terça-feira, 27 de setembro de 2016

Urbano

Com pressa,
o carro atropelou
as horas,
o pedestre.

Com pressa,
os demais carros
passaram ileso
pelo pedestre.

Sem pressa,
o pedestre
se esvaiu
no asfalto. 

As luzes de Luís André Nepomuceno

Luís André Nepomuceno, escritor, tradutor, ensaísta e professor, é de Patos de Minas/MG. Nasceu em 1968. Cursou letras no Unipam, o Centro Universitário de Patos de Minas. Seus estudos de pós-graduação (mestrado, doutorado e pós-doutorado) foram realizados na Unicamp. É professor do Unipam.

O autor tem uma vasta produção acadêmica, com publicações no Brasil e no exterior. Todavia, este texto não se deterá sobre o que Nepomuceno tem produzido na academia. A intenção aqui é jogar alguma luz sobre o que o intelectual tem produzido na ficção.

Quatro livros dele já foram publicados pela editora 7Letras: Antipalavra (2004, contos), A Lanterna Mágica de Jeremias (2005, romance), Os Anões (2009, romance) e Histórias Abandonadas (2011, contos). Está no prelo Diário da Criação do Mundo, livro de contos (será lançado daqui a pouco mais de um mês, em novembro).

Tanto em seu trabalho acadêmico quanto em seu trabalho de ficcionista, Nepomuceno tem no Humanismo um dos pilares. Seu trabalho intelectual, seja ele voltado para a academia, seja ele dedicado à literatura de imaginação, investe na possibilidade de elevação do homem, que é, na visão do autor, o grande projeto a ser edificado. Nesse projeto, há fios condutores que podem ser identificados. 

Seus personagens, não raro, estão às voltas com a literatura. Eles são leitores ou são escritores. Considerado no todo, o trabalho de Nepomuceno é expressão de um autor nem um pouco preocupado com iconoclastias nem com negações do que nos legaram as tradições. O que se dá é bem diferente disso: há a busca de uma prosa poética que alude com sutileza e verossimilhança ao arcabouço da literatura clássica.

Na dicção do autor, os clássicos convivem com seu jeito moderno de narrar. Nesse jogo, dá-se a reflexão metalinguística. É um tópico que perpassa toda a sua obra. O questionamento é frequente: teria a palavra a capacidade de realmente expressar a essência do que somos? Não há uma resposta pronta, mas ambivalências. 

Em determinado momento, no conto “Antipalavra”, que dá título à primeira obra de ficção publicada por Nepomuceno, o narrador reflete: “Para que serve uma palavra, senão para distanciar os homens?” (1). Por outro lado, em A Lanterna Mágica de Jeremias, há um diálogo de Olavo, editor, com Jeremias, que Olavo quer publicar. Diz este: “— Sr. Jeremias, escrever é uma dádiva que deve ser preservada pelos maiores. É a sua dádiva, e não deve ser nunca escondida dos outros” (2). 

Na obra do escritor, ora a palavra é o que nos revela, ora é aquilo que nos esconde; ora é ponte, ora é abismo; oração, ora maldição. Paira nos livros do autor mineiro um jogo de dizer e de não dizer. Nesse viés, em última instância, não é paradoxal afirmar que dizemos e não dizemos, seja com o corpo, seja com a palavra.

Mencione-se a reflexão que a obra nepomuceniana tece sobre a violência. Embora o cenário das histórias, em sua maioria, seja o interior, em especial um interior mineiro de outras épocas, isso não implica ausência de crueldade. No conto “Os homens do morro”, que está em Antipalavra, um grupo de homens aborda um senhor que seguia seu destino em carroça puxada por cavalo. No decorrer da narrativa, ele, o senhor, é forçado pelos homens a puxar a carroça, como se fosse ele o cavalo. 

Em “A Caminho de Damasco”, conto de Histórias Abandonadas, o narrador, enquanto dirige, vê um corpo caído na beira da estrada. Segue dirigindo, embora o corpo não lhe saia da cabeça. Decide voltar. A princípio, pensara se tratar de um homem; quando está diante do corpo, dá-se conta de que era uma mulher que vestia roupas masculinas. A continuidade da história revela que ela era uma prostituta; estava na beira da estrada porque havia sido espancada.

No romance Os Anões, há cenas de intensa e dramática violência física. Todavia, é preciso ressaltar que a violência nos livros de Nepomuceno não se dá no cenário urbano, essa violência que é principalmente fruto da pobreza, do tráfico de drogas e da corrupção. Os livros do autor não lidam com o caos urbano, o que não implica dizer que não haja neles a substância do que é a maldade.

Parece contraditório eu mencionar a violência, tendo dito que o projeto do autor é humanista. A contradição é aparente. Se por um lado há a manifestação da crueldade de que o homem é capaz, por outro, a literatura do autor é edificada sobre a esperança, que é outro poderoso afluente dos contos e dos romances produzidos por ele. Logo no começo de A Lanterna Mágica de Jeremias, o narrador declara: “Sou das luzes, não suporto escuridão” (3).

Num escritor maduro, esperança não implica ingenuidade. A literatura de Luís André Nepomuceno, sem evitar o que o homem tem de sórdido, busca a iluminação. Os livros dele estão plenos de referências metafóricas à luz, a olhos que não sabem enxergar, mas que um dia hão de. No mundo criado pelo escritor, há uma riqueza que vai além do que os olhos contemplam agora; um dia, vamos transcender, seremos plenos de luz. Não bastasse, o amor. Visitar grandes temas não é obrigação dos grandes artistas, mas o autor os aborda. Estão nas páginas de Nepomuceno as inquietações, as ambiguidades e as delícias do amor e do sexo.

Eu diria serem esses alguns dos pontos pelos quais a obra do ficcionista pode ser estudada. Acrescente-se aí uma pitada de humor na quantidade certa. O quadro que se tem é tão vasto quanto a natureza do que somos. No mais, fio-me nas palavras do narrador do conto “Da dignidade humana”, que está em Antipalavra: “Essas lições me vêm à cabeça só porque gosto muito de gente” (4).
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(1) NEPOMUCENO, Luís André. Antipalavra. Rio de Janeiro: 7Letras. 2004. Pág. 33.

(2) NEPOMUCENO, Luís André. A Lanterna Mágica de Jeremias. Rio de Janeiro: 7Letras. 2005. Pág. 73.

(3) NEPOMUCENO, Luís André. A Lanterna Mágica de Jeremias. Rio de Janeiro: 7Letras. 2005. Pág. 18.

(4) NEPOMUCENO, Luís André. Antipalavra. Rio de Janeiro: 7Letras. 2004. Pág. 84. 

Embelezamento

Não sei se há 
belezas outras.
Sei das belezas
deste mundo.
Cantando, pois,
tuas belezas,
que me torne
eu uma beleza. 

Dos sentidos

A natureza inventou a melancia. O homem inventou a geladeira. Tendo sido assim, o êxtase passou a ter cor, sabor e temperatura. 

Dendrolatria

Discreta, telúrica, sonhadora.
Querendo eu ou não,
a semente romperia a pele.
Saudade da árvore que não vingou.