quinta-feira, 26 de maio de 2022

Controle populacional

E se não houver câmara de gás?
A polícia faz uma no camburão.

Por acaso, um pobre vivo?
A polícia já vai cuidar disso.

É um preto o que vem ali?
A polícia cuida de apagá-lo.

Os índios estão na terra deles?
Calma: a polícia vai queimá-los.

Querem chacina para hoje?
Deixem a polícia cuidar disso.

Enquanto se fingem indignados,
alguns na classe média sorriem.

O presidente virulento aplaude a polícia,
mãos sangrentas aplaudem o presidente.

Fotopoema 425


 

A terceira via

A chamada terceira via adora se definir como civilizada. Não viu nenhum problema em apoiar a barbárie, não viu nenhum problema em apoiar quem apoia tortura, tudo escancarado antes da eleição presidencial. Essa direita que adora se considerar civilizada está, por exemplo, nas senhoras de classe média que sempre foram preconceituosas, que sempre fingiram estarrecimento diante de rudezas sociais, mas que não pestanejaram ao votar em quem defende ditadura e ignorância. Desse pessoal, há os que agora fingem nada ter a ver com o escaldado e os que perderam a pose e assumiram de vez o que sempre foram: feitos de fascismo e de preconceitos. 

O burocratas

A burocracia é útil para os altos escalões, que têm interesse nela porque por intermédio dela camuflam incompetência ou corrupção; altos escalões não precisam bater continência para ela, a burocracia, seja nos píncaros do executivo federal, seja em algum cômodo mofado de uma instituição pública qualquer cravada no cerrado ou na caatinga. Já nos baixos escalões, há aqueles que se julgam úteis quando se esforçam para intensificar a cada dia a burocracia. Esses baixos escalões supõem estar realizando o trabalho para um deus, sem se dar conta de que na verdade servem a um demônio. Os burocratas são o câncer do mundo trabalhista. 

domingo, 22 de maio de 2022

Lula, de Fernando Morais

Ainda que Fernando Morais não tivesse escrito a biografia de Lula, ele, Morais, já seria um dos grandes biógrafos do Brasil, tendo já traduzido em palavras as vidas de Olga Benario, de Assis Chateaubriand e de Paulo Coelho. Não li Chatô — o Rei do Brasil. Já os livros sobre Olga Benario e sobre Paulo Coelho deixam nítido o rigor e a elegância do estilo de Fernando Morais. Com a biografia de Lula, Morais torna evidente, mais uma vez, que os livros biográficos que escreve têm o gigantesco mérito de estarem à altura da grandeza das vidas que conta, de modo que haja uma simbiose entre biógrafo e biografado.

Não tenho agora em mãos a biografia Olga para eu consultar se ela foi escrita em ordem cronológica. Do que sei, é que em Lula, Morais se vale de procedimento de que já se valera em O Mago, a biografia de Paulo Coelho: narrar não em ordem cronológica. Para contar a vida de Paulo Coelho, o biógrafo inicia o relato com o escritor no auge da fama; para contar a vida de Lula, começa a história narrando os dias que antecederam a prisão do presidente em Curitiba.

Na página 12, Morais começa a relatar os bastidores do que se passava ao redor de Lula enquanto Moro e sequazes montavam suas farsas e exerciam suas ilegalidades; na página 164, conclui essa parte do livro narrando os primeiros passos de Lula em liberdade depois de ter deixado o prédio da polícia federal em Curitiba. Utilizando, dentre outros recursos, as técnicas do novo jornalismo, que despontou na década de 60 do século XX, Morais não nos deixa largar o livro nessas 152 páginas. O que elas contam ocorreu “ontem”, tudo está correndo muito intenso ainda nas veias da história do Brasil. O autor capta numa prosa ágil, mas não apressada, o que ocorria na vida de Lula enquanto o judiciário, encarnado na figura de Moro, o ministério público e parte da mídia tentavam de todo jeito apagar Lula da política, da história.

Moro transformou em “concessões” o que eram direitos de Lula, a polícia federal realizou devassas na casa dele e de seus filhos. As chamadas autoridades não acharam nada que pudesse incriminar o presidente. Desde a juventude, quando ainda era metalúrgico em São Paulo, Lula sabe o que é ser perseguido pela mídia e pelos poderes em voga. Aliás, nesse sentido, as sacanagens que fizeram contra ele são perversamente especulares: quando foi candidato a governador de São Paulo, já queriam bani-lo antes mesmo que ele pudesse alçar voos maiores. Escreve Morais: “As mentiras que décadas depois seriam conhecidas como fake news eram espalhadas por todo o estado [de São Paulo]. Diziam que Lula havia ficado rico como sindicalista e que a casa de São Bernardo era apenas uma fachada para enganar os trouxas — na verdade, afirmavam, ele morava numa mansão no Morumbi” [1]. Décadas depois, haveria o imóvel do Guarujá e o sítio de Atibaia. A ditadura brasileira datilografou sentença de condenação de Lula antes de um julgamento (Morais conta essa história no livro); décadas depois, Moro forjou processo judicial para condenar Lula sem provas.

O trabalho de Morais presta outro grande serviço, que é o de provar, em apêndice, valendo-se de dados, o modo como a chamada grande mídia tem tratado Lula. O levantamento foi feito com exclusividade para a biografia pelo instituto de pesquisas Manchetômetro. Durante a operação Lava-Jato, o Jornal Nacional, só para ficar num exemplo, massacrou e massacrou Lula: “No total, o JN dedicou intermináveis 163529 segundos a reportagens contrárias a Lula. Ou seja, mais de 45 horas, ou quase dois dias inteiros, se essas matérias fossem exibidas em sequência. A soma da duração de todas as notícias favoráveis, por outro lado, é de irrisórios 3374 segundos, ou seja, menos de uma hora no total” [3]. De modo similar, cada um a seu modo e com as características inerentes a cada mídia, agiram, de acordo com o Manchetômetro, os demais veículos das organizações Globo, os do grupo Bandeirantes, os da Record, os da Folha e os do grupo Estado, que publica o jornal Estado de São Paulo.

No dia 17 de novembro de 1989, meu pai, que morreria em fevereiro de 1999, estava saindo de casa. Falou comigo: “Vamo ali votar no padrinho Collor?”. Ao escutar a frase, eu a achei expressão de subserviência, talvez pelo uso da palavra “padrinho”. A entonação, a escolha das palavras... Tudo me soou muito careta, o que era curioso, pois, nos costumes, meu pai não tinha uma gota de caretice. De todo modo, não votei no “padrinho” Collor. Como nasci em outubro de 1970, aquele ano de 1989 marcava minha “estreia” como eleitor. O primeiro voto da minha vida, no dia 15 de novembro de 1989, data do primeiro turno para aquelas eleições, foi para o Lula. De lá para cá, sempre que ele foi candidato a presidente, votei nele. Sendo possível, assim será novamente neste ano. 

De acordo com a biografia, quando da prisão que o deixaria em Curitiba, sugeriram a Lula que cobrisse a cabeça por causa da presença maciça de fotógrafos e de cinegrafistas; por mais de uma vez, sugeriram que buscasse asilo político em outro país. Nem essas propostas nem outras semelhantes foram acatadas pelo político. O que emerge da biografia de Morais é um Lula, sobretudo, corajoso. Eu já sabia disso, mas as palavras do biógrafo materializam uma pessoa que jamais baixou a cabeça seja para juristas engomadinhos, seja para uma mídia perversa e preconceituosa. Em janeiro deste ano, Abraham Weintraub, em entrevista para um dos meios de comunicação do grupo Bandeirantes, disse: “O Lula é um encosto para mim. A gente pensa que ele acabou e ele renasce, vem de novo, não cansa, não para. Esse cara não é deste mundo, ele tem alguma força sobrenatural, não é possível” [2].

Weintraub se declara inimigo de Lula. Mesmo assim, assumiu publicamente o que muitos dos que se declararam inimigos de Lula pensam secretamente. O presidente, é claro, nada tem de sobrenatural. Ele “apenas” incorporou desde cedo a “simples” ideia de que ele não vale menos do que os poderosos almofadinhas que sempre o abominaram e o perseguiram. Ele me inspira porque é signo de coragem, de rebeldia, de altivez. Execrado por poderosos e pela dita grande mídia, que se empenha em transferir para o público seus ódios, seus preconceitos e sua ilusão de que são grandiosos, Lula aí está, encarando de frente um lado feio e selvagem do Brasil. Que Lula seja feliz.
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[1] Morais, Fernando. Lula: biografia: volume 1ª edição. São Paulo. Companhia das Letras. 2021. Página 394.
[2] https://www.poder360.com.br/eleicoes/weintraub-lula-e-encosto-e-tem-alguma-forca-sobrenatural/
[3] Morais, Fernando. Lula: biografia: volume 1ª edição. São Paulo. Companhia das Letras. 2021. Página 405. 

sexta-feira, 20 de maio de 2022

Cão

É um cão raivoso.
Meio amorfo,
mas um cão.
Mas raivoso.

Não sabe
que é meio amorfo,
que é um cão,
que é raivoso,
que foi adestrado.

O adestrador
não se identifica.
Atende por 
nome genérico —
mídia.

O cão raivoso
baba,
late,
morde.

Visto de longe,
parece um 
cidadão de bem. 

terça-feira, 17 de maio de 2022

Michel de Montaigne e Jerome K. Jerome

O Jerome K. Jerome de Devaneios Ociosos de um Desocupado é um Montaigne galhofeiro. Sabemos que Montaigne entende o drama da vida; sobre ele, de modo solene, a despeito de uma pitada de humor aqui e ali, escreve. Jerome K. Jerome parece não entender o drama da vida. Ele brinca o tempo todo. Por trás das brincadeiras, alguém que entende o drama da vida, um arguto observador, um atento cronista, um profícuo filósofo, um elevado poeta.