terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Os bastidores de um texto

Sempre tive fascínio pela feitura das coisas. Por isso é que gosto tanto de conferir como filmes são rodados. Gosto de conhecer os bastidores de como as coisas são produzidas. Revelar como se faz o truque não tira o encanto da mágica. Algo similar vale para a literatura. É bom demais conferir fac-símiles com correções feitas pelos autores. É sempre revelador e instigante cotejar o rascunho com o original.

Eu sempre tive vontade de registrar toda a feitura de algum texto meu, desde quando a primeira letra é digitada; contudo, padeço de uma preguiça congênita, imensa e vergonhosa. Essa preguiça ou faz com que eu fique adiando as coisas ou com que eu nem as realize — o que é comum.

Ontem, escrevi um poema à mão, o que eu não fazia há muito tempo. Hoje em dia, ou escrevo o texto no bloco de notas do celular ou o digito no computador. O celular estava ao alcance das mãos, mas como havia um caderno e uma caneta à disposição, escrevi o poema usando uma caneta.

De antemão, costumo definir a temática. Parece meio óbvio, mas tenho de deixar bem claro para mim a temática do que ainda nem começou a ser escrito. No caso de ontem, a ideia era escrever um poema sobre o astral que há depois do amor feito. Ao começar a escrever o texto, escolhi o começo “o corpo, / há pouco lancinante, / descansa malemolente” (gosto do adjetivo “malemolente”, não somente pelo significado, mas também por achá-lo uma palavra gostosa de ser pronunciada).

Assim que terminei de escrever “malemolente”, ocorreu-me “sensação de amor cumprido”. Para não me esquecer do trecho, que acabaria não entrando na versão final, por eu achar que ele transmite a sensação de que o amor seria um dever, uma obrigação, eu o anotei à parte, linhas abaixo.

Terminado o verso “e no outro”, que também não entraria na versão final, por eu considerá-lo redundante, já que gozar para o outro pode implicar gozar no outro, tive vontade de reelaborar o trecho “o corpo, / há pouco lancinante, / descansa malemolente”. Em vez de mantê-lo na abertura do poema, eu o reescrevi no “meio” do texto. É claro que esse gozar no outro pode não valer no caso da masturbação, por exemplo, mas ainda assim, optei por não inserir o verso “e no outro” na versão definitiva. 

(Escrevi “versão definitiva”. Talvez seja válido lembrar que um texto poderia ser reescrito ou corrigido diversas vezes, até a ponto de ficar bem diferente do que era em seu esboço original. Todavia, nunca fui de modificar radicalmente os esboços que tenho. Não é exagero quando dizem que um texto nunca está terminado.)

A seguir, era minha intenção fazer referência ao nirvana. A princípio, escrevi “nirvanicamente”, que é a palavra sobre a qual há um rabisco, depois de “curtindo”. Só que o advérbio “nirvanicamente” rima com “malemolente”, o que não me agradou. Para fugir da rima, escolhi “íntimo do nirvana”.

Ao encerrar o rascunho, usei o trecho “sensação de amor cumprido”, que estava de molho, terminando assim uma versão preliminar do texto. Quando essa versão inicial é terminada, releio o que produzi. Caso essa releitura traga alguma insatisfação, tento consertar o já escrito. Se não consigo, eu geralmente deleto o trabalho. Na releitura, como o trecho “sensação de amor cumprido” não me agradou, pela razão já explicada, na hora de digitar o texto, eu o substituí pelo que está na versão definitiva.

Como escrevo textos curtos, esse meu trabalho de revisar e de corrigir é rápido, não demanda grandes esforços. Por fim, digo que minha caligrafia, embora nunca tenha sido das melhores, não é tão ruim quanto a que está no rascunho. As linhas foram rabiscadas enquanto eu estava em minha cama. Se o caderno estivesse sobre uma mesa, estando eu numa cadeira, a caligrafia estaria um pouco melhor.

Escrever é algo ligado a preferências, a idiossincrasias. Há deliberações, mas não se pode esquecer de que há muito de inconsciente na produção de um texto. Sempre encarei a produção literária como um ato, em sua conclusão, racional. Isso, vale lembrar, não significa dizer que eu não tenha ciência do papel do inconsciente, da intuição ou de quaisquer outras coisas não ligadas à razão. 

Só que de nada valeria a intuição, a imaginação ou o inconsciente por si mesmos. Razão e imaginação estão presentes no trabalho literário numa via de mão dupla, de modo que uma auxilia a outra, a ponto de ser difícil precisar o que é fruto da razão e o que é fruto da imaginação, o que, além do mais, seria inútil, seria fatiar o que deveria ser encarado como um todo, desde antes da feitura até o ponto em que o texto está pronto.