terça-feira, 14 de julho de 2020

Flavio Sousa, o corajoso

Em nome da clareza, é necessário eu dizer que trabalhei no Sistema Clube de Rádio por quinze anos. A relação entre mim e eles era estritamente profissional. Nunca me envolvi com campanhas políticas das quais participava o dono da emissora, nunca pedi a ninguém que votasse nele nem nunca votei nele, mesmo quando ele reunia os funcionários pedindo apoio para as candidaturas dele; além do mais, sei que ele e que a família dele não precisam do meu voto. Tanto é assim que têm longa carreira política sem meu apoio. Também nunca votei no outro grupo político local; nenhum dos grupos faz o que considero política; obviamente, sei que esse outro pessoal também não precisa de voto meu. Isso não que dizer que o dono do Sistema Clube de Rádio estava errado em pedir que os funcionários da emissora votassem nele. Comento isso para ilustrar que minha convivência com a direção da rádio sempre ficou no campo profissional. Fiz meu trabalho da melhor maneira que pude (o que não quer dizer que eles gostaram do que fiz); não estando mais na emissora, não fiquei devendo favores de nenhuma natureza para eles (pois nunca os pedi) nem eles ficaram me devendo favores de nenhuma natureza (pois nunca me pediram).

Só hoje, no começo da noite, fiquei sabendo do episódio ocorrido com o Flavio Sousa, locutor, repórter e redator do Sistema Clube de Rádio. Num programa da emissora, Flavio criticou a elite dos Patos de Minas. Por causa disso, ele não mais fará comentários na atração, dedicada, segundo o que me foi informado, a debates. Enquanto escrevo esta nota, o locutor segue trabalhando na empresa como repórter e como leitor de notícia.

Nada é surpreendente nessa história. Nos primeiros contatos que tive com o Flavio, ele havia me procurado para que eu ministrasse para ele aulas, acho, de português. Na época, ele era estudante de jornalismo ou estava prestes a começar o curso. Pensei comigo: “Esse tá começando bem, pois está preocupado com o bem falar e o bem escrever”. Essas aulas duraram pouco tempo, o que não fez com que eu perdesse contato com o Flavio. Não acompanho o trabalho dele no rádio por eu não mais escutar nenhuma das emissoras locais há um bom tempo. Do Flavio, acompanho o que ele tem escrito, lendo o que é publicado em redes sociais, seja uma opinião, seja um artigo, seja um conto, seja um poema. Flavio, além de radialista, dedica-se a escrever ficção, tendo já publicado livro.

A história entre ele, o Sistema Clube de Rádio e a elite local não surpreende porque a opinião do Flavio, bem sei, foi expressão do pensamento dele. Ele não estava fazendo um personagem que se dedica a ter audiência a qualquer custo. O que Flavio disse diante do microfone da emissora é expressão do que ele é, não uma expressão de atitude sensacionalista. A reação da rádio não surpreende porque a mentalidade dos que a dirigem é expressão do que pensa a elite local, do que pensa a elite brasileira, uma elite conservadora que deseja manter às custas dos pobres os privilégios (não merecidos) que vêm de séculos (a quem se interessar pelo tema, indico Jessé Souza ou Darcy Ribeiro).

Flavio não disse nada demais. Contudo, o que ele disse é gigantescamente necessário. Ele fez um contraponto ao discurso da elite. Ora, ela, a elite, já tem todos os espaços para apresentar o que pensa e o que (não) faz. Os pobres não têm recursos nem estrutura técnica para que a voz deles chegue a mais pessoas. A dor deles não aparece nos jornais, valendo-me eu de paráfrase de canção do Chico Buarque, o qual, aliás, não raro, é execrado pela elite que o Flavio criticou.

A direção da rádio divulgou nota, também reveladora e nada surpreendente. A primeira coisa que chama a atenção na nota que divulgaram é o cuidado que eles não tiveram com o português (cuidado esse que o Flavio tem). No que a emissora divulgou há coisas como “houveram excessos”. Contudo, o português incorreto é o problema menor da nota; ela é sintoma do conservadorismo da elite brasileira, que, travestida de bom-mocismo, apresenta o que chama de pluralidade de ideias, quando tal pluralidade não há. Esse, sim, é o grande problema da nota que a rádio divulgou. (Os problemas de português seriam resolvidos se um revisor tivesse conferido o texto.)

Diz a nota deles sobre o comentário que o Flavio fizera: “(...) A direção da Rádio Clube reitera que não se trata de opinião da emissora, tratando-se de livre manifestação do pensamento do profissional, sempre permitida por essa empresa em toda sua história, e em especial neste programa, criado para dar espaço a todas as vertentes de pensamentos. Entretanto entendemos que houveram [sic] excessos e palavras mal colocadas, que acabaram ofendendo pessoas, principalmente ligadas ao nosso valoroso e pujante comércio local, a quem a Rádio Clube pede desculpas”.

A emissora diz haver nos microfones dela “espaço a todas as vertentes de pensamentos”, mas alega ter havido “excessos e palavras mal colocadas” por parte do Flavio. Em essência, o que Flavio disse foi que a elite não está nem aí se os pobres não podem pagar por um exame de detecção da covid-19 e que a elite não dá a mínima se os pobres não podem se dar o luxo de se refugiarem contra a epidemia em espaços milionários. Por fim, Flavio disse que uma elite burra pode servir de “púlpito para candidato burro e despreparado”.

A nota da emissora menciona que o discurso do Flavio ofendeu pessoas “ligadas ao nosso valoroso e pujante comércio local”. Não bastassem o bairrismo e a pieguice do trecho, o que Flavio disse não é agressão pessoal; em nenhum momento ele faz referência a nome(s). Ele diz que uma elite burra cai em balela de candidato burro. Ora, pobre burro também cai em balela de candidato burro. Os que se sentiram ofendidos poderiam alegar, talvez, que o Flavio só criticou a elite burra, nada tendo sido dito sobre os pobres burros. Que a emissora, então, apresentasse um contraponto à opinião do Flavio. Não é isso o que ocorreu. Em vez de apresentar o contraponto, preferiram calar as opiniões do jornalista sob o argumento de que ele foi ofensivo.

Ainda sobre a “livre manifestação do pensamento” alegada pela emissora: quando lá trabalhei, o dono do meio de comunicação era candidato a prefeito de Patos de Minas. Ele concederia uma coletiva para jornais, rádios e TVs. Fui escalado para fazer pergunta em nome da Rádio Clube FM (salvo engano, hoje é chamada apenas de 99FM, mas posso estar enganado quanto a isso). Faltando mais ou menos uma hora para o início da coletiva (não lembro mais onde ela ocorreu), um dos funcionários do Sistema Clube de Rádio, envolvido com a campanha do político e superior a mim na hierarquia da firma, pediu-me que eu mostrasse a ele a pergunta que eu faria durante a coletiva. Depois de a ler, ele disse: “Pergunta outra coisa”. A pergunta era: “Já foi dito que os políticos poderiam ser melhores se mantivessem o hábito da leitura. O que o senhor tem lido?”.

A pergunta era simples; ademais, a leitura ou a falta dela, em si mesmas, nada garantem. O sujeito pode ser leitor e ser um péssimo político, bem como pode nada ler e ser um excelente político. Ainda assim, fui “orientado” a não fazer a pergunta que eu preparara. Não a fiz. Não me recordo do que perguntei, mas como não me remanejaram (o que fizeram com o Flavio), devo ter perguntado algo protocolar, algo que não ofendesse pessoas “ligadas ao nosso valoroso e pujante comércio local”.

A opinião do Flavio não foi ofensiva; foi uma opinião sensata. Sobretudo, ele teve uma admirável coragem, por ter dito o que disse no espaço em que estava. Uma rádio pode adotar a política que quiser, pode manifestar o espectro ideológico que quiser. Sei disso. O que critico é a postura de quem se declara “um espaço democrático da comunidade”. É democrático até o momento em que verdades sobre a elite não sejam ditas. Certos espaços democráticos da comunidade não estão interessados em quem dá voz às agruras dos pobres. 

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