lula. Não que Reinaldo Azevedo tenha mudado a maneira como encara o mundo. Não se trata disso: trata-se, sim, de fazer as coisas de modo que não restasse à esquerda argumentos para rechaçar o julgamento de Lula.

Não há como negar a eficácia do embuste que a direita está aprontando com o Brasil. Lula preso é o que queriam. Nesse aspecto, o sucesso da empreitada é inegável. Só que Reinaldo Azevedo é inteligente. Não mantém o debate em nível rasteiro. Tanto é assim que critica os que concordam com ele mas se expressam com insensatez. Da maneira como tudo foi arranjado, reacenderam a esquerda. Não é o que a direita queria. Não é o que Azevedo queria.

Para assistir ao vídeo em que ele se pronuncia, o link é este: https://bit.ly/2GJ6hKL. Abaixo, transcrição de alguns trechos da fala dele:

“Esses cuidados do Sérgio Moro de não usar algema, dar o benefício de se entregar... Puro fru-fru para disfarçar a truculência da decisão. Obviamente uma decisão coordenada entre os três desembargadores da 8ª turma e o Sérgio Moro.

“Cada vez mais convencido de que estamos lidando com fanáticos, porque não dão ao Lula nem o direito a recurso a que ele tem direito. Aí realmente é querer deixar claro o seguinte: nós fazemos nesse país o que bem entendemos. Infelizmente, não há direita liberal no Brasil, a direita no Brasil hoje é a direita chucra, com raras exceções.

“Sabe qual é o problema da direita brasileira? Ela odeia gente de língua presa, ela odeia gente de nove dedos, ela odeia gente de origem operária. Ah, não, porque ele roubou! Mentira. Mentira porque está cercada de outros ladrões.

Uma direita que não respeita direitos constitucionais, uma direita que não respeita a lei, uma direita que não respeita direitos individuais, uma direita que permite que a justiça se comporte como o poder absoluto, insisto, negando a um condenado a ter um recurso a que ele tem direito, independentemente do conteúdo da condenação, se justo ou injusto, isso não é direita liberal. Isso é no mínimo direita ‘fascistoide’. Porque aí a questão é a seguinte: já que nós não conseguimos nos impor eleitoralmente, então vamos tirar de circulação aquele que se impõe”. 

sexta-feira, 6 de abril de 2018

Gratto, Muylaert

Hoje pela manhã, recebi via whatsapp um vídeo que tem narração de um texto [1] atribuído a Herton Gustavo Gratto. À medida que o texto vai sendo lido, belas imagens completam o trabalho. Eu nunca tinha ouvido falar de Herton Gustavo Gratto. Conferi o perfil dele no Facebook. O texto que recebi pela manhã foi escrito por ele; está na linha do tempo do ator, dramaturgo, poeta, roteirista e compositor, segundo identificação fornecida por ele.

No texto, o eu lírico é de uma pessoa de classe média ou de classe alta que assume o discurso de ataque contra o ex-presidente Lula não pelos erros dele, mas pelos acertos. Para muitos, não é paradoxal criticar alguém pelos acertos. Tais acertos deram alguma possibilidade de ascensão intelectual e financeira a quem não tinha contexto favorável para exercer a inteligência. Isso, estranhamente, incomoda muitos que têm dinheiro (ou pensam que têm).

O tom do texto de Herton Gustavo Gratto acabou me remetendo ao filme Que horas ela volta?, de 2015, dirigido por Anna Muylaert, que também é a roteirista. Jéssica (interpretada por Camila Márdila), personagem do filme de Muylaert, é encarnação ou personificação dos atacados no eu lírico do poema de Gratto. Ou, seguindo linha cronológica, o texto de Gratto é a transformação em verso do roteiro da diretora.

O filme não menciona nomes de políticos, mesmo deixando claro que a história se passa num período em que, graças às políticas públicas implantadas pelo PT, o viciado cenário social brasileiro, governado há séculos pela “elite da rapina” (valendo-me de expressão do Jessé Souza), deu oportunidade de conquistas financeiras e intelectuais a pobres.

No livro Cheiro de goiaba, Plinio Apuleyo Mendoza pergunta a Gabriel García Márquez: “Que tipo de governo você desejaria para o seu país?”. A resposta do escritor é simples: “Qualquer governo que faço os pobres felizes. Imagine!” [2].

Lula fez com que os pobres percebessem em dimensão inédita que o país é deles também e que eles também têm o direito de ser felizes. Tanto o filme de Muylaert quanto o texto de Gratto escancaram que há uma parte da elite que se ressente com a felicidade do outro se esse outro for pobre. Até o Reinaldo Azevedo admite que “é evidente que Lula está sendo vítima de um processo de exceção e de procedimentos que agridem o direito de defesa” [3]. Uma elite que faz maracutaias para que as riquezas do país sejam somente dela não vai garantir a um ex-metalúrgico barbudo, de dicção ruim e com quatro dedos numa das mãos o direito de defesa.
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[1] Disponível em https://bit.ly/2ErGSmG. Acesso em 06/04/2018.

[2] MÁRQUEZ, García Gabriel. Cheiro de goiaba: conversas com Plinio Apuleyo Mendoza. Tradução de Eliane Zagury. Rio de Janeiro. Record. 1993. Pág. 113.

[3] Disponível em https://bit.ly/2q8oafG. Acesso em 06/04/2018. 

quinta-feira, 5 de abril de 2018

Construção

Invente apartamento,
crie estado de sítio.
A sangria será contida,
o país será supremo.
Romero declamou a odisseia,
a Vênus Platinada a transmitiu.
As fardas, elas ficam ouriçadas.

Moro num país asséptico,
branquinho como 
cocaína em helicóptero. 

Poderes

Plebeu,
playboy:
perdemos. 

Banhos

Tomou dois banhos:
um de chuva e 
um de chuveiro.
O primeiro lavou a alma. 

terça-feira, 3 de abril de 2018

Terreno

Ou
porque foram seduzidos pela imaginação 
ou
porque foram supersticiosos
ou
porque tiveram medo
ou 
porque quiseram controlar o povo,
inventaram
céu,
paraíso
e similares.

Ou 
porque a vida não é o bastante. 
Um não bastante
que é só o que temos, 
tudo o que temos.
Quem quiser consolo,
que o ache em vida.