quinta-feira, 31 de março de 2022

A educação após Bolsonaro

Com a devida autorização do autor, publico o texto abaixo.
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A educação após Bolsonaro
Luís André Nepomuceno

Em 1949, Theodor Adorno publicou “Crítica cultural e sociedade”, um ensaio desconcertante, em que ele dizia que escrever poesia após Auschwitz é um ato bárbaro. O filósofo de Frankfurt parecia antever uma dificuldade imensa de retorno à consciência ilustrada depois da degeneração da cultura em tamanhos atos de barbárie. Adorno pensava a profundidade que se encerra no seio do totalitarismo. E sobre ele precisamos também pensar com urgência.

O totalitarismo, dizia Hanna Arendt, diferentemente das políticas ditatoriais e dos governos despóticos, encontra-se dentro do indivíduo. Sua ação é no interior de cada um, transformando ou consolidando profundamente sua forma de agir e de pensar, por meio da propaganda e da doutrinação. Como no fascismo, por exemplo. Por isso, essa “sociedade secreta montada à luz do dia” precisa de uma massa humana amorfa, fácil de ser manipulada, uma massa sem consciência de si e do outro, por vezes até mesmo indiferente à política, uma massa ressentida e ignorante das complexidades que a manipulam.

Mais que isso, o totalitarismo implica a morte do indivíduo e de sua consciência, a anulação de sua memória e de sua identidade, agora disposta a colaborar com a nova máquina política de aniquilação do outro, o outro negro, o outro pobre, o outro índio, o outro mulher, o outro socialista, o outro diferente, que deve ser banido. Dizem que soldados portugueses cristãos, em guerras no oriente, eram orientados a não olhar nos olhos dos inimigos muçulmanos, para não se darem conta de que por trás dos olhos havia um ser humano. Era melhor compreendê-los como abstrações a ser exterminadas.

Essa massa disforme que se entrega ao totalitarismo são os indivíduos “fáceis”, imbuídos de uma consciência social e política frágil. Em nosso cenário, o governo Bolsonaro descobriu que esses indivíduos, bem como instituições inteiras, são tão fáceis quanto as mulheres ucranianas que Arthur do Val observou, pleno de excitação.

O modelo totalitário de Bolsonaro também entendeu que as escolas precisam ser fáceis de alguma forma. Por isso, aplaudiu o antigo projeto da Escola sem Partido, um modelo ultraconservador de tendência fundamentalista e neoliberal que, antes de ser acusado de ideológico, apressa-se em dizer que o outro é que é ideológico, como fácil motivação para persegui-lo. É por meio de uma campanha totalitária, apoiada inclusive por grupos neopentecostais, que pais e estudantes conservadores buscam impor uma agenda puritana nos domínios da sala de aula. Hipócritas e reacionários, procuram vigiar cada passo do professor, ávidos por flagrar nele alguma insinuação sexual, alguma ideologia de gênero ou doutrinação marxista. Qualquer indivíduo é suspeito no modelo totalitário, dizia Hanna Arendt.

Em dezembro de 2018, um mês depois da eleição de Bolsonaro, mães de alunos de uma escola municipal no interior de São Paulo proibiram seus filhos de assistir ao espetáculo teatral “Miguilim Mutum”, da Companhia Azul Celeste (baseado na obra de Guimarães Rosa), porque alegaram que tinham receio sobre o conteúdo da peça. O espetáculo foi cancelado. Que pena: se tivessem assistido, os meninos teriam se encantado com o mágico universo da infância de Miguilim e seu duro aprendizado rumo à vida adulta. Mães puritanas, movidas pela máquina totalitária, subtraíram a seus filhos a chance da maturidade. Talvez tenha faltado a elas os óculos que o personagem usa na última cena para enxergar o mundo.

Professores de português já me confessaram que se veem forçados a levar para a sala de aula um amontoado de textos insípidos, frases sem contexto para análise sintática, por receio de represália dos pais. Enquanto isso, a escola vai deixando de
formar o leitor, com toda a sua potencialidade crítica, com toda a inteligência que lhe é devida, sem que ele suspeite que a aula de português, para além da gramática, da sintaxe, é também, e essencialmente, a amplitude da consciência crítica sobre o humano. Lemos para entender que por trás dos olhos apavorados do outro existe um ser com história, identidade e memória subjetiva.

O pior legado de Bolsonaro não será a economia (que esta, com o tempo, se conserta), nem a polarização política, nem mesmo a negligência com a saúde. O pior legado de Bolsonaro estará dentro do indivíduo: a educação depois de seu plano totalitário, a dificuldade imensa de retorno ao discernimento ilustrado depois da degeneração da cultura, a transformação sombria da consciência das pessoas. Deste legado vêm todos os outros.