Sempre volto à questão do trabalho. Se eu não me policiar, acabo me tornando monotemático. Não que eu me culpe por isso. Mas sempre busco variações, seja por atender a um desejo interno de escrever algo com outro teor, seja na ilusão de soar eclético. Só que desta vez volto à arena trabalhista. Que o assunto não esteja cansando supostos leitores.
Nas páginas iniciais de “O homem sem qualidades”, do Robert Musil, o narrador, segundo tradução de Lya Luft, diz: “Ganhou-se em realidade, perdeu-se em sonho. Não nos deitamos mais sob a árvore, espiando o céu entre o dedo grande do pé e o dedo médio, mas trabalhamos; também não devemos nem passar fome nem sonhar demais, se quisermos ser eficientes, mas comer bifes e fazer exercício. É exatamente como se a velha humanidade ineficiente tivesse adormecido sobre um formigueiro; quando despertou a humanidade nova, as formigas tinham entrado no seu sangue, e desde então ela precisa fazer movimentos incessantes, sem conseguir se livrar desse chatíssimo ímpeto de fanatismo pelo trabalho”.
Qualquer cidade com cem mil habitantes já deixa nítido que a imagem do formigueiro, usada por Musil, cai bem para o mundo que criamos para nós. Talvez, nessa comparação, possa-se dizer que elas, as formigas, sejam mais organizadas do que nós. Sendo ou não, vistos de cima, somos, por assim dizer, formigas nos movimentando pelas cidades.
Boa parte desse movimento é causado pelo trabalho. Rendemo-nos a um furor veloz que precisa ser produtivo, que necessita de números, de estatísticas, de bater as metas do mês anterior ou do ano anterior. Joga-se sobre o indivíduo a responsabilidade por coisas que não dependem só dele. Se a venda de março foi inferior à de fevereiro, a culpa é sempre de quem não soube navegar nas “águas de março”. É mais fácil culpar alguém do que admitir que há coisas que não estão sob nosso controle.
O maior ato de rebeldia é acreditar na individualidade. Que seja luta inútil, mas é luta nobre de que não se pode desistir. Tal qual é configurado no todo, não se pode deixar que o trabalho seja nosso dono. Em maior ou menor grau, todos somos vítimas do mundo. É preciso fugir dos algozes, que são poderosos. Todos estão aí para nos impedir de sermos o que somos, ainda que não tenhamos exatidão quanto ao que somos.
Apesar dessa inexatidão, estamos muito longe de sermos o que quer de nós o mercado. Quando me refiro ao trabalho, não defendo uma horda de preguiçosos, mas uma legião de criativos. São poucos os que têm a oportunidade de trabalhar naquilo que de fato sabem fazer, em algo que não tome mais da metade de suas vidas com alguma coisa que terá embotado a criatividade. No mundo trabalhista como ele é, no geral, o que querem de nós são somente números, seja de horas a mais trabalhadas, seja de metas a serem batidas.
Nem menciono a impossibilidade de cada um fazer o que tivesse vontade de — isso é privilégio de poucos. O que sempre defendo é que não podemos ser engolidos pela sanha trabalhista. É imprescindível preservar em nós o poderio que temos de criar, não importa o pendor da criatividade. Precisamos achar um tempo para nós, para o que somos.
Volto a Musil. Ainda nas páginas iniciais de “O homem sem qualidades”, e ainda na tradução de Lya Luft, lê-se: “E como a posse de qualidades pressupõe certa alegria por serem reais, podemos entrever como uma pessoa que não tenha senso de realidade nem em relação a ela própria pode sentir-se de repente um homem sem qualidades”. O trabalho, na maior parte dos casos, impede que tenhamos acesso a nossas maiores riquezas. Privados da realidade que somos em essência, tornamo-nos formigas sem qualidades.