terça-feira, 24 de março de 2009

CRÍTICA DO LIVRO "OS ANÕES"

No próximo sábado, a partir das 20h, no auditório do Colégio Marista, vai ocorrer o lançamento do livro “Os anões”, de Luís André Nepomuceno (7Letras).

Na sexta-feira, este blogue publica entrevista com o autor, concedida via e-mail. Abaixo, texto que escrevi sobre o livro
_____

De antemão, digo que “Os anões”, de Luís André Nepomuceno, é seu livro mais ousado. Em suas demais narrativas, sejam os contos ou o romance, vejo um escritor que, embora se mostre seguro do que faz, pisa terreno que conhece – ou que parece conhecer. Em “Os anões”, parece-me que pisa um chão novo.

Se o “Antipalavra” mostra o neófito que coloca a cara a tapa e o “A lanterna mágica de Jeremias” confirma a presença do ficcionista, “Os anões” demonstra que esse mesmo ficcionista quer uma nova possibilidade, reinventando-se. A absurdidade (que voltarei a mencionar) do enredo já é um sintoma de que parece haver um novo viés em sua ficção. Senti haver uma nova forma de tratar temas que já podiam ser entrevistos em seus textos.

Certa vez, li que o Bentinho, como narrador, era atípico porque simplesmente não confiamos nele. O leitor geralmente quer acreditar no narrador, mas isso não ocorreria no caso do Bentinho. Menciono isso porque, à medida que lia “Os anões”, eu ficava desconfiando do que nos conta João Evangelista Jetur da Fé. Valendo-se de um estratagema diferente do de Machado, Nepomuceno acabou nos apresentando um narrador em que, a princípio, não se confia. Não somente pela miopia e pela falta dos óculos, mas principalmente por ele tanto reiterar que não está enxergando. Trata-se de um míope num ambiente lúgubre. Eu ia lendo e me perguntando se o que estava sendo narrado estava mesmo acontecendo, perguntando-me se eu deveria mesmo acreditar no que ia sendo contado por João. Mas aí, engenhoso paradoxo, ainda que João não estivesse captando os fatos como realmente eram, pouco a pouco um desconforto vai se formando: o narrador enxerga distorcido, mas o mundo que chega até nós por intermédio de seus olhos míopes é muito parecido com o mundo que temos aqui, fora daquela casa insana. João não enxerga bem. Logo, pode estar amenizando o grotesco de algo que já é por demais bizarro. João não enxerga bem, mas os anões, gradativamente, vão se mostrando ser muito parecidos com o que somos. Acabada a história, o que menos importa é se João enxergou ou não “corretamente” (assim como em “Dom Casmurro” o que menos importa é se Capitu traiu ou não). No fim, não me parece importante saber se João suavizou (sem querer, é claro) ou distorceu o que presenciou. Temos um mundo trazido até nós por seus olhos embaçados. O “material” que temos é a terrível realidade de contornos imprecisos que nos é apresentada. A realidade dele é a nossa.

O espaço em que a história vai se desdobrando é opressor não somente porque praticamente tudo ocorre dentro da casa. Isso, por si, já bastaria para transmitir ao leitor a atmosfera de clausura. Mas como se não bastasse João estar preso em sua residência, ela está lotada... O que já era restrito, torna-se insuportável. Por várias vezes, fiquei me perguntando se João não tomaria uma atitude. A qualquer momento, eu esperava que ele se tornasse incisivo, enérgico. A leitura vai prosseguindo. Criaturas se movendo em todos os cantos. Não há um espaço sequer da casa em que não haja um anão. No banheiro, na sala, nos quartos. Para piorar um ambiente que por si já está desumano, a onipresença deles é violenta. Não satisfeito, leitor? Pois não: há ainda uma misteriosa doença que para os anões está lá fora, o que justificaria terem se trancado na casa de João, em tentativa de se protegerem dela. São elementos demais para um espaço pequeno, ainda que a casa, conforme se sabe, seja grande. Houve momentos em que, não sei se proposital ou não da parte do escritor, escutei ecos de um Kafka ou de um Orwell no que diz respeito à atmosfera repressora e burocrática (Abliel e aqueles ofícios irritantes que pareciam não ter fim). Já no fim da narrativa, há um momento em que João diz que tudo está enigmático para ele. De minha parte houve aquele sorriso que quase não é sorriso. Pensei: “Não se preocupe, amigo; tudo é enigmático para mim também”.

O leitor vai se fazendo um sem-número de perguntas enquanto lê. Nem todas as respostas são dadas. O que é Abliel? Ele é símbolo de quê? Lembro-me de que, em conversa com o autor, ele havia mencionado certo temor de que o livro fosse visto como alegoria política. Não vejo assim. A violência, a intolerância, o preconceito (“Anãozinho negro estúpido e efeminado”), a obediência quase absoluta dos anões aos ofícios de Abliel... Isso tudo, reconhecemos como elementos do mundo todo presentes naquela casa. Se o lugar é microcosmo de um mundo sem conhecimento, sem humanidade, sem compaixão e destituído de racionalidade, João, por sua vez, acaba realizando o percurso de um herói às avessas. Um herói “torto”. Em seu “exílio” ou “retiro”, após vivenciar, com o parco entendimento que diz ter, atrocidades e bestialidades, precisa voltar não para sua casa, mas para as ruas. A boa nova, ele a conta não quando volta para casa, mas quando sai dela. Vivendo na escuridão, foi buscar o que lá fora luzia. Os anões, ao fugir da doença, acabaram produzindo um mundo doentio. João, em contrapartida, tem fé de que a ausência de amor é a causa das doenças. Doentes são os anões, em sua falta de amor. A miopia é deles.

“Os anões” me causou certo estranhamento. Entenda esse estranhamento como conseqüência da absurdidade a que já fiz referência. Há uma certa ironia amarga até nos nomes dos anões, em função da terminação el. Cornélia diz: “Ninguém mergulha em meu pai, senão por mim”. Tudo é muito sinistro. Há mesmo cenas em que a violência é descrita, mas essa não é, penso, o que a história tem de mais violento. A violência física é “mero” reflexo de um ambiente sombrio que produz outras formas de coerção e desumanidade.

O fato de Luís André Nepomuceno ter arriscado um caminho diferente em sua ficção (pelo menos vejo assim) já é bacana.