sexta-feira, 27 de março de 2009

ENTREVISTA COM LUÍS ANDRÉ NEPOMUCENO

Amanhã, 28 de março, a partir das 20h, no auditório do Colégio Marista, vai ocorrer o lançamento do livro “Os anões”, de Luís André Nepomuceno. É seu terceiro livro de ficção, todos lançados pela Editora 7Letras, por intermédio da qual já saíram “Antipalavra” (2004) e “A lanterna mágica de Jeremias” (2005).

O autor também é ensaísta. Publicou “A musa desnuda e o poeta tímido: o petrarquismo na Arcádia Brasileira” (Annablume, 2002) e “Petrarca e o Humanismo” (Edusc, 2008). Em seu trabalho acadêmico, vem publicando em revistas do Brasil e do exterior.

Pleno homem das letras, também se dedica à tradução, tendo vertido para o português “Vida de Petrarca”, de Ugo Dotti (Unicamp, 2006). Com pós-doutorado pela Unicamp, Nepomuceno é professor no curso de Letras do Centro Universitário de Patos de Minas (Unipam). Na instituição, foi até recentemente o coordenador do curso em que leciona, cargo que exerceu por quase dez anos. Atualmente, além das aulas, é o responsável pelo Núcleo de Editoria e Publicações do Unipam, criado neste 2009.

Procurado por mim, o autor gentilmente concedeu a entrevista abaixo, a primeira publicada por este blogue. Entrevista e texto crítico sobre o livro (este, já publicado aqui) serão publicados também na edição deste sábado do jornal Folha Patense.
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Liviano: Parece-me que “Os anões” tem uma linguagem e uma sintaxe diferentes de seus dois outros livros de ficção. Essa mudança se deve ao tema do livro ou não somente ao tema?

Luís André Nepomuceno: O abuso nas estruturas sintáticas, na construção deste livro, se deve essencialmente ao tema e às formas de olhar o mundo do próprio personagem-narrador, que é portador de uma miopia avançada e, tendo perdido os óculos no começo da narrativa, não é capaz de perceber com exatidão as coisas que acontecem a seu redor. O estranhamento da linguagem é um pouco a representação disso. A estrutura narrativa, em especial a estrutura dos diálogos (escritos de tal forma a confundir as vozes do discurso) reflete um pouco esse olhar, que é igualmente uma metáfora das formas restritivas de se olhar o mundo e a sociedade.

Liviano: O que mudou no ficcionista desde o “Antipalavra” até “Os anões”? E o que não mudou?

Nepomuceno: Em geral, não gosto muito de ler meus textos já publicados, porque sempre dá uma vontade enorme de mexer numa coisa ou outra. É incrível como, de um livro para outro, a gente sente um processo de desenvolvimento que, por vezes, só é percebido inteiramente pelo próprio autor. Relendo alguns contos de “Antipalavra”, especialmente os mais antigos, tenho sempre o ímpeto e o desejo da mudança. “Antipalavra” foi um livro gestado numa década inteira, numa época em que houve contos que foram inteiramente reescritos, outros lançados ao lixo, outros engavetados à espera de outras possibilidades. O que mudou? A linguagem, sem dúvida, que hoje parece mais limpa, menos intoxicada com exercícios inúteis de malabarismo. O que não mudou? Meus ideais, que continuam os mesmos: a crença no belo, na eternidade, no próprio homem para além de suas fronteiras. Isso não parece nem um pouco moderno? Mas o que se há de fazer? Detestaria a angústia de dizer o que não sinto, o que não quero.

Liviano: O que lhe dá mais prazer: a ficção, o ensaio ou a tradução? Ou são prazeres diferentes?

Nepomuceno: São prazeres diferentes, sim, mas a ficção está acima de qualquer coisa, às vezes parece substituir a própria vida. Como não é possível viver todos os mundos possíveis, todas as vidas sonhadas, então escrevemos ficção. Pode também parecer sublimação freudiana, mas acho que a arte e as projeções da beleza precedem essas análises, que sempre parecerão reducionistas. No ensaio, as idéias são muito técnicas, e particularmente prefiro o ensaio de natureza acadêmica, que não inventa de ser poesia. A tradução é uma experiência curiosa, porque eventualmente te força a escrever de uma forma que você não deseja. Mas o tradutor, para não ser traidor, deve sempre fazer o exercício de não ser ele mesmo, mas aquele que ele traduz. Por tudo isso, a ficção (para além da poesia, é claro) se revela como a face mais íntima do escritor. É o momento em que ele é ele mesmo, ainda que sob máscaras.

Liviano: Jorge Luis Borges disse que o escritor passa a vida inteira escrevendo o mesmo livro. Caso você concorde, qual seria o seu?

Nepomuceno: É uma pergunta difícil, mas concordo inteiramente com Borges. Tenho, sim, a curiosa sensação de estar escrevendo o mesmo livro, a mesma coisa, apenas com variações por aqui e ali. Isso me incomodava até certo tempo, mas depois que entendi que o processo é esse mesmo, fiquei conformado. Tenho na cabeça a idéia de um romance em que o narrador procura avidamente (e depois descobre) os manuscritos antigos de um filósofo de outro tempo. À medida que vai lendo seus escritos, entende que sua própria vida se modifica em função dos seus entendimentos sobre o conteúdo daqueles escritos. Tudo isso me pareceu uma repetição de “A lanterna mágica de Jeremias”, ou do “Cartografias da imagem” (romance inédito, ainda por ser revisto). Será que eu estava escrevendo a mesma coisa? Acho que sim, mas definitivamente isso não me parece um problema.

Liviano: Você tem preferência maior por algum de seus livros de ficção? (Por quê?)

Nepomuceno: Penso que a gente sempre tem preferência pelo último texto escrito, por ele ainda estar compatível com os seus últimos anseios. Gosto de “Os anões”. Às vezes me ocorrem pensamentos como “eu precisava muito escrever tal coisa”, e depois me lembro: mas isso está em “Os anões”. Sinto certo alívio. Depois penso: Mas como eu acho importante ter escrito isso. Cada um considera as suas importâncias. Eu considero as minhas.

Liviano: Em sua atuação acadêmica, você se dedica à pesquisa sobre Petrarca e Boccaccio, que estiveram no alvorecer do Humanismo. Até que ponto o Humanismo é influência em seu trabalho de ficção?

Nepomuceno: Sempre pensei que, na minha ficção, nunca tinha dado respostas pessoais às obras de Petrarca e Boccaccio. Mas os escritores não têm que legitimar e ponderar sobre essas influências. De qualquer forma, entendi depois que os ideais humanistas estavam impregnados na minha ficção, muito mais do que eu imaginava. Quem me chamou a atenção para isso foi ninguém menos que Fábio Lucas, que me deu a honra de comentar os meus dois livros. Mencionando certos contos de “Antipalavra”, apontou neles esse viés do Humanismo, e especialmente o de Petrarca. Uma vez mais: não parece nada moderno? O que se há de fazer? Que os mais contemporâneos e afinados com as últimas exigências da técnica pós-qualquer coisa me perdoem. Ou pelo menos que me tolerem. “Cartas do novo mundo”, que é um livro que por enquanto está apenas na minha cabeça, é a reescrita de um episódio que aconteceu na vida de Petrarca que, quando esteve em Verona, fugindo de perseguições políticas, encontrou um dos mais raros manuscritos da Idade Média: as cartas de Cícero e Ático. Não podendo furtar o manuscrito (como fez o atrevido Boccaccio, numa biblioteca da Itália), ele teve de copiar o manuscrito inteiro à mão (seriam 700 páginas hoje), e com o braço direito quebrado! Acho o episódio maravilhoso. Isso é um amor irrestrito à humanidade e ao legado que o ser humano é capaz de nos oferecer.

Liviano: Acho complicado perguntar para um ficcionista sobre os escritores de sua predileção, pois me parece que tudo o que é lido acaba “respingando” no que se escreve. Ainda assim, você poderia apontar escritores que julga decisivos em sua formação?

Nepomuceno: Quando li Thomas Mann, tive a nítida impressão de que minha visão sobre a literatura e sobre meus projetos pessoais estavam divididos entre antes e depois dessa leitura. Thomas Mann disse coisas que há muito eu esperava ouvir, especialmente as relações entre os anseios sociais e espirituais do escritor e sua condenada inclinação burguesa para o prazer estético. É uma angústia de natureza platônica, como está em “Morte em Veneza”, por exemplo. Eu diria que é um escritor que determinou a formação das minhas idéias mais essenciais sobre a literatura e a arte. Mas há tanta gente por aí que seria injusto não mencionar: Graciliano Ramos, Drummond, Machado de Assis (sempre, não é?), o próprio Guimarães Rosa (que me ajudou a formar, embora hoje já não o tenha como um modelo); e os clássicos inevitáveis: Homero (a “Ilíada” me impressionou profundamente – n’Os anões, há uma cena nitidamente homérica, quando disputam o corpo de um cadáver), Boccaccio, que é um contador de histórias extraordinário; e outros modernos, Walt Whitman, Shakespeare. Sabe quando percebo que estou diante de um grande escritor? Quando ele próprio me incita a escrever, depois de ler o seu livro. É o que tem acontecido com Mário de Andrade, que recentemente tem quase me obrigado a escrever alguma coisa, depois de eu ter lido a sua ficção. Genial.

Liviano: Você já se dedicou ao estudo do violão. Também já realizou exposição de quadros. O fato de não mais exercer essas atividades se deve somente à falta de tempo?

Nepomuceno: Não é falta de tempo. Há um tempo para tudo. No passado, me dediquei fervorosamente à música, depois às artes plásticas, namorei o teatro rapidamente, depois nem sei mais. Essas coisas me deram respostas a certos anseios, em determinados momentos. A literatura, não, me acompanhou a vida inteira. Esposa fidelíssima. Se eu tivesse mais tempo hoje (e como desejaria ter!), tenho certeza de que me dedicaria cada vez mais a ler e escrever. E escrever muito.