sexta-feira, 3 de agosto de 2018

O chamado de Dom Quixote

Dom Quixote é uma alma boa, um coração puro. Ele é a vontade de que o mundo seja um lugar justo. Jamais será. Mesmo assim, embora Quixote lute contra o que seu delírio vê como inimigo, a essência do que o move, que é o desejo de uma vida bonita e sem ultrajes, é bonita demais. Quixote vale não pelo que tem de risível, mas pelo que tem de puro, por seu desejo em lutar a favor dos desvalidos. (Sobre alguém ser risível, Melville, outro gigante, no monumental Moby Dick, escreveu: “O homem que tenha alguma coisa de abundantemente risível a seu propósito, estai certos, há nele mais do que supondes”, segundo tradução de Pericles Eugênio da Silva Ramos.)

Quixote será sempre perdedor na labuta a que se propõe; mesmo assim, ela deve ser realizada por ser nobre. Louco, lírico, delirante... Quixote ensina não somente sobre a natureza da insânia, mas também, e principalmente, sobre a beleza de um ideal bonito. Ainda que se alegue insanidade para ele e sanidade para nós, o doce cavaleiro nos ensina que existe uma centelha de pureza e de preocupação com o destino dos que não têm vez. Quixote nos revela que loucura são o comodismo, a pasmaceira, a futilidade. Ele não está sozinho, Sancho Pança não está sozinho, eles estão conosco — e o mundo está cheio de moinhos. Prontos para a batalha?... 

A lama do negócio

Dependendo do anúncio que estejam criando, é natural agências publicitárias buscarem linguagem descontraída. Essa linguagem ou o tom coloquial, por si, não são erros nem indícios de falta de domínio do português. Ainda assim, há casos em que as agências pecam em seus textos por não contarem em suas equipes nem com redatores que tenham algum domínio do idioma em que escrevem nem com revisores que tenham olhar de lupa para os anúncios que serão veiculados.

Agências publicitárias adoram dizer que cuidam bem da imagem do cliente. Todavia, negligenciar o português é sintoma de descuido dessa imagem. O dono de uma empresa pode até não ter ciência das dificuldades da língua portuguesa, mas ele não gostaria de saber que há erro em anúncio de sua empresa.

O curioso na história é que, não raro, as agências dão menos importância ao português até quando divulgam ou comentam o próprio trabalho. Por um lado, aprenderam a editar bem as imagens, a criar “layouts” bonitos, envolventes, modernos, agradáveis; por outro, no todo, agências publicitárias não contam em seus quadros com redatores preparados.

Numa olhadela em textos produzidos por algumas empresas de publicidade, eu me deparei com “padrão estético suave [...] mais cheio de significados”, “sintetizamos às principais áreas”, “é isso meus amigos”, “arrazo”, “os profissionais que compõe nossa seleção”... Com exceção deste último, fossem os trechos que citei interpretados por um locutor, e não textos em telas de computadores e de celulares, não haveria problema. Só que assim como uma foto amadora ou um “layout” canhestro deporiam contra uma agência e contra o cliente que ela atende, um texto desleixado depõe contra também.

Por melhores que tenham sido o atendimento e os bastidores de uma campanha, o que chega ao público deve ser profissional. O que se vê na publicidade nacional é o desconhecimento de noções básicas da língua portuguesa. Nomes como Fernando Pessoa escreveram anúncios publicitários e teorizaram sobre a propaganda. Redatores de agências não têm a obrigação de serem literatos, mas têm o dever de saber os rudimentos do idioma em que escrevem. Isso também é cuidar bem do cliente, é respeitá-lo, é ser profissional.

O português vacilante conspurca o que pode estar visualmente bonito ou bem interpretado numa locução. É nítido o quanto o pessoal da publicidade e da propaganda lida bem com programas de edição de fotos, de vídeos e de áudios, bem como é claro o quanto lidam mal com as palavras. Mas, elas, as agências, parecem não se importar com isso. Nem os clientes.