sábado, 19 de abril de 2014

SÃO RAFAEL, MEU PAI, UM FREGUÊS E EU

Durante toda a vida dele, meu pai trabalhou na Padaria São Rafael, cujo dono se chamava... Rafael. Mesmo depois de aposentado, meu pai continuou prestando serviço no local. Quando morreu, ele ainda trabalhava lá. Se eu não estiver enganado, foi lá que também conheceu minha mãe.

Foi natural que eu frequentasse a padaria antes mesmo de ter memória. Nos domingos à tarde, o movimento era fraco; meu pai então me deixava no caixa, enquanto ele ficava no balcão. Como meu pai já havia me ensinado a tabuada antes mesmo de eu ser alfabetizado, eu não me preocupava com as contas que eu teria de fazer na hora de voltar o troco.

Talvez eu já tenha contado a história da tabuada em alguma crônica antiga. Eu era sabatinado com frequência pelo meu pai. Se estivéssemos, digamos, voltando da casa da mãe dele, ele me tomava a tabuada durante o trajeto. Penso que a matemática nunca tenha sido drama para mim devido à iniciação numérica que meu pai me proporcionou.

Apaixonado por rádio, ele sempre teve diversos modelos. Quando ele os comprava, a primeira coisa que me atraía não era nem a vontade de manejá-los — era o cheiro que tinham. Feliz aquele que tem em sua memória olfativa o cheiro dos rádios que eram fabricados na década de 70.

Um desses rádios tinha algumas dezenas de, por assim dizer, pequenos furos na parte da frente. Meu pai olhou para o rádio e pediu que eu contasse o mais rápido que eu conseguisse quantos furos havia no rádio. Contei então os oito furos da primeira fileira do alto na horizontal e os sete furos da fileira da esquerda na vertical. Mentalmente, multipliquei-os; depois, foi só acrescentar os três furos que faltavam e dizer o mais veloz que pude: “São cinquenta e nove furos”. Pude perceber o leve sorriso do meu pai. Ele então contou que se eu não soubesse a manha de multiplicar os furos verticais e os horizontais, ele ensinar-me-ia.

Num domingo quente e parado, quase sem fregueses, estava eu no caixa da padaria. Um senhor entrou e foi atendido por meu pai. Não me lembro do nome da moeda da época. Isso, todavia, não importa; o senhor me passou um pequeno pedaço de papel quadrado em que meu pai havia escrito o valor da compra.

Peguei o papel: fosse hoje, nele estaria escrito o valor de, por exemplo, oito reais. Fiquei aguardando o senhor tirar o dinheiro do bolso. Divisei o que seria equivalente a uma nota de dez reais. Já fui abrindo a gaveta do caixa para dar ao senhor os dois reais de troco. Mas o freguês continuou revirando bolsos. Por fim, ele me entregou treze reais.

Meu mundo desabou naquele longínquo momento. Um cataclismo inexorável me deixou petrificado. Eu não sabia o que fazer com os treze reais. Eu não via lógica naquilo. Foi como se toda a concepção que eu tinha do Universo, da matemática e de mim, em meus seis ou sete anos de idade, tivesse sido esmagada. Eu já não sabia o que fazer, eu já não sabia mais fazer conta, eu já não sabia mais quem eu era. Afinal, se dez reais eram o bastante para pagar a conta, por que me entregar treze reais?

Perdido num vergonhoso labirinto, ainda fiz menção de devolver ao senhor os três reais. Ele, porém, disse: “Pode cobrar aí mesmo”. Desesperado e arrasado, ainda argumentei que se o valor da compra era de oito reais, dez reais seriam o bastante para pagar. O freguês seguiu resoluto: “Cobra aí mesmo; além do mais, fica mais fácil pra você me voltar o troco”.

Então, desisti de tudo. No torpor, eu não conseguia raciocinar. Eu não conseguia visualizar a situação, eu não conseguia pensar algo assim: “Se o valor da compra é de oito reais e ele me deu treze reais, logo, para saber quanto tenho de devolver a ele, basta que eu faça a seguinte conta: treze menos oito”.

Sem raciocínio e sem chão, olhei, com cara de súplica, para o senhor. Ao mesmo tempo, procurei pelo meu pai. Percebendo meu desespero, o freguês deu um sorriso e disse: “Me volta cinco reais e fica tudo certo”. Meu pai, já tendo se dado conta de meu fracasso, aproximou-se do caixa. Depois que o freguês saiu, explicou-me a conta que eu deveria ter feito. 

"UM RETRATO DE MULHER"


Eu nunca quis ser iconoclasta. Ainda que eu quisesse, sei que não levo jeito para isso. Além do mais, como escrevo por gosto, e não por dever, prefiro me dedicar a discorrer sobre aquilo que curto. Mesmo assim, digo: não gosto de “Metropolis” (1927), do diretor Fritz Lang. É aquela velha conversa: sei da importância do filme... mas...

Todavia, alguns dias atrás, assisti a “Um retrato de mulher” (The woman in the window, 1944), também de Fritz Lang. O roteiro é de Nunnally Johnson. A produção é baseada no livro “Once Off Guard”, de J.H. Wallis. Gostei demais do filme.

No enredo, o professor Richard Wanley (Edward G. Robinson) observa, com desvelo, o retrato de uma mulher numa vitrine. Logo após, ele se diverte com amigos num restaurante; ao sair, depara-se com Alice Reed (Joan Bennett), que é a mulher do retrato. Os dois iniciam conversa. Wanley acaba indo ao apartamento dela.

É quando a encrenca tem início. O amante de Reed entra no apartamento e tenta matar Wanley; na contenda, o amante é que acaba sendo morto, com a ajuda de Reed. Ela e o professor se livram do corpo. Para piorar a situação, o perspicaz detetive responsável pelo caso é um dos grandes amigos de Wanley.

Ele é professor, não é criminoso. A polícia logo tem uma série de elementos que podem elucidar o caso. Não bastasse o aperto por que já passam Wanley e Reed, entra em cena Heidt (Dan Duryea), que há meses vinha seguindo o amante de Reed e sabe haver algo muito errado no desaparecimento dele; Heidt começa a chantagear Reed.

A despeito do emaranhado que fisga Wanley e Reed, “Um retrato de mulher” não é um filme pesado. Se por um lado nos compadecemos do desajeitamento dos cúmplices no crime, por outro, não deixamos de achar graça deles. A sequência final quebra o tom; o humor do filme, que até então vinha sendo velado, torna-se deliciosamente escancarado.