quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Quando a fotografia cega

Sempre que ministro curso de fotografia, perguntam-me o que acho de se fazer fotos com celular. Digo que ainda não gosto, pois mesmo o mais avançado dos celulares não tem nem a qualidade nem a agilidade nem os recursos técnicos de uma câmera, mesmo que ela não seja tão avançada assim. Mas é uma questão de tempo para que os celulares possam oferecer os recursos e a rapidez de uma câmera, não só quando se maneja o equipamento, mas também quanto à rapidez na captura. Os celulares continuarão sendo mais do que o bastante para o consumidor “comum”. Não creio que os telefones substituirão as câmeras.

Outra pergunta que me fazem com frequência em cursos de fotografia é sobre se a fotografia digital teria empobrecido o ato de fotografar. Quem deseja a excelência aprende a técnica, que é fundamental. Mesmo com a evolução tecnológica, a técnica é a mesma. A fotografia digital levou a uma maciça popularização do ato de fotografar, precisamente graças aos celulares. Se, por um lado, essa popularização, no mais das vezes, não implica domínio das técnicas de fotografia por quem se vale de telefones ao fazer os registros, por outro, essa mesma popularização pode levar ao interesse no aprofundamento da técnica fotográfica. Comigo foi assim, quando, em 2004, comprei uma câmera digital amadora de 3.2 megapixels. Manejando-a, acabei me interessando por aprender sobre a técnica fotográfica. A popularização ainda maior da fotografia pode ser uma consequência saudável da tecnologia digital.

Em contrapartida, essa popularização, incrementada graças aos celulares, e, depois, graças às redes sociais, teve e tem elementos sociológicos, de que os autorretratos (ou, caso você prefira, as “selfies”) são os sintomas mais reveladores. Tantos os celulares quanto as redes sociais estão mais a serviço da propagação do si-mesmo do que à “ocultação” daquele que fotografa. Havia autorretratos no passado; todavia, a facilidade de manejo que os celulares têm e a possibilidade de se conferir na hora o resultado da foto proporcionam as condições para o incremento deles.

O assunto da fotografia era, em grande parte, o que havia diante dos olhos; com os autorretratos, o assunto passou a ser o fotógrafo, não o que os olhos dele enxergam, a não ser que ele esteja diante de um espelho ou que esteja mirando a própria imagem no visor do celular. Os olhos estão se dedicando não mais ao mundo que se descortina diante deles, mas à exposição e à glorificação do si-mesmo. Diante de uma paisagem, seja ela natural, seja urbana, o que conta não é a paisagem, mas inserir-se nela. Não basta estar diante de: é preciso que o rosto ou que todo o corpo de quem contempla esteja em evidência, com a paisagem ficando em segundo plano, fazendo pano de fundo para quem estiver no autorretrato. É como se a legitimidade do registro só fosse alcançada a partir da exposição no quadro fotográfico do corpo de quem faz o registro.

A incisiva autoexposição é sintoma de tempos em que o que conta é aparecer o tempo todo, sob pena de se cair no ostracismo no mundo virtual, por mais ilusório que possa ser o sucesso em redes sociais (ou qualquer outro sucesso). Num universo cheio de coisas, digamos, lá fora, a pessoa se volta, mesmo assim, para si mesma, não ao modo de quem se investiga, mas à maneira de quem precisa se exibir, inserindo-se no registro. Ao olhar para si, quem fotografa o faz de modo superficial; ao olhar para fora, não consegue não se inserir. Perde-se, assim, o exercício do olhar que perscruta, aprende, observa, analisa. Quem tira a foto acaba não prestando atenção nas coisas e acaba se mostrando com vaidade, que impede a pessoa de se enxergar numa abordagem mais honesta. A essência da fotografia, que é, antes do clique, o exercício do olhar, é perdida. Num ambiente em que o importante é um autorretrato numa rede social, a fotografia, num paradoxo, em vez de enriquecer o olhar, seja com relação ao mundo interior, seja quanto ao que está diante da visão, pode vir a aumentar a cegueira quanto ao que se é.