sábado, 30 de abril de 2016

O narrador cruel

Obviamente, levo em conta que “Madame Bovary” é uma obra realista. Mesmo assim, desconheço um narrador que seja tão impiedoso com seu personagem quanto o narrador do livro de Flaubert. À parte as convenções do Realismo, que devem ser levadas em conta quando se analisa o livro, chega a ser engraçado (e, ao mesmo tempo, corrosivo) o quanto se mostra o tempo todo que o senhor Bovary é, aos olhos do narrador, um ser ridículo, limitado, digno de pena.

Carlos Bovary é, de cara, achincalhado pelo narrador e por alguns personagens. Logo no primeiro capítulo da primeira parte, nas páginas iniciais do livro, Bovary, ainda adolescente, é aluno novato em uma escola. A maneira como é recebido pelos futuros colegas dá o tom de como o futuro marido de Ema Bovary será tratado ao longo da história. Mal começado o livro, zomba-se da aparência de Carlos, de seu comportamento, de seu destrambelhamento. O trecho que cito tem tradução de Araújo Nabuco:

“Estávamos em aula, quando entrou o diretor, seguido de um novato.

(...)

“Calçava uns sapatos grosseiros, mal engraxados, reforçados com pregos.

(...)

“— Levante-se! — ordenou o professor.

“Levantou-se; o boné caiu. A classe inteira pôs-se a rir.

“Ele abaixou-se para erguê-lo. Um vizinho o fez cair com uma cotovelada, mas ele tornou a erguê-lo.

“— Livre-se desse boné! — disse o professor, que era um homem espirituoso.

“Houve uma explosão de riso entre os alunos, embaraçando o coitado de tal forma, que ele não sabia se segurava o boné, se o deixava no chão ou se o punha na cabeça. Afinal, sentou-se, pondo-o sobre os joelhos.

“— Levante-se! — repetiu o professor — e diga-me o seu nome.

“O novato articulou, com voz trêmula, um nome ininteligível.

“— Diga de novo!

“O mesmo murmúrio de sílabas, abafado pelas gargalhadas dos alunos.

“— Mais alto! — gritou o professor. — Mais alto!

“Tomando então uma resolução extrema, o novato abriu uma boca desmesurada e, como se chamasse alguém, lançou a plenos pulmões esta palavra: Carbovari.

“Foi uma algazarra que explodiu de repente, num crescendo de gritos agudos (uivava-se, latia-se, sapateava-se, repetia-se: Carbovari! Carbovari!), que depois passou a ecoar em notas isoladas, dificilmente acalmadas (...).

“Entretanto, sob uma chuva de castigos, pouco a pouco foi restabelecida a ordem na classe. O professor, tendo conseguido perceber o nome de Carlos Bovary, fazendo-o ditar, soletrar e reler, ordenou em seguida ao coitado que se fosse sentar no banco dos preguiçosos, ao pé de sua cadeira. O rapaz dispunha-se a obedecer, contudo hesitava.

“— Que está procurando? — interpelou o professor.

“— Meu bo... — tartamudeou o novato, lançando olhares inquietos à sua volta.

“— Quinhentas frases à classe inteira! — bradou o mestre, sustando assim, como o quos ego, uma nova tormenta. — Fiquem quietos! — continuava, indignado, enxugando a testa com o lenço que acabava de tirar de dentro do gorro. — Quanto a você (e apontava o novato), copie-me vinte vezes o verbo ridiculus sum”.
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FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. Tradução de Araújo Nabuco. São Paulo. Círculo do Livro LTDA. 1994. Pp. 7,8 e 9. 

quinta-feira, 28 de abril de 2016

O amor que se vai

 “Algo tão bom não poderia acabar”. Mas acabou. O que há agora é uma espécie de inconformismo, alimentado por uma esperança que se nega a aceitar o rumo que as coisas tomaram. Quando um amor acaba, ele acaba fora da gente. Dentro, fica a esperança, que se recusa a aceitar o fim de algo que era tão bom, de algo que dava tão certo. Não bastasse esse inconformismo, a dificuldade em refazer a vida, nos seus mais banais instantes. Já não há mais alguém com quem compartilhar o texto lido, já não há uma pessoa a quem desejar “bom-dia”, já não há mais a companhia para o cinema, não há mais aquela pessoa para quem se embelezar.

Por um lado, a rotina pode enferrujar uma relação. Por outro, o amor se alimenta de pequenas e gostosas repetições. Não há amor sem rotina. Se você não consegue deixar de encarar a palavra “rotina” como sendo pejorativa, pense que não há amor sem hábito (se você não consegue deixar de encarar a palavra “hábito” como sendo pejorativa, pense que não há amor sem rotina).

Por um lado, o amor requer criatividade, invenções, surpresas; por outro, carece de repetições, de reiterações, de previsibilidades. Saber o que repetir e saber como criar robustecem um amor. Quando um amor acaba, vão-se embora aquelas saborosas repetições e aquelas rejuvenescedoras possibilidades de invenções. Quando um amor termina, lamenta-se também a chance que tínhamos de sermos criativos, espirituosos.

A partir daí, um carro que passa, uma rua, uma palavra, sinos que dobram, a foto de um rinoceronte, uma piada tola, a marca de um chocolate ou o comentário casual de uma tia sobre o estado do tempo: é como se o mundo conspirasse para que não consigamos tirar a pessoa do pensamento. Mas, no fundo, sabemos que o mundo não conspira; sabemos que é o amor que faz com que o objeto amado esteja em tudo.

A dois

Receita de amor

A afinidade é 
um dos ingredientes do amor. 
Em si, amor não é.

A amizade é 
um dos ingredientes do amor. 
Em si, amor não é.

O sexo é 
um dos ingredientes do amor. 
Em si, amor não é.

A admiração é 
um dos ingredientes do amor. 
Em si, amor não é.

Amor é
afinidade 
e amizade 
e sexo
e admiração.

Eu sou 
um dos ingredientes do amor. 
Em mim, amor não sou.

Tu és 
um dos ingredientes do amor. 
Em ti, amor não és.

O amor sou eu. 
O amor és tu.

Do amor,
somos ingredientes. 
A receita certa do amor 
é o jeito de cozer de cada um. 

Apontamento 329

Quando se trata de futebol, o argentino sabe fazer duas coisas — jogar e torcer. 

Gostosa geometria

Primeiro, foram meus olhos;
a seguir, minhas mãos.
Seduzida a minha visão,
seduzido o meu tato,
como não querer provar
cada pedaço de tuas linhas? 

Mais do Tito

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Ensaia

(A primeira parte deste poema já havia sido publicada.)

1
Saia de cara limpa,
saia da preguiça,
saia de cena,
saia do conforto.

Saia para o trabalho,
saia para casa,
saia para a escola,
saia para a noite.

Saia de pé.
Saia para o amor.

Se longa,
se velha,
se justa,
se nova,
se curta,
se larga...

Caso
se lembre
de mim,
saia.

2
Não sei se para o espelho.
Não sei se para outra pessoa.
Não sei para quem
tu te vestes quando
estás como hoje estás.
Isso não importa agora.
O que importa é saberes
da alegria que causas
a todo o meu corpo
quando estás vestida
como hoje estás.

3
Tu estás linda.
Tu estás irresistível.
Uma beleza assim
merece poesia,
merece convite.
Por ora,
e apenas por ora,
aceita o que
não é poesia
nem é convite.
Por ora,
aceita
estas palavras. 

domingo, 24 de abril de 2016

Mutuação

Conheço as dores e as alegrias do amor.
Sei o que é certeza de amor até o fim.
Sei o que é certeza de não amor até o fim,
para então morrer de amor no dia seguinte.
O amor vem e vai, para depois voltar.
Não desiste porque precisa de nós.
Não desistimos porque necessitamos dele.
Sem nós, fica o amor sem casa;
sem ele, ficamos nós sem lar. 

O Príncipe guitarrista


Não que eu não admire o Prince como cantor. Não que eu não admire o Prince como compositor (“Nothing compares 2U”, sucesso na voz da Sinéad O’Connor, e “Manic Monday”, sucesso com as garotas do Bangles, são composições dele). Não que eu não admire o Prince quando ele estava no palco. Admiro tudo isso nele. Mas o que não me cansa de espantar é o grande guitarrista que ele foi.

Neste vídeo, estão no palco Tom Petty, Jeff Lynne, Steve Winwood, Dhani Harrison (filho do George Harrison) e o Prince; tocam “While my guitar gently weeps”. Num momento do memorável solo que o Prince faz, Dhani Harrison chega a achar graça do guitarrista, que é apoiado, para que não caísse do palco, pelo que parece ser um segurança (não sei se isso havia sido combinado). Reparem que, no final, Prince joga a guitarra para o alto. Não a vejo caindo de volta. Para onde ela vai? 

As histórias que se contam

Em “Os contos de Cantuária”, do Chaucer, peregrinos, enquanto caminham, contam histórias; no “Decamerão”, do Boccaccio, dez pessoas, fugindo da peste negra, refugiam-se em local ermo, onde decidem que cada um contará dez histórias; em “Noite na taverna”, do Álvares de Azevedo, um grupo de ébrios decide contar histórias que estão nos moldes do que pregava o Romantismo. E você, que histórias conta para os que estão com você? 

Num supermercado

Imagem feita com celular, no dia dez de abril deste ano, num supermercado da cidade; segundo o informado pelo estabelecimento, são abóboras-jacarés. 

Da New Yorker para o Prince

Ah, essa The New Yorker... Magistral capa deles, em homenagem ao Prince. O autor é Bob Staake. 

quinta-feira, 21 de abril de 2016

"Bela, recatada e do lar" (parte 2)


Na postagem anterior, eu disse que estava procurando um modo de zombar do “bela, recatada e do lar”. O vídeo desta postagem é a ironia que faço com relação ao texto da Veja. Repito: trata-se de ironia. 

"Bela, recatada e do lar"

Tentei achar um modo de zombar do ridículo “bela, recatada e do lar”, perpetrado pela não menos ridícula Veja. Como não consegui, posto o trecho abaixo, extraído do livro “O poder dos quietos”, de Susan Cain. Publicado pela Agir, tem tradução de Ana Carolina Bento Ribeiro. No excerto, conta-se episódio ocorrido com Rosa Parks. Ela não é o tipo de mulher que a Veja quer, mas é o tipo de pessoa que torna o mundo um lugar menos ruim.
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“Montgomery, Alabama, Estados Unidos. Primeiro de dezembro de 1955. Começo da noite. Um ônibus para no ponto e uma mulher em seus quarenta anos cuidadosamente vestida sobe nele. Ela anda de coluna ereta, apesar de ter passado o dia inclinada sobre uma tábua de passar em um sombrio porão da alfaiataria da loja de departamentos da cidade. Seus pés estão inchados, seus ombros doem. Ela se senta na primeira fileira de bancos reservada aos negros e assiste quieta ao ônibus encher-se de passageiros. Até que o motorista ordena que ela ceda o lugar a um branco.

“A mulher balbucia uma única palavra que deslancha um dos mais importantes protestos pelos direitos civis do século XX, uma palavra que ajuda os Estados Unidos a se tornarem melhores.

“A palavra é ‘não’.

“O motorista ameaça mandar prendê-la.

“— Você pode fazer isso — disse Rosa Parks.

“Um policial chega. Ele pergunta a Rosa por que ela não se levanta.

“— Por que vocês nos humilham? — respondeu ela, simplesmente.

“— Não sei — disse ele. — Mas a lei é a lei e você está presa”.

“Na tarde de seu julgamento e condenação por atentado à ordem pública, a Associação para o Desenvolvimento de Montgomery promoveu um protesto a favor de Rosa na Igreja Batista de Holt Street, na parte mais pobre da cidade. Cinco mil pessoas se reuniram para apoiar o solitário ato de coragem daquela mulher. Elas se espremeram dentro da igreja até que os bancos não fossem mais suficientes. O resto esperou pacientemente do lado de fora, ouvindo através de alto-falantes. O reverendo Martin Luther King Jr. dirigiu-se à multidão: ‘Chega uma hora em que as pessoas ficam cansadas de serem pisoteadas pelos pés de ferro da opressão. Chega uma hora em que as pessoas ficam cansadas de serem empurradas para fora do brilho do sol de julho e de serem abandonadas em meio ao penetrante frio de uma montanha em novembro’.

“Ele elogia a coragem de Rosa e a abraça. Ela fica de pé em silêncio; apenas sua presença é o bastante para animar a multidão. A associação lança na cidade um boicote aos ônibus que dura 381 dias. As pessoas enfrentam quilômetros para chegar ao trabalho. Elas pegam carona com estranhos. Elas mudam o curso da história dos Estados Unidos”.
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CAIN, Susan. O poder dos quietos: como os tímidos e introvertidos podem mudar um mundo que não para de falar. Tradução de Ana Carolina Bento Ribeiro. Rio de Janeiro. Agir. 2012. Páginas 1 e 2. 

A história por trás da foto (91)

Esta foto é de 23 de janeiro de 2006. Eu a tirei no Parque Municipal do Mocambo, aqui em Patos de Minas. Tenho poucas fotos de martim-pescador. Fazer esta foi difícil. De onde eu estava, não era possível fotografá-lo quando ele sobrevoava a superfície da água, provavelmente buscando comida. Todavia, após o voo, ele voltava mais ou menos para o mesmo lugar. Pouco a pouco, fui me aproximando desse lugar, na esperança de que o martim-pescador não me visse.


O problema é que a área onde ele pousava depois da excursão sobre as águas era cheia de matos, de arbustos, de pequenas árvores. Tive de ir me esgueirando em meio a eles na tentativa de fazer a foto. Mesmo assim, quando eu já estava a uma distância ideal para o registro, havia muita folhagem e muitos galhos entre a lente e o martim-pescador. De qualquer modo, fiz algumas fotos deste, que é um filhote. 

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Em forma

A poesia é
um modo
de darmos forma
aos seres esparsos
que somos.

Eu gosto de
tuas formas.

terça-feira, 19 de abril de 2016

A vinda dos macacos

A capacidade da linguagem é um dos ingredientes que nos humanizam. O “internetês” pode evidenciar o que uma pessoa é capaz de postar quando é a favor de um torturador. Recentemente, reli “O planeta dos macacos”, do Pierre Boulle. No livro, a “tese” para a ascensão dos macacos e a derrocada dos humanos é a “preguiça mental” (expressão usada por Boulle) do homem e a habilidade adquirida pelos símios, a princípio, por imitação, de capacidades intelectuais.

Pode-se extrair daí a ideia de que quando o requinte da linguagem é deixado de lado, tornamo-nos bestas. Uma besta, diante de um teclado, incapaz de formular uma linguagem que faça sentido, apela para a agressão, os gritos, os palavrões gratuitos. A incapacidade de se mostrar humano ou de se condoer com o drama do outro (não importa a ideologia desse outro), faz com que um ser humano passe a louvar gente como Bolsonaro ou como Ustra.

A linguagem, por si mesma, é preciso lembrar, não garante a humanização. Em contrapartida, não há humanização que não passe pela linguagem. Depois que a bestialidade começa a se instalar, é muito difícil ao homem assumir o compromisso de mergulhar na dura tarefa de requintar sua linguagem e seu pensamento. O caminho da bestialidade é fácil. Nem todo caminho fácil é ideal.

Uma vez seduzidos pelo fácil discurso da bestialidade, é fácil, por intermédio de redes sociais, achar quem reverbere a falta de capacidade, seja de compaixão por um ser humano, seja de escrever algo que não sejam interjeições, onomatopeias e palavrões. É o correspondente da vociferação de uma fera produzido num teclado manejado por quem optou por ignorar que a linguagem seria caminho para possível humanização.

Num estado de coisas assim, o ser, que já perdeu a capacidade de perceber que não é preciso gritar para soar contundente, que não entende que o comedimento pode ser incisivo, caminha a passos largos para deixar de ser humano. Passa, então, a se gabar por adorar Bolsonaros ou Ustras. Os macacos estão vindo aí.
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A título de curiosidade: o que me inspirou a escrever esta postagem foi o formidável comentário do Ricardo Boechat sobre a performance do Bolsonaro ao reverenciar Ustra. 

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Ovações

Ovacionar Ustra?!
Ovacionar quem ovaciona Ustra?!
Uma ova! 

Cusparadas

Mais errado do que o gesto de Jean Wyllys, que cuspiu em Bolsonaro, é o gesto de Bolsonaro e asseclas, que cospem na democracia.

sexta-feira, 15 de abril de 2016

Um presente

Tu és bela
por natureza.
Não precisas
de versos que
te embelezem.

Não sou belo
por natureza.
Meus versos são
tentativa de beleza,
seja para ti,
seja para mim.

Mesmo não
precisando deles,
eis mais estes versos.
Toma-os como presente.
Se gostares,
ficarás mais bela
como és.

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Meu livro à venda em outra livraria

Ontem, publiquei que meu recente livro, Dislexias, lançado recentemente em Patos de Minas, está à venda pela página da Livraria Cultura. Ele pode também ser adquirido por intermédio da página da Livraria da Travessa. Caso queira adquirir o Dislexias a partir desta página, o endereço é este

Conto 85

Ernesto amanheceu; foi informado, via celular, num treze de abril, que se comemorava nessa ocasião o dia do beijo. Amuado, pensou consigo: “Ah, mais uma data inventada pelo comércio”. Antes mesmo de sair da cama, ocorreu-lhe uma ideia. Pegou o telefone; escreveu: “Sou informado de que hoje é o dia do beijo. Eu não sabia da existência de um dia dedicado a ele. De qualquer modo, para mim, a data não faz sentido, pois teus lábios não estão por perto”. Tendo acabado de digitar, deletou a mensagem.

terça-feira, 12 de abril de 2016

Meu livro à venda

Pessoas, confirmo: meu recente livro, Dislexias, está à venda na Livraria Cultura. Caso queiram adquirir, é só clicar aqui.

Versos de caminhoneiro

Não importam
as estradas
por que ando.
Momento não há
em que não percorres
os caminhos
de meu coração.

Tempero

O amor é um.
Os amantes, muitos.
Cada um que ama
tempera o amor
com aquilo que é.

Que tal um jantar?

"Vou na valsa"

Ao mesmo tempo, eu estava escutando “Paciência”, do Lenine, e lendo “Fogo pálido”, do Vladimir Nabokov. Enquanto Lenine cantava “enquanto o tempo / Acelera e pede pressa / Eu me recuso, faço hora / Vou na valsa / A vida é tão rara”, passei os olhos sobre o seguinte trecho de “Fogo pálido”: “Quando a vida caminha mais lentamente, a gente repara nas coisas secundárias” (tradução de Jorio Dauster e de Sérgio Duarte).

A vida é rara. Vamos levando um arremedo de vida, cheia do que parece ser civilizado, correto; vamos nos tornando especialistas em eficácia, cumprindo prazos para um monte de besteiras travestidas de inteligência; besteiras assépticas, falsamente sagazes. Nesse cenário, vale o paradoxo de que as coisas secundárias (resgatando a expressão de Nabokov) é que nos libertam da tirania cheia de horários bobos que o cotidiano nos impõe.

Nessas digressões, acabei me lembrando de um texto do poeta Alberto da Cunha Melo. Eis um trecho: “De quando em quando faltaremos / a algum compromisso na Terra, / e atravessaremos os córregos / cheios de areia, após as chuvas. // Se alguma súbita alegria / retardar o nosso regresso, / um inesperado companheiro / marcará o nosso cartão”. Corramos menos, reparemos em coisas secundárias.

segunda-feira, 11 de abril de 2016

Este amor

Este amor
que enche rios,
avenidas, casas.
Este amor que
preenche a noite
de estrelas.
Este amor que
é meu, é teu
e que está
no açaí
que partilhamos.
Este amor difícil
porque imenso,
porque distante,
porque não agora.
Este amor
que insiste
porque amor.

domingo, 10 de abril de 2016

De olho

A feia natureza da fotografia

Seja por motivos bons, seja por motivos ruins, sempre me lembro de um dos versos da canção “Ebony and ivory”, sucesso de Paul McCartney, com a participação de Stevie Wonder: “As pessoas são as mesmas aonde quer que você vá”. Há pouco, terminei de ler matéria intitulada “The ugly side of wildlife photography”. Por motivos ruins, eu me lembrei do trecho de “Ebony and ivory”. 

Na matéria, o autor, Ananda Banerjee, relata que a popularização da fotografia digital, as facilidades proporcionadas pela tecnologia e o barateamento dos equipamentos fotográficos fizeram com que o número de fotógrafos de natureza aumentasse muito. Com isso, áreas de proteção ambiental têm sido invadidas por grupos de fotógrafos profissionais e amadores; o problema é que tanto estes quanto aqueles estão prejudicando o ambiente dos bichos.

Como exemplo, Banerjee menciona que ninhos são destruídos por fotógrafos. Segundo ele, há espécies de aves que, ao fazer o ninho, inserem galhos ou folhagens em torno dele, a fim de se resguardarem de predadores. Ainda de acordo com a matéria, há fotógrafos que, para conseguirem o registro, afastam a proteção em torno do ninho, fotografam à vontade e largam o ninho desguarnecido. Para piorar, ainda segundo Banerjee, há fotógrafo que destrói os ovos ou mata os filhotes que estejam no ninho, para que ninguém mais tenha a possibilidade de registrar o que ele conseguiu. 

O texto de Banerjee menciona ainda que tigres têm sido acuados por fotógrafos inescrupulosos, que acabam se aproximando demais do espaço que é dos animais, causando incômodo e estresse nos felinos. Não raro, os tigres reagem; no corpo da matéria, há dois vídeos que mostram a reação de tigres diante da invasão dos humanos. Para conferir o texto (em inglês), o “link” é este

sábado, 9 de abril de 2016

Bilíngue

Foram duas,
as quedas.
He fell 
in love.
Ela caiu 
na gargalhada. 

Não agora

Tu és
safadinha, 
mas imatura.
Quando a imaturidade 
for embora, 
que ainda 
me queiras. 

Hora do banho

Apontamento 328

Há coisas que o dinheiro não compra. Isso não quer dizer que seja ruim ter dinheiro para comprar as coisas que ele compra. 

quinta-feira, 7 de abril de 2016

(Des)apontamento 50

Em regra, os “nãos” que venho recebendo quando tento lançar meus livros são protocolares. Todavia, houve um “não” de que não me esqueci. Tendo, por e-mail, entrado em contato com uma editora, perguntei se eu poderia enviar originais meus para avaliação deles. Naturalmente, eu conhecia o perfil da casa; sabia que, além de editarem clássicos, abriam as portas para autores desconhecidos ou que estavam publicando pela vez primeira. Enviado o e-mail, fiquei aguardando. A resposta veio: “A editora [...] só publica autores consagrados”. 

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Rios

Uns dizem que o amor habita o cérebro.
Outros garantem que o amor mora no coração.
Já outros, que faz morada no cérebro e no coração.

Por fé, dou testemunho de que meu corpo é amor.
Asseguro que veias e artérias fazem circular amor
em tudo aquilo que em mim é corpo. 

(Des)apontamento 49

É mais comum tirar uma foto muito ruim sem querer do que tirar uma foto muito boa sem querer. 

terça-feira, 5 de abril de 2016

(Des)apontamento 48

Houve um tempo em que tive muita facilidade em voltar a um lugar depois de lá ter estado pela primeira vez. Hoje, já me regozijo se consigo voltar para casa sem pestanejar. 

Intertextos

Diante do computador,
ela enumera lembranças.
Deposita na tela
substantivos
quase aleatórios.

Em cada palavra,
uma história.
As histórias
viraram substantivos.
Os substantivos
se tornaram versos.

Ele teve, assim,
momento de poesia. 

Desenredo

Comparar-te-ei
a um livro.
Tu és bela.
Tão bela quanto
um belo livro
de poesia,
tão bela quanto
um belo romance.

Tuas páginas
guardam maravilhas.

Que não tive o privilégio de ler. 

segunda-feira, 4 de abril de 2016

A temperatura do outro

“O calor, como uma roupa, dá vontade de o tirar”, escreveu Fernando Pessoa em “Livro do desassossego”, coleção de apontamentos escritos por Bernardo Soares, mais um dos heterônimos de Pessoa. Em “O planeta dos macacos”, Pierre Boulle escreve, por intermédio do narrador Ulysse Mérou, segundo tradução de André Telles: “A temperatura era elevada, mas suportável”. Até então não sabemos o que seria exatamente uma temperatura elevada. Depois, há dois-pontos esclarecedores, em trecho no qual se diz “cerca de vinte e cinco graus centígrados”.

Fernando Pessoa era português; não há como saber a que temperatura o heterônimo se referia ao se queixar do calor. O trecho não tem indicação da época do ano a que o apontamento se refere; houvesse tal indicação, seria possível um parâmetro, ainda que aproximado, da temperatura que teria levado à queixa de Bernardo Soares.

Já Pierre Boulle era francês. O narrador criado por ele define como “elevada” uma temperatura de vinte e cinco graus centígrados. Nós, brasileiros, viventes em país tropical, não adjetivaríamos, suponho, como alta uma temperatura de vinte e cinco graus. Não é descabido imaginar que o calor sentido por Bernardo Soares fosse, para nós, brasileiros, uma temperatura, quem sabe, um tanto amena.

O ponto de partida de qualquer compreensão é, antes de tudo, o que somos, aquilo que nos é inteligível, o que nos é familiar. Se um calor de vinte e cinco graus parece elevado para um, mas suave para outro, isso não deve ser encarado como falta de capacidade ou como imprecisão da palavra em alcançar nossos meandros, mas, sim, como possibilidade de exercício de compreensão do outro a partir de simples relato quanto à temperatura de um ambiente. 

Divisão silábica

Semana:
sem Ana. 

Apontamento 327

Não existe escritor à frente de seu tempo: o que existe são escritores que percebem com engenho e com acuidade o tempo em que vivem. 

Apontamento 326

Ninguém tem todas as palavras de que precisa. O grande escritor nos deixa com a sensação de que as tem. 

Apontamento 325

Visitou o exterior; voltou dizendo que o Brasil e sua cultura são inferiores ao que há lá fora. Não entendeu que o rock não impede o congado, que a música caipira não impede a erudita, que Machado de Assis não impede Choderlos de Laclos. 

domingo, 3 de abril de 2016

Manha

Se a palavra
não vem até mim, 
vou atrás dela: leio. 
Sestrosa, a palavra, 
sem palavra, 
não se entrega. 

Apontamento 324

Seu corpo precisa corresponder a seu talento. 

Outras saudades

Saudade de
tuas sobrancelhas, 
tuas orelhas, 
teu nariz, 
teus ombros, 
teus antebraços, 
teus anelares, 
teu umbigo, 
teus joelhos, 
teus pés.

Embora multiforme,
minha saudade
tem um só desejo.
Minha saudade 
é versátil,
mas é tua. 

Apontamento 323

A maior invenção de Fernando Pessoa são os Fernandos Pessoas. 

Para o alto

sexta-feira, 1 de abril de 2016

Linguagens

A língua no corpo. 
A língua do corpo.

A língua no papel. 
O papel da língua.

Somos língua e corpo. 
Somos corpo e linguagem.

A palavra é poder da língua. 
A língua é poder do corpo. 

Sobre a ineficácia das palavras

Não se faz amor com palavras.
Amor é feito de atos.
Portanto, enquanto escrevo,
eu deveria, sim, estar (te) amando. 

Apontamento 322

A beleza não é coisa inventada por sonhadores. Sonhadores é que são coisas inventadas pela beleza. 

O herói de Mariana

Tiago e Mariana se sentaram. Acomodaram-se. Pouco depois, colocaram os óculos. Minutos após, a primeira intervenção dela:

— Mas ele é muito bonito.

Tiago e Mariana continuaram lado a lado. De mãos dadas. Depois de um suspiro, ela diz:

— Gente, gente, como isso é possível?! Sem brincadeira: como pode alguém ser tão bonito?

As perguntas eram retóricas; não eram necessariamente dirigidas a Tiago, não tinham a intenção de estabelecer diálogo com quem estivesse por perto. Após a segunda pergunta, Tiago remexeu-se na poltrona. Mariana volta a falar.

— Isso não é um homem. Não, não é. Isso é um deus. Um deus grego. Nórdico talvez. Não sei. Sei que não há homem mais belo em todo o planeta Terra.

O incômodo de Tiago, que até então estava pequeno, dessa vez agigantou-se. Ele se remexeu na poltrona, largou a mão de Mariana. Ela pegou a mão dele de novo, mais automática do que intencionalmente. Ficaram calados durante pouco tempo. Mariana quebrou o silêncio.

— Eu simplesmente não me canso de olhar pra esse homem. Eu ficaria olhando para esse rosto até o fim da minha vida. Ele é a prova de que a beleza existe, de que a beleza é possível, de que podemos ter acesso a ela. Ele é a prova de que a beleza é algo material. Ela não é algo vago, não é coisa inventada pelos poetas... Não... Esse homem é a materialização de que nós, mortais, podemos ter acesso à beleza. Ele prova que os mortais podem ser belos, podem ser perfeitos, podem proporcionar aos outros o contato com a beleza, com a mais pura e a mais genuína beleza. Esse homem tem uma beleza... desconcertante.

A mão de Tiago, a essa altura, já não estava mais na de Mariana. Enquanto ela falava, ele, irritado, olhava para ela, não a enxergando com muita clareza, em função do ambiente em que estavam. Ele sentia um grande desconforto. Exaltado, sentindo-se ultrajado, levantou-se da poltrona, deixando Mariana para trás, não sem antes dizer para ela:

— Acha ele lindo? Vai morar com ele! Vai! Casa com ele! Cansei disso! Fique você com esse Ben Affleck e esse morcego metido a besta!

Mariana só deixou o cinema depois de terminados os créditos. Estava inebriada. 

Ilusão e sonho


As mais profundas reflexões filosóficas podem estar presentes também na cultura popular. A agudeza de reflexão ou de questionamento filosófico não é privilégio da cultura erudita. Por isso mesmo, a erudição, pelo arcabouço teórico que tem, deveria beber com mais sede a cultura popular.

Há uma canção pop chamada “Time to pretend” (Hora de fingir), da banda MGMT. Lembro-me da primeira vez em que a escutei, quando ela já estava pela metade. Liguei o rádio bem no trecho em que se canta “I'll miss my sister, miss my father, miss my dog and my home”. O verso captou minha atenção.

Depois, quando conferi a letra da canção, dei-me conta de que ela narra os devaneios de um eu lírico que se imagina vivenciando o mundo da fama; em especial, o universo do “showbiz”, com seus excessos, suas drogas, seu ritmo veloz, sua carga alta de adrenalina e suas mortes prematuras. “Time to pretend” tem uma temática fascinante demais: é sobre os iludidos, os quixotescos.

Boa parte da canção se refere a um futuro em que, supostamente, haverá tudo o que o dinheiro e a fama podem conseguir. Uma vida sem as chatices e as burocracias impedidoras que nós, os não famosos e os não artistas, temos de levar. É uma canção sobre um iludido, não sobre um sonhador, mesmo eu ciente de que é quase invisível a linha que separa o sonhador do iludido.
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P.S. 1: Em 2008, escrevi um texto intitulado Nós, os Iludidos. Eu o menciono por ele estar ligado à temática desta postagem. Caso queira conferir esse texto de 2008, o endereço é este.

P.S. 2: Em 2014, comparei “Time to pretend” a “Babylon”, do Zeca Baleiro. Para conferir, eis o endereço.