Terminei de ler ontem “O presidente negro”, romance de Monteiro Lobato. O livro defende a eugenia, alegando a supremacia da etnia branca.
Vladimir Nabokov disse certa vez que definitivamente não concordava com o comportamento de seu personagem Humbert, sujeito de meia-idade que se envolve com Lolita, uma ninfeta. Não conheço a biografia de Lobato, de modo que seria um tanto inconseqüente de minha parte ir logo misturando homem e obra. Ainda assim, é digno de nota que o próprio Lobato escreveu: “O Brasil, filho de pais inferiores… destituídos desses caracteres fortíssimos que imprimem… um cunho inconfundível em certos indivíduos, como acontece com o alemão, com o inglês, cresceu tristemente… dando como resultado um tipo imprestável, incapaz de continuar a se desenvolver sem o concurso vivificador do sangue de alguma raça original”. [Aqui, link para que você confira de onde extraí a citação.] Marcia Camargos e Vladimir Sacchetta, autores do prefácio de “O presidente negro”, mencionam a longa correspondência mantida entre Lobato e Renato Kehl, defensor de teorias de purificação étnica. Este chegou a prefaciar um livro de Lobato.
Camargos e Sacchetta preferem não se alongar sobre o suposto racismo de Monteiro Lobato. Afirmam que “O presidente negro” revela “as profundas contradições da sociedade norte-americana” do começo do século XX.
A obra foi publicada primeiramente em 1926, de setembro a outubro, no jornal carioca A Manhã. Na ocasião, saiu com o título de “O choque”. Duas décadas depois receberia o título que tem hoje.
Ayrton Lobo é o narrador da história. Após sofrer um acidente em seu Ford então recentemente adquirido, Lobo é ajudado pelo professor Benson. O senhor o leva para casa, onde Lobo tem contato com Jane, filha única de Benson.
Desnecessário dizer que Lobo logo se apaixona por Jane. Benson, por sua vez, permite a aproximação. Decidido estava o professor a revelar sua grande invenção, o porviroscópio – máquina que permitia a visualização do futuro até o ano de 3527. Benson, para assombro de Lobo, vai detalhando como funciona a máquina. Ainda envolvido com os relatos, morre. Jane naturalmente assume a continuidade do que o pai começara, em entrevistas semanais que passou a ter com Ayrton Lobo. Este, por sua vez, vai cada vez se apaixonando mais por ela.
A história que Jane escolhe narrar em detalhes se passa nos EUA, no ano de 2228, quando um negro é eleito para a presidência do país. Em “O presidente negro”, os EUA do século XXIII são “a feliz zona que desde o início atraiu os elementos mais eugênicos das melhores raças européias”. Na ótica do livro, o atraso de gente como o brasileiro, por exemplo, deve-se à mistura de raças: “O amor matou no Brasil a possibilidade de uma suprema expressão biológica. O ódio criou na América a glória do eugenismo humano”.
A sociedade de que trata a obra é divida em homens brancos, feministas radicais brancas e homens e mulheres negros. Brancos e feministas se surpreendem quando um candidato negro decide concorrer ao cargo de presidente. A briga das feministas contra os homens brancos acaba dividindo os votos da etnia branca, o que propicia a eleição de Jim Roy, o candidato dos negros. No texto de Lobato, os negros do futuro haviam se submetido a um processo pelo qual suas peles haviam sido clareadas. A despeito desse clareamento, não são, em essência, brancos. A eleição de Jim Roy fará com que o definitivo e fatal golpe eugênico seja aplicado contra os negros.
Ayrton Lobo é um personagem ingênuo, funcionário da firma Sá, Pato & Cia. Embora seja o narrador da história, a notícia que recebemos do futuro nos é dada por intermédio, a princípio, do professor Benson; depois, por Jane. Tanto filha quanto pai são sofisticados, requintados. Pouco antes de morrer, Benson destruíra o porviroscópio, temendo o estrago que a invenção poderia causar se em mãos erradas. O futuro que Jane vai descortinando para Lobo faz parte de sua memória, do que ela observou enquanto teve à disposição a máquina do pai.
O leitor não ri do que apresenta o livro. Não é, por exemplo, como um “Viagens de Gulliver”. O narrador de Swift, ao relatar ingenuamente suas histórias, faz com que nós, leitores, achemos graça do que nos conta o narrador. Não há ironia em “O presidente negro”. Com calma, inteligência e feminilidade, Jane vai conduzindo Lobo, que passa a admirar o futuro eugênico, passando a desprezar o presente limitado e aquém. O narrador Lobo reproduz as palavras de Jane, sempre conscienciosa e certa do que diz. Fossem de Lobo as palavras, talvez o efeito pudesse ser similar ao que sentimos quando lemos o que nos conta Gulliver. Jane, sobre os EUA, declara: “Onde há força vital da raça branca senão lá? Já a origem do americano entusiasma”. Jane não é nem ingênua nem risível. O livro de Monteiro Lobato não está mofando do racismo, mas o endossando. Lamentável.
“O presidente negro” foi relançado recentemente a toque de caixa, quando Barack Obama ainda disputava com Hillary Clinton uma vaga democrata nas eleições presidenciais norte-americanas. Sem saber do que se tratava, gulliverianamente comprei o livro, pensando que ele era uma espécie de ataque contra o racismo...
Vladimir Nabokov disse certa vez que definitivamente não concordava com o comportamento de seu personagem Humbert, sujeito de meia-idade que se envolve com Lolita, uma ninfeta. Não conheço a biografia de Lobato, de modo que seria um tanto inconseqüente de minha parte ir logo misturando homem e obra. Ainda assim, é digno de nota que o próprio Lobato escreveu: “O Brasil, filho de pais inferiores… destituídos desses caracteres fortíssimos que imprimem… um cunho inconfundível em certos indivíduos, como acontece com o alemão, com o inglês, cresceu tristemente… dando como resultado um tipo imprestável, incapaz de continuar a se desenvolver sem o concurso vivificador do sangue de alguma raça original”. [Aqui, link para que você confira de onde extraí a citação.] Marcia Camargos e Vladimir Sacchetta, autores do prefácio de “O presidente negro”, mencionam a longa correspondência mantida entre Lobato e Renato Kehl, defensor de teorias de purificação étnica. Este chegou a prefaciar um livro de Lobato.
Camargos e Sacchetta preferem não se alongar sobre o suposto racismo de Monteiro Lobato. Afirmam que “O presidente negro” revela “as profundas contradições da sociedade norte-americana” do começo do século XX.
A obra foi publicada primeiramente em 1926, de setembro a outubro, no jornal carioca A Manhã. Na ocasião, saiu com o título de “O choque”. Duas décadas depois receberia o título que tem hoje.
Ayrton Lobo é o narrador da história. Após sofrer um acidente em seu Ford então recentemente adquirido, Lobo é ajudado pelo professor Benson. O senhor o leva para casa, onde Lobo tem contato com Jane, filha única de Benson.
Desnecessário dizer que Lobo logo se apaixona por Jane. Benson, por sua vez, permite a aproximação. Decidido estava o professor a revelar sua grande invenção, o porviroscópio – máquina que permitia a visualização do futuro até o ano de 3527. Benson, para assombro de Lobo, vai detalhando como funciona a máquina. Ainda envolvido com os relatos, morre. Jane naturalmente assume a continuidade do que o pai começara, em entrevistas semanais que passou a ter com Ayrton Lobo. Este, por sua vez, vai cada vez se apaixonando mais por ela.
A história que Jane escolhe narrar em detalhes se passa nos EUA, no ano de 2228, quando um negro é eleito para a presidência do país. Em “O presidente negro”, os EUA do século XXIII são “a feliz zona que desde o início atraiu os elementos mais eugênicos das melhores raças européias”. Na ótica do livro, o atraso de gente como o brasileiro, por exemplo, deve-se à mistura de raças: “O amor matou no Brasil a possibilidade de uma suprema expressão biológica. O ódio criou na América a glória do eugenismo humano”.
A sociedade de que trata a obra é divida em homens brancos, feministas radicais brancas e homens e mulheres negros. Brancos e feministas se surpreendem quando um candidato negro decide concorrer ao cargo de presidente. A briga das feministas contra os homens brancos acaba dividindo os votos da etnia branca, o que propicia a eleição de Jim Roy, o candidato dos negros. No texto de Lobato, os negros do futuro haviam se submetido a um processo pelo qual suas peles haviam sido clareadas. A despeito desse clareamento, não são, em essência, brancos. A eleição de Jim Roy fará com que o definitivo e fatal golpe eugênico seja aplicado contra os negros.
Ayrton Lobo é um personagem ingênuo, funcionário da firma Sá, Pato & Cia. Embora seja o narrador da história, a notícia que recebemos do futuro nos é dada por intermédio, a princípio, do professor Benson; depois, por Jane. Tanto filha quanto pai são sofisticados, requintados. Pouco antes de morrer, Benson destruíra o porviroscópio, temendo o estrago que a invenção poderia causar se em mãos erradas. O futuro que Jane vai descortinando para Lobo faz parte de sua memória, do que ela observou enquanto teve à disposição a máquina do pai.
O leitor não ri do que apresenta o livro. Não é, por exemplo, como um “Viagens de Gulliver”. O narrador de Swift, ao relatar ingenuamente suas histórias, faz com que nós, leitores, achemos graça do que nos conta o narrador. Não há ironia em “O presidente negro”. Com calma, inteligência e feminilidade, Jane vai conduzindo Lobo, que passa a admirar o futuro eugênico, passando a desprezar o presente limitado e aquém. O narrador Lobo reproduz as palavras de Jane, sempre conscienciosa e certa do que diz. Fossem de Lobo as palavras, talvez o efeito pudesse ser similar ao que sentimos quando lemos o que nos conta Gulliver. Jane, sobre os EUA, declara: “Onde há força vital da raça branca senão lá? Já a origem do americano entusiasma”. Jane não é nem ingênua nem risível. O livro de Monteiro Lobato não está mofando do racismo, mas o endossando. Lamentável.
“O presidente negro” foi relançado recentemente a toque de caixa, quando Barack Obama ainda disputava com Hillary Clinton uma vaga democrata nas eleições presidenciais norte-americanas. Sem saber do que se tratava, gulliverianamente comprei o livro, pensando que ele era uma espécie de ataque contra o racismo...