segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Sobre a natureza

A natureza não sabe que amanhã é terça-feira
nem que está chovendo agora.
Ela não está interessada no destino de João
nem na tristeza de Paulo.
Se Tereza está feliz
ou se Jânio ganhou na loteria,
isso não importa.
Artur sobreviveu à covid-19;
Maria Clara morreu por causa dela.
O câncer levou Ana, 
mas poupou Tiago.
A enchente levou a casa de Hermes
e a seca fez o corpo do menino Anderson secar.

A natureza não sabe que ontem foi domingo.
Ela não descansou.
Suas cachoeiras,
que não estavam aqui ontem,
não estarão amanhã.
As belas paisagens não são belas para nós.
A natureza não fez as estrelas para nosso regozijo.
O Sol que nos banha não sabe que Zé da Silva deve ao banco.
O balé da revoada de estorninhos não é para me agradar.
Fora de nós, a natureza não adjetiva, não abstrai, não compõe.
A natureza é. 

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

O país dos maricas

Presidente, algumas perguntas a partir do uso que você fez de “maricas”...

Os 160 mil que, até agora, morreram por causa da covid-19 eram maricas? Ou alguns deles morreram porque quiseram ser mais machos do que os demais?

Maricas é quem não votou em você? É quem não votou em você e morreu de covid-19? É quem votou em você e morreu de covid-19? Quem não votou em você e não morreu de covid-19 é maricas? Ou maricas é quem usa máscara? É quem não quer transmitir a covid-19?

Você disse que “todos nós vamos morrer um dia”. Isso quer dizer que não temos razão para tomarmos precauções quanto à covid-19 devido ao fato de que “vamos morrer um dia?”. Esse mesmo “raciocínio” vale para outros contágios ou para outras doenças? Ou isso somente vale quando o assunto for a covid-19? Caso sim, por quê?

O mesmo vale, por exemplo, quando o assunto é o câncer? “Todos nós vamos morrer um dia”; logo, não devemos tratar o câncer nem devemos tomar cuidado com ele? Nem com a leptospirose? E quanto a possíveis facadas? Devemos deixar de ser maricas e não procurarmos um hospital caso levemos uma facada? Ou o “todos nós vamos morrer um dia” só é válido quando se trata da covid-19? Caso sim, por quê?

Você foi examinado por um médico quando teve covid-19. Isso é ser maricas? Ou maricas são os que procuram médico e, ainda assim, morrem? Quem não procura médico em caso de covid-19 provou não ser um maricas?

O que é, exatamente, ser um maricas? É quem não quer morrer devido à covid-19? É quem toma cuidados para tentar não morrer em breve? É quem toma cuidado para não matar os demais? O presidente de um país que deixa a população desse país sem ministro da saúde durante meses numa pandemia é um maricas? Ou isso é sinal de macheza?

Para que eu entenda sua “ideia”: o João tem covid-19 e a transmite para José, que morre de covid-19, transmitida por João. Quem é o maricas?... É o João?... Caso sim, por quê?... Caso não, por que não?... É o José?... Caso sim, por quê?... Caso não, por que não?... São os dois? Caso sim, por quê?... Caso não, por que não?...

De acordo com você, a pandemia foi “superdimensionada”. Já há 160 mil mortos. O que seria não “superdimensionar”? Seu critério é numérico? Tive apenas uma pessoa morrido, isso não importaria? (Se o critério for seu, sou levado a crer que não. Afinal, quando o exército matou, fuzilando, você declarou que “o exército não matou ninguém”. Isso é regra sua que tem validade somente para os outros? Ou ela tem validade para você?)

Cinco milhões já foram infectados pela covid-19. São maricas? Ou maricas são apenas os 160 mil que já morreram? Maricas é quem não teve covid-19 e tem medo de ter? É quem deseja que haja vacina?

O que é, com exatidão, um maricas? É um covarde? Um fraco? Caso sim, o que é um fraco para você? Ser maricas é não querer morrer? Ou é não querer morrer devido à covid-19?

Referindo-se aos que buscam os mortos pelo regime militar, você endossou cartaz com os dizeres “quem procura osso é cachorro”. Agora, você usou o termo “urubuzada”. “Animalesco”, você. Todavia, urubus se alimentam de carniça; assim fazendo, realizam trabalho de limpeza. A vida é assim mesmo: uns limpam, outros sujam; uns se alimentam do que já morreu; outros matam. 

sábado, 7 de novembro de 2020

A ilha Brasil

“A visão de Trump tem um lastro em uma longa tradição intelectual e sentimental que vai de Ésquilo a Oswald Spengler, e mostra o nacionalismo como indissociável do Ocidente. Em seu centro, está não uma doutrina econômica e política, mas o anseio por Deus, o Deus que age na história. Não se trata tampouco de uma proposta de expansionismo ocidental, mas de um pan-nacionalismo. O Brasil precisa refletir e decidir se faz parte desse Ocidente”.

Essas palavras foram escritas pelo atual ministro das relações exteriores, em texto intitulado “Trump e o Ocidente”. Escreveu ainda o ministro: “Esse Deus pelo qual os ocidentais anseiam ou deveriam ansiar, o Deus de Trump, não é o Deus-consciência-cósmica, ainda vagamente admitido em alguns rincões da cultura dominante. Nada disso. É o Deus que age na história, transcendente e imanente ao mesmo tempo”.

Não somente por essas palavras, a revista norte-americana Jacobin, em fevereiro de 2019, deu ao ministro das relações exteriores do Brasil a alcunha de o pior diplomata do mundo. A imprensa e os meios de comunicação daqui, desde quando a vitória de Joe Biden começou a se esboçar, têm cogitado sobre o que pode vir a ser a diplomacia brasileira a partir de agora.

Enquanto isso, em seu quintal, os estadunidenses têm de lidar com um perdedor que, pelo menos até agora, não apresentou prova alguma das fraudes que ele diz ter havido. (Em nosso quintal, Aécio Neves pode ser elencado como tendo tido o mesmo comportamento, que, aliás, é discutido no imprescindível Como as democracias morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. Para eles, um dos indícios de ausência de espírito democrático por parte de alguns políticos é o fato de eles se empenharem em fazer com que as instituições sejam desacreditadas ou com que sejam demolidas.)

A tônica do que a imprensa e os meios de comunicação têm dito é a de que o governo federal terá de mudar sua postura diplomática, sob pena de ficar à parte no cenário internacional. Celso Amorim deu declaração ao UOL, afirmando que “Bolsonaro vai ter que mudar muito. Se ele tentar fazer o que tem feito até agora, que é invocar uma falsa noção de soberania, uma grande parte da elite brasileira que está tendo tolerância com ele até agora deixará de tê-la. Se tem uma coisa que a elite brasileira não suporta é brigar com os Estados Unidos”.

Sim, uma parte da elite brasileira é baba-ovo dos EUA, o que também ocorre com o chefe do executivo federal em relação a Trump. Depois de ler o que Celso Amorim declarou, pensei: essa parte da elite brasileira que se presta a ser capacho dos EUA não mudará os valores excludentes, antiéticos e antiecológicos do trumpismo, que, no governo federal, têm fiéis. 

Não consigo enxergar ninguém nesse governo a fim de fazer o que eles até agora não fizeram: diplomacia. Devido a insanidades como a de que “o Deus de Trump” é “transcendente e imanente”, só consigo pensar num Brasil (mais) isolado e (mais) vexaminoso diplomaticamente. Que eu esteja enganado. 

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Os de lá e os daqui

Ontem, ao vivo em canais de TV, enquanto Trump estava dizendo haver fraude nas eleições dos EUA, âncoras e jornalistas entraram ao vivo durante a fala do político para dizer que ele não apresentara até então nenhuma prova do que estava dizendo. Do que não sei, pois não acompanho os canais que disseram que Trump mente ou blefa, é se eles estavam sendo cínicos como os daqui, que não moveram uma sobrancelha para desmascarar, por exemplo, coisas como mamadeira de piroca ou kit gay, e pousam agora de mocinhos preocupados com a democracia, fingindo não serem inescrupulosos.

À parte isso, se uma versão à brasileira do Trump, preferencialmente sem provas, disser por aqui que eleições estão sendo, foram ou serão fraudadas, minutos depois já haverá nas TVs, rádios e sites de notícias “analistas”, “comentaristas” e “especialistas” endossando esse hipotético Trump dos trópicos. Em termos técnicos, tudo é feito com esmero. Numa analogia, poder-se-ia dizer que a imprensa e os meios de comunicação brasileiros, em sórdida assepsia, são como o cidadão que, vestindo roupas caras, modulando gentilmente a voz e querendo transmitir ares de civilidade, sofisticação, competência, ética, honestidade e preocupação com o país, camufla vilezas e preconceitos. A maior parte do jornalismo brasileiro faz de conta que é combativa e republicana. Muitos acreditam. 

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Culposo

Denúncias contra um senador: peculato, lavagem de dinheiro, apropriação indébita, organização criminosa. Mas ele não é pobre. Ainda que haja toneladas de documentos comprovando os crimes, sairá ileso: é rico, é homem, é branco, tem pai influente. O criativo judiciário, num longínquo futuro, em caso de culpa do político, vai inocentá-lo, nem precisando de malabarismos mentais. Basta dizer que houve peculato culposo, lavagem de dinheiro culposa, apropriação indébita culposa e organização criminosa culposa. Funciona. 

O Estado do Cinismo

Sabe o sujeito do filme de comédia que pratica delito e sai assoviando, como se nada tivesse com a história?: é assim que agem a imprensa e os meios de comunicação do Brasil quanto ao governo federal, fingindo que nada tiveram a ver com a eleição. A mais recente desfaçatez foi do jornal O Estado de São Paulo, que publicou texto dizendo que o presidente “arrasta o País para o abismo”. O periódico é mais um a lavar as mãos (sujas), como se não fosse ele um dos responsáveis pela eleição do causador da debacle. 

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

O país do “estupro culposo”

Ser branco, homem e rico no Brasil dá ao detentor de tais predicados a regalia de ter à sua disposição algo do tipo “estupro culposo”, malabarismo classista do judiciário local, invenção macabra de parte de uma elite retrógrada, saqueadora e sem o menor senso de humanidade. São reflexos de uma classe que é o entrave do país; reflexos que escancaram o teatro cruel que o judiciário brasileiro pode ser.

O que covardes fizeram com Mariana Ferrer durante o “julgamento” extrapola o que estava em consideração e descamba para o machismo, a prepotência, a humilhação, a tergiversação desrespeitosa. Moeda corrente no judiciário que, quando quer, sabe ser farsa, seja para desferir golpes políticos, seja para inocentar quem pertence à mesma classe daqueles que, no Brasil, há séculos, pilham, mentem, humilham, estupram. 

Se não têm as provas que desejam, para eles bastam as convicções; se contra eles há provas, que se invente qualquer coisa (qualquer mesmo) para inocentá-los. Nas mãos deles, o judiciário é uma ficção criada para salvar a pele deles e para que eles punam quem não é da panelinha. Fazem assim porque sabem que o arremedo de justiça aqui vigente é controlado por eles. Provas?... A depender do caso, ou as desconsideram ou as criam. 

Sim, a obrigação de qualquer advogado é defender seu cliente. O que está em jogo não é o cumprimento de uma obrigação, mas o modo como ela foi realizada. O que foi infligido a Mariana Ferrer não foi a solidez de argumentos, mas a sordidez de privilégios criados por uma elite nojenta que é o câncer do Brasil.

domingo, 1 de novembro de 2020

A Finlândia não é aqui

Desde que foi veiculado, faz sucesso um vídeoque dura algo em torno de vinte minutos, sobre o sistema educacional na Finlândia. É uma produção da Globo. Com frequência, esse vídeo é usado como argumento quando se quer elogiar a educação recebida pelos finlandeses e criticar a recebida pelos brasileiros.

É preciso ponderar a partir do que é dito no vídeo. É que sempre fico reticente quando há a tentativa de comparação entre a educação na Finlândia e a educação no Brasil. A primeira razão pela qual fico reticente é óbvia: o contexto finlandês é diferente do contexto brasileiro.

É dito no breve documentário que a Finlândia é o país mais feliz do mundo. À parte o fato de eu achar que felicidade é um conceito difícil de ser medido, pois o parâmetro de um pode ser diferente do parâmetro de outro, chamou minha atenção o seguinte: eles são um dos países menos desiguais do mundo.

Permitam-me um raciocínio simplório, mas necessário: o vídeo permite a fácil dedução de que menos desigualdade e felicidade estão conectadas. Mantendo o raciocínio simplório: igualdade e felicidade estão conectadas. Para nós, o problema começa na desigualdade. O Brasil é um país edificado sobre a desigualdade, que pode ser conferida em qualquer esquina do país.

Isso, por si, já é uma questão melindrosa. Mas a coisa fica pior: não há empenho de toda a sociedade para que as desigualdades sejam amenizadas ou dizimadas. O Brasil é um país em que quando se fala em ensino gratuito para todo mundo, há quem diga que não é obrigação governamental ofertar educação para todos. Segundo o vídeo, na Finlândia, “todas as crianças estão em escolas públicas” e “todo mundo tem as mesmas oportunidades”. Vou reescrever a frase: “Todo mundo tem as mesmas oportunidades”. Também é dito no trabalho da Globo que na Finlândia a educação é gratuita até o término do ensino superior. 

Acho estranho o que, com frequência, ocorre no Brasil: exalta-se a igualdade no exterior, mas se deplora a busca dela por aqui, onde há quem queira insistir na ideia de que o sujeito nascido na periferia de São Paulo tem as mesmas oportunidades de um nascido no Morumbi, e que se os projetos daquele não se concretizaram, a culpa é dele, que seria preguiçoso, indolente, burro. É dito no vídeo: “Você não precisa vir de família rica para se tornar alguém”. Lá, isso é possível porque há igualdade.

Tudo, contudo, fica pior: há uma cena do vídeo em que se mostra uma professora ensinando o processo de formação da Terra. Aqui no Brasil, congressos têm sido realizados para se afirmar que o planeta é plano, indivíduos têm negado princípios básicos da ciência. Estou sugerindo com isso que não cabe à escola fazer algo?

Não. Com isso, estou defendendo a ideia de que comparações entre países devem ser feitas com cautela, e que o ensino tem limites, principalmente se inserido em contexto desfavorável, caso do Brasil. A escola, ao mesmo tempo em que pode influenciar a sociedade, por ela é influenciada. Seria muita pretensão afirmar, no caso brasileiro, que a escola, sozinha, realizará a melhora.

No Brasil, a profissão de professor é desvalorizada, o que, segundo o vídeo, não ocorre na Finlândia. O professor, no Brasil, é visto, por alguns setores da sociedade, como um proscrito, um coordenador de badernas. Não bastasse, os professores, na Ilha de Vera Cruz, são enterrados sob um escombro de burocracia e de vigilância. Reitero: não sugiro desistência, mas ponderações quando insistem em querer aplicar o modelo educacional finlandês no Brasil.

Certa vez, perguntaram para o García Márquez se o artista tem de ser ou de estar triste para produzir. A resposta dele: “Escrevo melhor de barriga cheia”. O Brasil tem uma multidão de estudantes que não têm o que comer; estuda-se melhor de barriga cheia.  É dito no vídeo que a Finlândia teve guerra civil e fome. Superaram ambas. Vamos superar a fome no Brasil? Vamos ter uma sociedade composta por oportunidades iguais? Não tenho respostas.

Qual a importância em se conhecer a realidade educacional da Finlândia? Uma das importâncias é o saber em si, o estar informado. Outra importância: a ciência de que há um país como a Finlândia inspira a utopia, tal qual a concebe o Eduardo Galeano (1). Vídeos como esse, assim concebo, não são para que imitemos as engrenagens da Finlândia ou de outro país, nem para que tentemos implantar o sistema educacional deles aqui, mas para que saibamos que uma sociedade igualitária pode ser feliz. Seremos?

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(1) Há um texto do Eduardo Galeano em que ele se vale da seguinte imagem para ilustrar o que é o caráter utópico: a utopia é querer chegar à linha o horizonte; chega-se. Lá chegando, enxerga-se outra linha do horizonte, que deve, então, ser buscada; chega-se a ela. Lá chegando...