quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Tenho algo em comum com Mick Jagger!

A editora Abril, depois de, por intermédio da Veja, apontar Marcela Temer como a salvadora da combalida popularidade de Temer, mais uma vez, dá provas de que seu não jornalismo somente não é risível porque é cruel, perverso. Desta vez, não foi a Veja, mas a Exame.

A mais recente edição da revista tem Mick Jagger na capa. Acima da manchete, tem-se: “A nova aposentadoria”. A manchete: “O que você e ele têm em comum”. O pronome “ele” se refere a Mick Jagger. Abaixo da manchete: “Talvez não seja a fortuna, nem o rebolado, nem os oito filhos. Mas, assim como Mick Jagger, você terá de trabalhar velhice adentro. A boa notícia: preparando-se para isso, vai ser ótimo”.

Mick Jagger, de acordo com a lei britânica, tem, desde 2008, direito a uma aposentadoria do governo. O texto da cínica capa diz que “assim como Mick Jagger, você terá de trabalhar velhice adentro”. Dizem que Jagger tem de trabalhar. Não tem. Trabalha porque quer. Ele tem a opção de não trabalhar.

Mas a revista nos compara a Mick Jagger. O que teríamos em comum com ele? Tanto nós quanto ele teremos de trabalhar na velhice. É assim: eu terei de trabalhar quando ficar velho. Mick Jagger é velho e tem, segundo a Exame, de trabalhar. Logo, se eu ficar velho e estiver trabalhando, terei algo em comum com Mick Jagger, que é justamente estar trabalhando.

Desse modo, caso eu chegue a ter no futuro a idade que Jagger tem hoje, e caso eu esteja trabalhando, poderei dizer: “Uau, pessoas, eu sou mesmo incrível, pois tenho algo em comum com o Mick Jagger. Tenho hoje a idade que ele tinha em janeiro de 2017, e estou trabalhando”.

Esse é um ponto em comum irrelevante, superficial. De modo análogo é como se eu dissesse: “Eu, Lívio, vesti roupa toda branca um dia desses; vi uma foto em que o Gabriel García Márquez usava uma roupa toda branca. Logo, tenho algo em comum com García Márquez”.

A desfaçatez da publicação se completa com o uso do adjetivo “ótimo” ao defender as regras de aposentadoria do atual governo. Só faltou inserirem na capa o verso da canção do Maroon 5: “I’ve got the moves like Jagger”. I don’t have such moves. 

Geometria

Engano

O que faz lembrar o amor
pode ser engano.
Se engano é, amor não é.
Nossa história
se parece com 
uma de amor.
Fomos longe
em nome
do que não é, 
do que nunca foi.
Não faltou
desejo de história,
de amor.
Onde faltou
amor de verdade,
sobrou engano verdadeiro. 

Sob o signo do espanto

Meus amigos sabem do amor que tenho por Wisława Szymborska (1923-2012), poeta da Polônia. Minha convivência com ela se iniciou quando li uma versão em inglês do poema “Vietnã”. Abaixo, tradução dele feita por Regina Przybycien:

Mulher, como você se chama? — Não sei.
Quando você nasceu, de onde você vem? — Não sei.
Para que cavou uma toca na terra? — Não sei.
Desde quando está aqui escondida? — Não sei.
Por que mordeu o meu dedo anular? — Não sei.
Não sabe que não vamos te fazer nenhum mal? — Não sei.
De que lado você está? — Não sei.
É a guerra, você tem que escolher. — Não sei.
Tua aldeia ainda existe? — Não sei.
Esses são teus filhos? — São. (1)

Diante de texto tão poderoso, só me restava ir atrás de tudo o que eu achasse da autora, o que passei a fazer. Nessa época, ela ainda não havia sido publicada no Brasil. A solução foi procurar edições em inglês. Li “Sounds, Feelings, Thoughts”, uma coletânea. Posteriormente, a Companhia das Letras publicaria “Poemas”, também coletânea; recentemente, a mesma editora lançou “Um amor feliz”, outra coletânea de Szymborska. Foi o livro que recebi ontem. (A tradução dos dois livros de Szymborska publicados pela Companhia das Letras é de Regina Przybycien.)

Terminei a leitura de “Um amor feliz” há pouco. Nos textos, a delicadeza, a inteligência, o humor, a metafísica, o espanto. Aliás, o espanto é moeda corrente dentre os poetas quando falam de poesia. Esse espanto é um maravilhamento diante do mundo, um estranhamento quanto ao que somos e ao que nos rodeia, um olhar que descortina riquezas escondidas atrás de lugares-comuns, uma atitude não saturada pelo cotidiano.

O último texto de “Um amor feliz” é o discurso proferido por Wisława Szymborska durante cerimônia na qual recebeu o Nobel, em 1996. Diz a autora: 

“O que quer que ainda pensemos sobre este mundo — ele é espantoso (...). Na linguagem da poesia, na qual se pesa cada palavra, nada é comum ou normal. Nenhuma pedra e sobre ela nenhuma nuvem. Nenhum dia e depois dele nenhuma noite. E acima de tudo nenhuma existência do que quer que seja neste mundo.

“Pelo visto os poetas sempre vão ter muito que fazer” (2).

A partir desse espanto, a poeta construiu uma poesia espirituosa, cheia de engenho. No poema “Desatenção”, tem-se: “Ontem me comportei mal no universo. / Vivi o dia inteiro sem indagar nada, / sem estranhar nada” (3). Das delicadezas do cotidiano (há poema sobre seres que só podem ser enxergados graças a microscópios) aos grandes eventos históricos (há poema a partir de uma fotografia tirada no 11 de Setembro), Szymborska nos delicia com a força da ternura, a perspicácia do humor fino e a argúcia de uma poderosa inteligência.
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(1) SZYMBORSKA, Wisława. Poemas. Seleção, tradução e prefácio de Regina Przybycien. São Paulo. Companhia das Letras. 2011. Pág. 39.
(2) SZYMBORSKA, Wisława. Um amor feliz. Seleção, tradução e prefácio de Regina Przybycien. 1ª ed. São Paulo. Companhia das Letras. 2016. Pág. 327.
(3) Idem. Pág. 255.