sexta-feira, 11 de junho de 2021

O primeiro mentiroso

[Antes de ler a crítica a seguir, saiba que, por um lado, não conto como o filme termina, mas, por outro, adianto o que é a maior implicação contida no trabalho.]
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O planeta dos macacos de Tim Burton tem uma cena em que um personagem passa a mão na parede do que restou de uma antiga e empoeirada astronave. Devido à poeira, as sílabas “-ca”, “-li” e “-ma” podiam ser lidas por quem olhasse para a parede. Assim que a poeira ao redor das sílabas é retirada pela mão do personagem, notamos que há o anúncio 

CAUTION 
LIVE 
ANIMALS
[Cuidado Animais Vivos], 

já mostrado no início do filme.

A cena é forte porque Calima é o nome do deus venerado pelos macacos. Em termos simples, mas nem por isso fracos nem com implicações desimportantes, o deus dos macacos não existe. O “ser” para o qual oram todos os dias, o “ser” a quem consagram a existência deles é um engodo. O nome desse deus nasceu a partir de um engano, de um aviso na parede de uma nave.

A existência de deus pode ser uma mentira. Essa é a mais forte implicação em O primeiro mentiroso (2009) [The invention of lying], dirigido e roteirizado por Ricky Gervais e por Matthew Robinson. No universo do filme, ninguém mente nem nunca mentiu, ninguém tem sequer a noção do conceito de mentira. É algo que não está na mente das pessoas, é algo que o cérebro nem cogita nem imagina, é coisa que não faz parte da existência no dia a dia. Assim, um garçom, enquanto trabalha, pode dizer a um cliente que ele não merece a mulher com quem ele está, um funcionário pode dizer ao chefe que não vai à empresa porque não está a fim de trabalhar. A premissa de que estamos num mundo em que ninguém mente é apresentada nos primeiros segundos; temos de nos ater a ela durante todo o tempo. 

Mark Bellison [Ricky Gervais], roteirista de pouco destaque numa empresa, está na casa dos quarenta; é personagem principal e narrador da história. Nos primeiros minutos, logo sabemos que ele será demitido, que não tem grana para pagar o aluguel e que há tempos tem interesse em Anna McDoogles [Jennifer Garner]. As cenas iniciais deixam nítido o que é viver num mundo em que as pessoas não têm sequer o conceito da mentira: Mark está diante da porta do apartamento de Anna (haviam marcado ida a um restaurante). Mal tendo aberto a porta, ela diz que ele chegou antes do combinado, tendo interrompido a masturbação dela; de cara, Anna também deixa claro que não gostou nada da aparência de Mark.

Nesse astral, o filme vai se desenrolando. Sim, rimos das variadas situações, algumas sendo de fato hilariantes, mas, ao mesmo tempo, logo nos damos conta de que não estamos em apenas mais uma comédia (romântica). A gente ri; todavia, ao mesmo tempo, nós refletimos sobre a hipocrisia nossa de cada dia e sobre as mentiras que, de fato, precisamos contar em determinados momentos, o que me remete a Borges, que escreveu (não me lembro das exatas palavras) que não há quem, ao fim de um dia, não tenho mentido, com razão, várias vezes.

Não importa se levamos em conta o título original do filme ou se levamos em conta a versão em português para o título, haverá a primeira mentira. Quando Mark a profere, uma nova dimensão se abre, pois, não nos esqueçamos, ele está num mundo em que não há a ideia da mentira, num mundo em que ninguém mente. Quando Mark inaugura o que chamaríamos de a primeira mentira, uma gama imensa de consequências se descortina. A princípio, Mark as coloca à prova; depois, começa a tirar proveito de ser ele o único humano com a capacidade de mentir.

Ainda que nos perguntemos por que Mark não é tão “cruel” quanto aqueles que dizem para ele a dura realidade da vida que ele vinha levando, a partir do momento em que ele mente pela primeira vez, é questão de pouco tempo para que ele comece a se valer das vantagens pessoais que isso poderia trazer. Além do mais, num instigante aspecto, Mark mente para algumas pessoas a fim de... melhorar as vidas delas, ainda que tal melhora venha por intermédio de uma mentira, o que nos fornece mais uma profícua reflexão.

Fosse isso, o filme já seria rico demais. Mas há o momento em que Mark conta uma mentira para a mãe dele, estando ela prestes a morrer em cama de asilo. Contada a mentira, a mãe, que, há segundos, estava aflita quanto à morte, torna-se serena e morre. O impacto da cena em nós é incomensurável, pois o que Mark contara à mãe foi a “boa” nova de que, depois da morte, haveria um “homem no céu” (Mark não usa a palavra “deus”, pois, obviamente, não há palavra para nomear uma noção que não perpassa a cabeça das pessoas, noção que, até momentos antes de ele consolar a mãe com uma mentira, não estava também na cabeça de Mark) a cuidar de nós, que não seríamos, depois da morte, pó. (Também válido notar que Mark não usa a palavra “heaven”, mas, sim, “sky”.)

Nesse momento, devido ao impacto da cena, eu pausei o filme e me lembrei de Calima. Em O primeiro mentiroso, deduz-se a princípio que, num mundo sem mentiras, não haveria a ideia de deus, não haveria a crença num deus. A mentira contada por Mark à mãe dele é escutada pelo médico que estava cuidando dela e por duas enfermeiras. Logo, logo, o mundo todo estava agitado por uma mentira, perguntando-se quem seria esse “homem no céu”.

Mark passa a ser assediado pela multidão, pela mídia, com o mundo todo sedento para saber tudo sobre o tal “homem no céu”. A partir daí, o filme assume a coragem de debochar, sem perder o tom em que vinha até então, de conceitos arraigados nos corações e nas mentes das pessoas. Em paródias divertidas, Mark anuncia os mandamentos do “homem no céu” ou, tendo sido readmitido no emprego, inventa roteiros ridículos que são ovacionados. Aliás, outro grande ponto do filme, as histórias que Mark passa a inventar como roteirista depois de recontratado funcionam como ácida crítica contra a estúpida credulidade das pessoas, que podem, dentre outras coisas, por exemplo, tomar cloroquina porque um “messias” a indicou ou entregar o corpo a um religioso porque ele disse que o esperma dele seria bom para a fiel.

Tem-se então que O primeiro mentiroso é um filme pesado, denso, “disfarçado” de comédia. É um filme sério, que postula, com coragem e com humor, ideias que estão em discordância com o que tem sido reverenciado há milênios. Há momentos em que gargalhamos, momentos em que nos sentimos embaraçados por termos achado graça de algo, momentos em que ficamos com um riso amarelo, momentos em que percebemos que “há ferrugem nos sorrisos”. O primeiro mentiroso leva ao riso, à reflexão, à filosofia. Não seria diferente ao revelar o segundo mentiroso.