quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Contrafação

Parte da classe média brasileira imita, sem sucesso, o que os EUA têm de bom, e consegue, na verdade, piorar o que eles têm de ruim. 

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Preposições

Sob as águas, 
em tragédia brasileira, 
a Bahia.

Sobre as águas, 
em veículo aquático, 
o presidente.

Sob a lama, 
em legado bolsonarista, 
o Brasil. 

domingo, 26 de dezembro de 2021

Não é só um cometinha

O diretor Adam McKay não tem medo de ser óbvio em Não Olhe para Cima (2021). O roteiro é dele e de David Sirota. Logo no início do filme já sabemos que ele desenvolver-se-á quando dois astrônomos, Randall Mindy [Leonardo DiCaprio] e Kate Dibiasky [Jennifer Lawrence] têm provas visuais e matemáticas de que um cometa vai atingir e destruir a vida na Terra.

O destemor de McKay quanto à obviedade está na ausência de sutilezas com relação aos personagens, que acabam sendo estereótipos das categorias a que pertencem. Assim, Randall Mindy é o cientista desajeitado, Kate Dibiasky é a cientista jovem que não se adéqua, a presidente Orlean [Meryl Streep] é o político imbecil, Brie Evantee [Cate Blanchett] é a apresentadora midiática no que a mídia tem de pior, Peter Isherwell [Mark Rylance] é o magnata sem escrúpulos que manda na presidente por ter sido o maior financiador da campanha dela.

Pode-se argumentar haver algum arco dramático na trajetória de Randall Mindy, que acaba deixando-se seduzir (no caso em questão, literalmente) pelos apelos midiáticos. Todavia, Não Olhe para Cima não é um filme sobre estudos de personagens, mas uma produção que escancara, sem sutilezas, uma época sem sutilezas.

Randall e Kate são ridicularizados não somente porque os negacionistas desdenham deles, mas também porque a mensagem que entregam, que é o fim iminente da vida na Terra, é levada ao público não de modo espalhafatoso, circense. Mesmo quando dão um polimento na imagem de Randall, a notícia do fim da vida na Terra não é absorvida por grande parte do público, que, anestesiado, vai para as redes sociais fazer piadinhas com a tragicidade do evento cósmico.

O filme é uma sátira-espelho de um tempo, que finge nada ter a ver com a destruição do planeta e que ri daquilo que não tem graça nenhuma. Adam McKay entrega algo que, se levar ao riso, será aquele tipo de riso travado de quando se está diante da perigosa burrice dos que detêm o poder.

Curiosamente, uma das poucas metáforas do filme (senão a única) é o cometa em si. E, caso raro, uma metáfora que pode ser encarada em dois planos — o literal e o figurado. A metáfora, em regra, não é interpretada ao pé da letra. Se alguém diz “você é Sol da minha vida”, sabe-se, é claro, que ninguém é o Sol. Ou seja, a frase “você é o Sol da minha vida” vale não pelo que é literalmente dito, mas por aquilo que se quer dizer, por aquilo que é sugerido.
 
De modo análogo, o cometa em Não Olhe para Cima pode ser uma metáfora, e ainda que assim interpretado, o diretor, mantendo o tom do filme, deixa óbvia essa metáfora. Há, por exemplo, a criação de dois movimentos sociais: os que se organizam para pedir à população que não olhe para cima e os que se organizam para pedir à população que enxergue o óbvio, bastando, para isso, olhar para cima. Como metáfora, o cometa simboliza tudo aquilo que a ciência descobre e o efeito que isso tem numa sociedade idiotizada. (A bem-vinda obviedade de Não Olhe para Cima lembra a igualmente bem-vinda de Viagens de Gulliver, do Jonathan Swift.)

No filme, a presidente Orlean, movida também por interesses financeiro-pessoais, é uma negacionista. O cometa é uma ameaça que vem do céu, mas pode ser metáfora de uma ameaça que existe em forma minúscula e que não é só uma “gripezinha”. De resto, quando o assunto é um governante negacionista, sabemos bem que no cenário como o do filme, um desses governantes diria algo como “é só um cometinha”. 

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

A promessa

Beijos, carícias, peles eriçadas, preliminares ditosas. Nus, os dois. Sexos ávidos pela trama. Ela diz:
— Hoje, não. Pensando bem, quero que você seja não o meu primeiro homem, mas o segundo. 

Llosa

O Vargas Llosa continua lamentável. Com relação ao Brasil, já compôs loas para o Moro. Agora, mais recentemente, quanto ao Chile, louvou José Antonio Kast. É muito fácil apoiar a extrema-direita quando não se é alvo dela. Mas não nos esqueçamos de que há casos em que os alvejados por ela, ainda assim, glorificam o algoz. Isso ocorre, por exemplo, no Brasil. 

O que se aceita

Queiroga disse que mortes de crianças por covid “estão dentro de patamar aceitável”. Para o governo Bolsonaro, o que é inaceitável é a vida. 

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

O otimista Bresser-Pereira

Pesquisas recentes têm revelado a queda de Bolsonaro. Diante de números, o imprescindível Luiz Carlos Bresser-Pereira, após pesquisa divulgada pelo Datafolha, escreveu no Facebook: “Os brasileiros caíram em si. Depois do imenso erro que cometeram elegendo um presidente de extrema-direita, eles voltaram a pensar”. Quisera eu pensar como o Bresser-Pereira, mas não consigo deixar de supor que o brasileiro está mais do que pronto para, assim que tiver oportunidade, eleger um governo cuja tosquedade seja similar ou pior do que a de Bolsonaro. No futuro, o brasileiro somente não elegerá um governo que defenda tortura e ditadores e que homenageia milicianos se tal candidato não apontar no horizonte. 

sábado, 18 de dezembro de 2021

Cléverson Lima

Fiquei sabendo há pouco que o Cléverson Lima morreu. Estava morando na cidade de onde veio, Araxá. Quem frequentou bares em Patos de Minas na década de 1990 e na década de 2000 se lembra do Cléverson Lima.

Não havia como não gostar dele: agregador, talentoso, carismático; tinha humor involuntário e uma capacidade assombrosa de saber de cor toneladas de canções; sobretudo, foi um sujeito com alma generosa, boa. Assistindo a shows dele em bares de Patos de Minas e da região, tive momentos memoráveis, catárticos. Assistir às apresentações dele era um modo de ser feliz.

Não sei detalhes sobre a morte do Cléverson. Num áudio que me enviaram, é dito que infarto foi a causa. A fim de materializar minha admiração pelo Cléverson, eu o mencionei em dois de meus livros: no Algo de Sempre, há um poema em que faço referência ao Cléverson; no Anacrônicas, há uma crônica sobre ele. Ambos os textos estão também neste blogue. Abaixo, links em que há a presença do Cléverson.
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https://liviosoares.blogspot.com/2008/09/clverson-lima.html

https://liviosoares.blogspot.com/2009/06/fotopoema-110-cleverson-lima_27.html

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

A velha novidade

Assisto novamente a filmes como se eu quase estivesse assistindo a eles pela primeira vez. Assim foi ontem com Newness (2017), dirigido por Drake Doremus e roteirizado por Ben York Jones. No enredo, Martin Hallock [Nicholas Hoult] e Gabi Silva [Laia Costa] são dois jovens que se conhecem por intermédio de aplicativo telefônico.

O filme pode ser entendido como o amor nos tempos do celular. Newness é um retrato poético e eficaz de como os jovens de relacionam com a tecnologia e com o que sentem. Ela é, por assim dizer, personagem, é extensão dos mundos de Martin e de Gabi. 

Se, por um lado, o casal está antenado quanto a relacionamentos que começam na esfera eletrônica, por outro, os dramas, as dúvidas, as dificuldades de que padecem são os mesmos a que o amor pode levar, não importa a época em que ocorra. Newness é um filme sobre o amor, tem os ingredientes dele, com suas alegrias e seus pesos. 

Martin e Gabi não sabem o que fazer com o que sentem. Ou assim se tornam quando entendem que gostam um do outro. E não há tecnologia que ensine o que fazer com isso; a resposta, se é que há, é de cada um. No que diz respeito à tecnologia, estão em sintonia com o tempo em que vivem; no que diz respeito ao amor, as dificuldades que enfrentam no dia a dia da relação são as dificuldades de sempre, as alegrias que vivenciam são as de sempre. Em meio à parafernália eletrônica, o amor, na ótica, do filme, permanece o mesmo.

A paleta da produção é pouco saturada, as cores são frias, as imagens são subexpostas, a profundidade de campo é reduzida. Nessas escolhas estéticas, Martin e Gabi são com frequência mostrados em contraluz. A câmera de Drake Doremus, quase sempre em movimento, ora enquadra os personagens em tomadas fechadas, ora os observa com discrição, seja através de uma vidraça, seja a partir de outro cômodo. Em imprecisos contornos, somos postos diante das imprecisões de Martin e de Gabi.

A despeito da estética descolada, Newness é filme cujos personagens principais são, no fundo, conservadores. Martin e Gabi se entregam à vida e ao amor, às diversões e às possibilidades de encontros que nasceram a partir de aplicativos para celulares. Os dois jovens não sabem ao certo o que fazer com o que querem nem o que fazer com o que supõem querer. Querem crer que o conservadorismo não combina com o modo de vida que elegeram; destrambelham-se, contudo, quando tentam não ser conservadores.

Martin e Gabi são o amor como ele sempre foi, embora tentem exercê-lo no que julgam ser contemporâneo. O celular substituiu as encardidas missivas. No entanto, o casal encarna o amor no que ele tem de antigo e, talvez, de perene. Ele, o amor, pode fazer com que, diante da tela de um telefone ou numa pista de dança, a pessoa tenha em si os mesmos sentimentos de quando bilhetes marcando hora e local de encontros eram entregues às escondidas. 

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Canções em casamentos

Recentemente, a Carina Fragozo, responsável, no YouTube, pelo canal English in Brazil, publicou um vídeo em que ela menciona cinco canções que são escolhidas com frequência para serem executadas em casamentos porque parecem românticas. Todavia, esse suposto romantismo estaria nos arranjos, mas não nas letras. Dentre essas canções, Carina menciona, por exemplo, “More than words”, da banda Extreme. 

O vídeo dela me fez lembrar de que aqui em Patos de Minas, é comum os noivos pedirem que “Hallelujah”, a clássica canção do Leonard Cohen, seja executada em cerimônias de casamento. É claro que o casal tem direito de escolher a canção que bem entender. Mesmo assim, tenho a impressão de que parte desses casais não pediriam a execução de “Hallelujah” durante seus casamentos se conhecessem o teor do que é cantado. Ainda no terreno das impressões, outra que tenho é a de que os noivos, talvez, deixem-se guiar pela melodia e pelo pequeno coral. Reunidos — o título da canção, a melodia, o coral e o arranjo — confeririam uma atmosfera “sagrada” ao aleluia de Leonard Cohen.  

Abaixo, tradução da letra. Levei em conta o original gravado pelo compositor canadense. Ele mesmo canta uma versão estendida do texto num show gravado em Londres. Essa versão estendida poderia “redimir” a letra original, para que ela soasse “apropriada” numa cerimônia de casamento. Mesmo assim, ou seja, mesmo levando-se em conta a versão gravada ao vivo em Londres, estão presentes os originais versos “problemáticos” para serem cantados durante um casamento. Não bastasse isso, essa versão tem os seguintes versos:

Bem, talvez haja um Deus lá em cima
Quanto a mim, tudo o que aprendi do amor
É como atirar em alguém que sacou a arma mais rápido do que você
Mas não é um crime você estar aqui hoje à noite
Não é algum peregrino que alegue ter visto a Luz
Não, é um frio e um muito sofrido Aleluia

Agradeço aos músicos Edgar Medeiros e César Braga em virtude das pacientes explicações que me deram quanto ao trecho da letra que faz referências à nomenclatura e às características dos acordes mencionados nos versos da canção. Sem as ajudas do Edgar e do César, eu teria um painel menos vasto do esmero de Cohen. Eis, pois, a tradução, em consonância com a gravação original de “Hallelujah”:  

Agora ouvi dizer que havia um acorde secreto
Que Davi tocava e que agradava ao Senhor [1]
Mas você realmente não se importa com música, não é?
É assim, o quarto, o quinto
O menor desce, o maior sobe
O perplexo rei compondo Aleluia [2]

Sua fé era forte, mas você precisava de prova
Você a viu se banhando no telhado
A beleza dela e o luar sobrepujaram você
Ela amarrou você a uma cadeira da cozinha
E ela destruiu seu trono e cortou seu cabelo
E dos seus lábios ela fez sair o Aleluia [3]

Você diz que levei o nome em vão
Eu nem sei o nome
Mas se eu soubesse, numa boa, o que é isso para você?

Há um clarão de luz em cada palavra
Não importa qual você tenha ouvido
O Aleluia sagrado ou o sofrido

Eu fiz o meu melhor, isso não foi muito
Eu não conseguia sentir, então tentei tocar
Eu falei a verdade, eu não vim para enganar você
E embora tudo tenha dado errado
Ficarei diante do Senhor da Canção
Com nada em minha língua a não ser Aleluia 
_____

[1] O Davi da estrofe é o do antigo testamento. Segundo o relato bíblico, ele gostava de dançar e de compor elegias.

[2] A segunda metade da primeira estrofe é metalinguística: os versos descrevem o que está ocorrendo nos acordes e em seus graus na harmonia da canção.

[3] A segunda estrofe faz alusão a duas histórias bíblicas. Os três primeiros versos envolvem Davi, Betsabeia e o marido dela, Urias. Davi a vê tomar banho, manda buscá-la, ela engravida dele. Não assumindo a paternidade e livrando a barra de Betsabeia, Davi arquiteta para que Urias morra durante uma batalha. Os três últimos versos envolvem Sansão e Dalila, que, depois de insistências, o convenceu a contar para ela qual era o segredo da descomunal força dele. Tendo por fim obtido a resposta, Dalila, mediante pagamento, entrega Sansão aos inimigos dele.
 

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Bacana















Este é o Vicente, conhecido como Bacana (ou como Chazim). Meu pai e o Bacana tocavam juntos com muita frequência. Era comum ensaiarem num cômodo que ficava ali na praça Bandeirantes (quem também participava dos ensaios era o Formiga, de cujo nome não me lembro). Na época em que esses ensaios ocorriam, eu devia ter, suponho, uns sete ou oito anos. O Bacana gostava de bater na corda mais grave do contrabaixo imitando o que seria o embarque de uma locomotiva. Ele começava golpeando a corda e ia gradativamente aumentando o andamento, até o momento em que a “locomotiva” atingia velocidade de cruzeiro. Meu pai sempre me levava a esses ensaios. Eu mal via o Bacana e já pedia a ele algo do tipo “cara, faz a locomotiva”. 

Com muita frequência, passo em frente ao local de trabalho do Bacana, onde ele ainda vive às voltas com instrumentos musicais, com equipamentos de som e com quem lida com música, seja em que nível for. Sempre que eu passava por lá, ocorria-me o pensamento de que eu precisava fotografar o Bacana, um modo meu de homenagear não só um personagem que marcou minha infância, mas também um modo meu de homenagear uma das grandes figuras da cidade. Na sexta-feira, dia 19 de novembro, conversei pessoalmente com ele e mencionei o desejo de fotografá-lo. Ele topou. Fizemos as fotos hoje pela manhã. 

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Atlético (quase) campeão

Quando o Atlético/MG contratou o Hulk, pensei: “Estão jogando dinheiro fora”. Não jogaram. O jogador é um dos destaques do time, que é cheio de destaques. No que diz respeito ao futebol em campo, as decisões têm sido acertadas. Não sei dizer sobre as finanças e os negócios do clube. Será que amanhã o Atlético será o Cruzeiro de hoje? Não sei. Torço para que não seja, pois esse seria um fiasco não somente para o futebol mineiro, mas para o futebol nacional. Quanto maior o número de times fortes, melhor para o esporte.

Da década de 70 para cá, a única vez em que o Atlético venceu o campeonato brasileiro foi em 1971. Uma das consequências disso é que a maioria da torcida atleticana nunca testemunhou o alvinegro conquistar esse título. O torcedor do time só não se sentirá plenamente satisfeito porque o Atlético não venceu o Flamengo há dias, lá no Maracanã, e porque o Cruzeiro, em tese, assim parece, não vai cair para a série C. Isso não quer dizer que parte da torcida atleticana não se regozije com a continuidade do Cruzeiro na série B. O futebol é como a vida, é a vida em movimento; assim como há na vida, no futebol há Schadenfreude.

De fato, o Atlético não é o campeão brasileiro deste ano. Tem tudo para ser, mas não é. Há jornalistas que andam dizendo que essa recusa em confirmar o time como o campeão brasileiro deste ano é coisa de mineiro, que seria, por natureza, ressabiado, comedido, desconfiado. Nada disso. Boa parte do que dizem sobre o mineiro e sobre o que é a mineiridade é um mito ou um estereótipo. Nem este nem aquele se sustentam diante do que há em meio às montanhas do estado. (Não mineiros dirão que escrever assim é coisa de mineiro.)

O torcedor atleticano não bate o martelo, declarando o time como campeão brasileiro, simplesmente porque esse torcedor seria muito burro se assim declarasse. Uma coisa é o time ser favorito para a conquista do torneio, uma coisa é ter uma das melhores equipes do Brasil, uma coisa é conquistar pontos mesmo quando a equipe não joga bem; outra coisa é não mais poder ser alcançado por nenhum dos adversários. O galo não conta com o ovo da galinha, no que está certo. Seria no mínimo precipitado já se declarar o campeão da peleja.

O efeito psicológico sobre o time, caso o título não venha, pode ser devastador. Em anos anteriores, depois de 1971, o clube esteve com as mãos perto da taça de campeão. Não é novidade disputarem esse título. A novidade é que desde 2003, quando a disputa do torneio passou a ser por pontos corridos, nunca foi tão grande a possibilidade de o Atlético ser o primeiro colocado.

Torcedores imbecis, há deles em todos os times do mundo, assim como há, em todos os times do mundo, torcedores inteligentes. Dito isso, reconheça-se que a torcida do Atlético merece o título que está muito perto de ser conquistado. O Cuca, que não prima por jogos de palavras, disse, todavia, antes da partida de ontem, contra o Corinthians, que era para o torcedor ir para o Mineirão não para torcer, mas para trabalhar.

A torcida foi e trabalhou; a torcida do Atlético trabalha muito. Neste 2021, sendo o time campeão brasileiro, o grito vitorioso, suspeito, embora sem saber se o torcedor atleticano concorda comigo, será mais catártico do que o grito de quando a equipe ganhou a Libertadores. 

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Feijão com arroz

Pessoas com pratos cheios de comida apoiarem um governo que, por enquanto, levou vinte milhões a passarem fome é algo que diz muito sobre os apoiadores e sobre o apoiado. 

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Lixo

O Brasil se tornou novamente um país para poucos com o apoio de muitos. Em meio a esses muitos, há muitos catando alimento no lixo. Lixando-se estão Bolsonaro e Guedes. 

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Escatologia

Bolsonaro é escatológico,
em verbo,
em ato,
em qualquer sentido.

A Besta
(em qualquer sentido)
o segue,
em verbo,
em ato,
até o fim do mundo. 

Sangue

No geral, as pessoas tendem a crer em qualquer coisa; quanto mais tolo e estapafúrdio for aquilo em que se crê, tão mais fervorosa é a crença. Também por isso, acredita-se em coisas como o “projeto” político de Bolsonaro, que é, como já disseram, “desprovido de inteligência”. Tivesse apenas a burrice, Bolsonaro seria, talvez, ridiculamente risível. Todavia, nele, aliada à burrice, há a perversidade. Seja o que escorre pelas pernas, seja o que é derramado pelas milícias, seja o que é defendido pelo cidadão de “bem”, Bolsonaro quer o sangue dos pobres se esvaindo. 

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Danação

No país do 
o-povo-que-se-dane,
parte do povo que se dana
defende a turma do
o-povo-que-se-exploda.

A turma do o-povo-que-se-vire
homenageia Temer em jantar.
Faminto, doente, danado,
o povo é explodido.
A turma de Temer
faz um brinde. 

Duas mulheres

Gabriel García Márquez, no conto “Eva está dentro de su gato” (título original) e Charles Bukowski, no conto “A mulher mais linda da cidade” (infelizmente, não me lembro do nome de quem o traduziu) lidam com algo em comum: cada uma das histórias retrata uma mulher que renega algo que muitos gostariam muito de ter — a beleza física. Tanto na narrativa de García Márquez quanto na de Bukowski, há uma mulher que gostaria de ser valorizada não pela beleza que tem, mas pelo que nelas não se enxerga com os olhos. Belo tema. 

Regressão

Há quem valorize seus antepassados até o ponto em que se depara com um índio ou com um negro. 

Vento

Suaves lufadas.
Não as vejo, mas
sei que são fadas. 

Ossos

Bolsonaro é presidente 
para os filhos, 
para as milícias 
e para si.

Guedes é ministro 
para bilionários estrangeiros 
e para si.

Para os pobres com fome 
(muitos não caem em si),
os ossos do ofício. 

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Haicai

Ela é atrevida.
Veio a morte num
descuido da vida. 

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Ontem, passou perfume

Boa parte do eleitorado de Bolsonaro não está interessada em algo que soe como diplomacia, diálogo, conciliação. Esse eleitorado, assim que Bolsonaro passou a ser veiculado nacionalmente, logo percebeu que havia nele um truculento que não estava a fim de lidar com civilidades. Tendo Bolsonaro divulgado a carta de ontem, esses eleitores se sentiram traídos pelo mandatário.

As pessoas se revelam em tudo aquilo que fazem, transpiram o que são, gesticulam o que são, falam o que são. A reação de repúdio de parte dos bolsonaristas quanto à carta divulgada ontem é mais uma amostra do quanto não sabem (nem querem saber) como funciona o tão espancado e incendiado, no Brasil, estado democrático. Um país não pertence a um presidente, um presidente não tem a prerrogativa de fazer com um país o que ele bem entende.

As promessas econômicas de Bolsonaro não foram cumpridas. Todavia, o fracasso econômico, político e diplomático do presidente não incomoda parte dos bolsonaristas, que não reclamam de pagar sete reais num litro de gasolina nem reclamam da fome no país nem reclamam do desemprego porque esses bolsonaristas a que me refiro não estão interessados nem no outro nem na democracia; eles têm um fetiche por ditadores e ditaduras.

Esses eleitores, quando afirmam que o Brasil está melhor com Bolsonaro, não têm olhos para o quanto o número de pedintes de esmola aumentou, não têm olhos para os que não conseguem mais comprar alimentos, comprar gás de cozinha. O que incomoda esses eleitores não é a miséria do país, mas uma cartinha infame, mentirosa e cínica. As pessoas se revelam nos motivos pelos quais ficam iradas. 

Se o sujeito não está (ainda) passando fome, se (ainda) consegue abastecer o carro, se (ainda) consegue saborear seu bife no almoço, sem problema se os demais não têm isso. Para boa parte dos bolsonaristas, a questão não é de humanidade: se eles (ainda) têm o que desejam, melhor ainda que seja, ocupando o poder, um “macho-mito” que fala alto e que, se for o caso, manda fechar seja o que for para demonstrar a “macheza” “mítica” que tem.

O Brasil (ainda) não chegou a outro golpe. Bolsonaro vai tentar um novamente, já que não deu certo no dia sete de setembro. O recuo falso por parte do presidente foi uma tentativa de apaziguar o dia de ontem. Hoje, o Sol voltou a nascer. Logo, logo, boa parte dos bolsonaristas terão mais do que estão sedentos, ou seja, de um sujeito que defende o extermínio dos adversários, que defende ditadores e que liberou o incêndio do país em nome dos interesses de uns poucos. Não importa se o Brasil pega fogo, não importa se as pessoas não têm o que comer, não importa se os índios estão sendo assassinados. 

Boa parte dos eleitores de Bolsonaro não vão assumir a miséria que ajudaram a criar porque concordam com ela. A fim de arrumar justificativas para a incapacidade e para a crueldade do presidente, esses eleitores ora culpam o passado, ora culpam o STF, ora culpam o comunismo (sic). A culpa nunca é de quem votou num sujeito que, durante toda a trajetória política, sempre deixou muito claro que matar é a especialidade dele, como ele mesmo já admitiu publicamente. Para um gambá, o cheiro de outro gambá é agradável. Os eleitores que ainda apoiam Bolsonaro podem ficar tranquilos. Ontem, ele só passou um perfumezinho. Hoje, está de volta a essência dele; ele já está cheirando a ignorância, a violência e a morte. Bolsonaro é putrefato. 

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Sem ilusões

Fico imaginando a cara de Bolsonaro ao ver divulgada a carta em que ele diz ser democrata. Ou seja: até quando quer soar conciliador, ele mente, pois ele nunca foi nem é um democrata. Bolsonaro fraquejou para tentar salvar a pele. Disse que respeita as instituições e a constituição. Mentira. Ainda assim, uma mentira que mostra o quão acuado e enfraquecido está. O “mito” subscreve declaração em que diz respeitar o STF. Mentira. Os bolsonaristas têm um “deus” que assina algo contrário à sua essência, algo escrito por Michel Temer, sujeitinho tão desprezível quanto o antidemocrata e covarde (em qualquer acepção do termo) Bolsonaro.

Só que um vaidoso ególatra como Bolsonaro não vai engolir calado a vergonha que está sentindo por causa da divulgação da carta de hoje. É muita humilhação para quem vinha descumprindo a constituição há décadas; é muita humilhação para quem não tem o menor espírito estadista. Bolsonaro bem que queria entrar para a história como um dos grandes. Agora, além de entrar para ela como um genocida miliciano, nela estará como quem arrega. Caras como ele são meninões mimadinhos que, quando em aperto, fazem xixi nas calças e chamam a mamãezinha.

Contudo, não pode haver ilusão. Ele é um moleque fracote, mas está no poder, é perigoso e tem seguidores perigosos. Justamente por estar com o ego ferido, é questão de pouco tempo para que Bolsonaro volte a atacar a democracia. Pode ser que os novos ataques venham por intermédio de atos. Bolsonaro não vai engolir, sem nada fazer, as palavras que ratificou hoje. Ele não está em nenhuma linha do que diz o texto da carta. Ele não deixou de ser o tolo belicoso que sempre foi. Por causa da vaidade, não vai admitir que está ferido. Com a cabeça no travesseiro, sabe que está; com a cabeça no travesseiro, vai urdir os próximos ataques. 

Especialidade

Ainda quando estava em campanha presidencial, na mesma fala em que Bolsonaro havia dito “minha especialidade é matar” (o que, coisa rara, não era bravata), o agora mandatário, referindo-se naquela ocasião a Paulo Guedes, disse: “Ele tem que dar conta do recado. O quê que é dar conta do recado?: inflação baixa, dólar compatível, que não prejudique as exportações nem prejudique as importações (...), diminuir a carga tributária” (...). Hoje, sabe-se que Bolsonaro somente cumpriu a parte em que é especialista. 

"Eficácia"

O governo Bolsonaro deixou vencer a validade de estoque de medicamentos, vacinas e testes de diagnóstico. Essas perdas serão incineradas. O valor delas: duzentos e quarenta milhões de reais. Dentre o que vai ser descartado, há itens para pacientes com diabetes, hepatite C, câncer, Parkinson, Alzheimer e tuberculose. Também perderam-se frascos para aplicação de vacinas contra gripe, BCG, hepatite B e varicela. Seja com armas, seja não comprando vacinas contra covid, seja deixando produtos vencerem, o bolsonarismo é criativo ao matar. 

Robôs que aliciam

No filme Ex Machina, há um momento em que o personagem Nathan [Oscar Isaac] está explicando para Caleb [Domhnall Gleeson] que Ava, a máquina criada por aquele à semelhança de uma mulher, poderia ter sexo e prazer. No original, Nathan diz: “In between her legs, there’s an opening, with a concentration of sensors. You engage’em in the right way, creates, a pleasure response”.

Vi os créditos até o fim; não foi inserido o nome de quem traduziu as falas. De todo modo, na legenda, assim ficou: “Entre as pernas dela, há uma abertura com vários sensores. Se aliciar da forma certa, terá uma resposta de prazer”. Não sei se a pessoa que traduziu fez de modo deliberado, mas achei divertido ela ter usado o verbo “aliciar” — Alicia Vikander interpreta Ava. 

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Claro hiato

O começo é escuro.
O fim é escuro.
A paz é escura.

A claridade é
só um átimo.
A luz é
só um hiato. 
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(Salvo engano, esse texto já havia sido publicado como fazendo parte de um fotopoema.)

Joga fora

O governo Bolsonaro deixou vencer a validade de estoque de medicamentos, vacinas e testes de diagnóstico. Essas perdas serão incineradas. O valor delas: duzentos e quarenta milhões de reais. Dentre o que vai ser descartado, e que foi comprado com dinheiro público, há itens para pacientes com diabetes, hepatite C, câncer, Parkinson, Alzheimer e tuberculose. Também perderam-se frascos para aplicação de vacinas contra gripe, BCG, hepatite B e varicela. Seja com armas, seja não comprando vacina contra covid, seja deixando produtos vencerem, o bolsonarismo é criativo ao matar. 

sábado, 4 de setembro de 2021

Coragem de inteligência e de beleza

O Brasil anda carente de beleza, de inteligência e de magnanimidade. Com a pandemia, os encontros, dentre os que têm consciência, tornaram-se menos frequentes. A má gestão do vírus da covid pelo governo federal e a existência gritante do bolsonarismo, nenhum deles capaz nem de ciência nem de arte nem de inteligência, perfazem um Brasil feio, pleno de meninos valentões — mas que, na hora do aperto, quando confrontados com a justiça que teimam em banir, choram como o que são: criançolas que só entendem sons guturais e que não suspeitam de algo chamado raciocínio, de algo chamado maturidade.

Os detentores da grana e do poder deixaram de ser os mesmos que pertenciam à classe dos intelectuais. Sedimentada essa separação, os ricos do Brasil cooptaram a classe média e fazem dela o que quiserem, a ponto de essa classe média se achar culta, sofisticada e rica porque foi a Paris ou a Nova York e porque leu os livros da moda. Os intelectuais, por sua vez, não têm mais espaço nem na imprensa nem nos meios de comunicação, que se tornaram porta-vozes da burrice e dos preconceitos arraigados em seus fundadores, membros de uma oligarquia que se atribui ares de importância, não se dando conta que cheiram a naftalina, a despeito dos perfumes caros que compram (não há essência que resolva o problema de uma mentalidade retrógrada e nada generosa).

O anseio por beleza, inteligência e magnanimidade está em todos. Os bolsonaristas não têm a capacidade de perceber isso, mas mesmo dentre eles o anseio de algo elevado e significante existe. Para os que não aderiram à perversidade do bolsonarismo, a consciência de um país mais pobre, menos inteligente e com capacidade de beleza obliterada faz com que a busca pela elevação e pela inteligência seja isolada exceção, e não congraçamento, para o qual nascemos, por mais que o bolsonarismo berre o contrário; ele berra por não saber refinar, sutilizar nem embelezar a linguagem.

A beleza e a inteligência nunca devem se calar. Há momentos em que elas têm de ser mais contundentes. Não na esperança de convencer bolsonaristas, não na esperança de sensibilizar mentes toscas. A beleza e a inteligência têm de se esgueirar para que mentes belas e inteligentes sintam que não estão mesmo sozinhas. Por mais que, no campo das ideias, alguém saiba que não está sozinho, é sempre reconfortante quando se tem prova material dessa não solidão. Não caio nessa balela de que o Brasil é maior do que o bolsonarismo; o Brasil é tão ridículo quanto o bolsonarismo. Todavia, sei que o país não é somente o bolsonarismo; o país é capaz de beleza e de inteligência. 

sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Reverências

O deus de alguns
se recusa a comprar vacina contra a covid.
O deus de alguns
tripudia sobre os que morrem de covid.
O deus de alguns
defende a tortura.
O deus de alguns
deseja câncer para o outro. 
O deus de alguns
considera que não matar mais é um erro. 
O deus de alguns 
passeia de moto enquanto o país morre de fome.
O deus de alguns
queima os biomas do Brasil.
O deus de alguns
é a favor de ditaduras.
O deus de alguns 
é corrupto.
O deus de alguns
é miliciano.
O deus de alguns
censura ideias.  

O deus de alguns
é venerado por demônios.

Fotopoema 422


 

Voo


 

Perfil

Pudesse, na tentativa de ser grande e de ser carismático, o presidente imolaria um dos filhos. Substitui a imolação por bravatas e passeios de moto, que não escondem a figura beligerante, pusilânime, infantilizada, perversa, ignorante, minúscula e desprovida de inteligência que é. 

Fotopoema 421


 

Passeio


 

Fotopoema 420


 

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

“Groênlandia” “a fora”, de animais únicos “à atrações turísticas”


Que grandes empresas não dão a mínima para clientes, qualquer um sabe. A consequência desse não se importar com os consumidores desemboca no desprezo com o idioma. No dia 24 de dezembro de 2020, o Google estampou em sua página inicial “siga a jornada dele mundo a fora”. No dia 24 de agosto deste 2021, a tela do Windows continha o trecho “de animas únicos à atrações turísticas”. Ontem (26/08/21), enquanto eu assistia à partida entre Fluminense e Atlético/MG, chamada do SporTV exibiu na tela a palavra “Groênlandia”.

Num país em que pessoas aprovam a gasolina custar sete reais, aprovam um presidente imbecil, ditatorial e genocida e aprovam um ministro da economia que não vê problema em o custo da energia aumentar nem em atirarem restos de comida para os pobres, é natural que desleixo com o idioma não seja percebido; se for, esse desleixo é encarado como desimportante. O descuidado com o português é sintoma de um país esculhambado que não capricha em nada. De professores a advogados, passando por juízes, empresários e “coaches”, usa-se uma linguagem que parece querer se articular, mas que acaba transmitindo algo diverso do que era a intenção. 

Qualquer idioma é muito difícil, todo mundo erra ao lidar com palavras. Contudo, o que há em parte do Brasil é preguiça, desinteresse em aprender, não preocupação com o acerto; no caso de grandes empresas, nem contratam revisor. Uma parcela do país é burra, negligente, imediatista. Essa parcela adora falar bem do capitalismo, mas não tem a básica inteligência de perceber que dar resposta a e-mails pode atrair clientes. Escrever mal e falar mal são consequências do modo de ser de uma multidão que exibe com orgulho tacanho a ignorância, por não ter a coragem e o ânimo para buscar o conhecimento. Uma parte do Brasil é um país covarde, pobre e pusilânime, usando disfarce de civilidade. 

terça-feira, 24 de agosto de 2021

Atire a primeira pedra

Integrante do legislativo municipal, durante reunião da câmara municipal, reclamou de objeto de estudo de estudante de mineração. Na opinião do vereador, em vez de questões sociais, a discente deveria ter se detido sobre “trabalhos voltados sobre a classificação do mineral, calcário, sobre não sei o quê”. De cara, diga-se que o estudo de determinado aspecto técnico não impede o estudo de questões sociais. Manifestar o pensamento de que uma questão técnica anula uma questão humanística é típico de quem desconhece o processo de evolução das ciências e das humanidades. O que é técnico e o que não é técnico são faces de uma moeda.

Ainda se referindo ao trabalho da estudante, o político patense declara: “Os trabalhos feitos, na disciplina dela, que é mineração, não faz [sic] sentido. Isso aí tá parecendo mais trabalho de ciências sociais. Ela não vai chegar numa Vale da vida, vai ficar falando de quilombola pro pessoal. Ela vai querer fazer um estudo, análise daquela terra, daquela mineração, pros trabalhos da empresa. Se eu fosse empresário, contrataria nesse sentido”.

O discurso tem cara de nobreza, de quem se importa com o que está sendo estudado, de quem se importa com o futuro da jovem; todavia, é uma falácia. Primeiro, na proposta de que deve haver uma radical separação entre o que é técnico e o que é social; segundo, por postular que se alguém se envolve com um estudo técnico, não caberia a esse alguém refletir sobre a sociedade em que vive. O discurso da autoridade tem cara de preocupação social, quando, na verdade, está propondo ausência de reflexão.

O fato de alguém estudar uma determinada disciplina técnica não impede que esse mesmo alguém reflita sobre a sociedade que está em torno desse conhecimento técnico. A separação da realidade entre aquilo que é técnico e aquilo que não é técnico é errônea ou malévola. Essa separação pressupõe divisão do que somos, pressupõe que a uns cabe análise técnica e a outros cabe, por exemplo, análise sociológica, e ai do que técnico que se aventurar a análises sociológicas, ai do sociólogo que quiser compreender questões da matéria. 

Na citação do vereador, a Vale foi mencionada. Qualquer busca rápida na internet revela o quanto a Vale é capaz de destruir. Quem está em Brumadinho sabe disso. Ainda assim, numa realidade em que empresas matam pessoas e biomas, o vereador advoga a favor de técnicos que não pensam sobre a realidade em que vivem, mas que tão somente se dediquem a estudar os aspectos técnicos da profissão que exercem ou que possam vir a exercer.

Para a Vale, só para se ter um exemplo, é ótimo que um técnico não pergunte, não questione. A partir da fala do vereador, conclui-se ser ótimo que, digamos, um eletricista não produza pesquisa sobre as injustiças do mundo e sobre o processo histórico. Se o sujeito lida com mineração, na visão do vereador, não caberia a esse sujeito produzir trabalhos que se debrucem sobre questões sociais; esse sujeito, na visão do político, em vez de tentar entender o mundo em que está, deveria se debruçar unicamente sobre minerais.

O vereador ignora (ou prefere passar a ideia de que ignora) o básico: a pedra se chama pedra porque recebeu do homem esse nome; o mineral se chama mineral porque recebeu do homem esse nome. O conhecimento técnico, seja da mineração seja de qualquer outra área do conhecimento, é intermediado pela humanidade, é realização da humanidade. Os minerais não se classificaram, não se nomearam, não se estudaram; as pedras não se coletaram, não determinaram elas mesmas as suas origens, as suas idades. O ser que atribui nomes e classificações à natureza é o ser humano.

Gente não pode ser decalcada nem retirada da teia histórica de que faz parte. A mesma pessoa que estuda uma pedra é a pessoa que chega em casa, abraça os pais ou se emociona com uma canção. A mesma pessoa que estuda uma pedra é a pessoa que pode se perguntar, em trabalho acadêmico, por que os índios estão sendo mortos ou por que o Brasil está sendo queimado. A mesma pessoa que estuda uma pedra pode responder, em trabalho acadêmico, à maneira dela, o motivo de haver brasileiros que defendem tortura e ditadura.

Para gente como o vereador e para empresas como a Vale, é bom que os que estudam pedras não fiquem se fazendo perguntas demais. “Se você estuda pedras, dedique-se a estudar pedras. Nada de ficar estudando quilombolas. Isso não é de sua alçada”, alegariam. Pensamentos como o do vereador desprezam a natureza eclética do ser humano e a reduzem a algo mecânico, obediente, petrificado. O vereador representa um Brasil que não quer gente pensando, mas, sim, pedras.

Pedras não questionam, não têm múltiplos interesses, não expõem realidades incômodas, não fazem perguntas perturbadoras. Pedras obedecem, estudam o que o outro determina que deve ser estudado. Políticos há que não querem cidadãos, mas pedras que votem neles. Tendo votado, que a pedra continue sendo pedra. Uma pedra não retrucará, não contextualizará, não fará associações, não produzirá arte nem história nem ciência. 

Gente não é pedra. Você, que quer viver num conforto em que haja seres estáticos baixando a cabeça, pode espernear. Gente não foi, não é, não será pedra, por mais que você insista. Uma pessoa que reflete sobre si mesma e sobre o mundo em que vive é perigosa porque desestabiliza construções que servem a poucos e banem muitos. Que aquele que queira estudar pedra estude pedra; que aquele que queira estudar questões sociais estude questões sociais. Que aquele que queira estudar pedra e que queira estudar questões sociais estude pedra e questões sociais.

Que a pedra, como metáfora e como material de estudo, seja bem-vinda. Como metáfora, que a firmeza dela sirva de inspiração. Que se tenha firmeza de pedra, delicadeza de brisa, paixão de fogo, paciência de estalagmite. Gente é pedra, vereador; pessoas são pedras; pedras em movimento com asas poderosas, cientes de que “pedras que rolam não criam limo”. Pessoas vão se polindo, lapidando-se, aprendendo, estudando. Ideias impedem que pessoas se tornem lodosas. A má notícia para o vereador é haver pessoas que são pedras pensantes. Quando atiram pedras nessas pessoas, essas pessoas sabem segurar pedras. Em metáfora e em literalidade. 

Lembranças

Sim, Lembranças [Remember me, 2010], dirigido por Allen Coulter e roteirizado por Will Fetters, é estadunidense demais. Defende os valores deles, exalta a individualidade deles, ainda que poetize essa individualidade. Nenhuma obra de arte deve ser estudada fora da realidade que a produz; o problema de Lembranças é exaltar um aspecto da realidade ou da história que corresponde à imagem que os EUA vendem de si, com seus mitos e histórias (de superação). A produção lambe uma ferida que é do país deles e que foi por ele causada. No contexto histórico internacional, uma produção cheia de problemas; como narrativa fílmica, um primor.

Nos segundos iniciais da produção, duas famosas edificações aparecem ao fundo, o que “adianta” o desfecho e confere a Lembranças um caráter não somente típico da imagem que os EUA continuam passando para o mundo, mas também faz com que a própria cidade em que a história se passa seja, por assim dizer, personagem do enredo. O filme, todavia, tem a sensibilidade de perceber que por trás de cada habitante há uma história, e que essa história é avaliada ou reavaliada quando há um momento divisório na vida. 

Aquilo de que somos feitos: nossas derrotas, vitórias, vivências, modo de vida; aquilo que representamos, as coisas que defendemos, o que condenamos; nossas idiossincrasias, o que fazemos, o que deixamos de fazer, o que foi feito de súbito... Isso serve para algo? Caso sirva, para quê? Esses questionamentos ficam rondando a mente depois que o filme termina. Não há respostas; a existência delas poderia incorrer em amadorismo ou em pieguice. 

Lembranças é também sobre o fio do destino, não no sentido de pré-destinação, mas no sentido de esmiuçar o que ocorreu até o dia em que a vida dos personagens foram marcadas pelo histórico evento que há no fim. Como escrito, Lembranças não oferece respostas; em contrapartida, semeia profícuos e belos questionamentos. 

Os personagens convencem ainda que o filme não tivesse o desfecho que tem. Em função desse mesmo desfecho, olhamos para as vidas deles em retrospecto, passamos a nos simpatizar (mais) com eles, que, por serem quem são, já eram convincentes. É rico o modo como o filme mostra o quanto a História reverbera na história de cada dos personagens, e em como qualquer tentativa de compreensão, seja da realidade individual seja da realidade histórica, somente dever ser esboçada a partir do conhecimento. 

Lembranças é um filme sobre um fato histórico? Hum... É... Não há como separar o fato histórico a que faz referência das vidas dos personagens; contudo, a poesia do filme está na necessária compreensão de que o fato histórico tem consequências individuais. A produção lida com histórias individuais na História. 

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Pague minha lua de mel

Há muita gente lucrando, de modo desonesto, com o governo Bolsonaro. Estes, é claro, não se importam com alguma corrupção que possa partir dele ou que por ele possa ser encoberta. Há os que o apoiam por causa das pautas preconceituosas por ele defendidas; num país pleno de preconceituosos, essas pautas ganham adeptos facilmente. Por fim, há os imbecis que caíram na lábia de que Bolsonaro seria combate contra corrupção. Votou em Bolsonaro quem está a fim de lucrar de modo corrupto, quem tem preconceitos e/ou quem acredita em balelas.

Em abril de 2020, o excelente Lúcio de Castro já havia revelado esquema de superfaturamento do então deputado Jair Bolsonaro em reembolso da verba de combustível. Agora, mais recentemente, os autores Eduardo Militão, Eumano Silva, Lúcio Lambranho e Edson Sardinha, livro Nas Asas da Mamata, revelam que Jair Bolsonaro e Michelle Bolsonaro viajaram, durante lua de mel, bancados por dinheiro público. Ainda segundo o livro, Flávio Bolsonaro e Carlos Bolsonaro também tiveram viagens particulares bancadas com dinheiro público.

Os corruptos, os preconceituosos e os tolos não precisam se preocupar: em caso de aperto de algum deles, Paulo Guedes já separou a lavagem, que será oportunamente jogada no chão, para que os famintos possam lambê-la. Será mais um modo de essas criaturas satisfazerem os desejos, gostos e caprichos dos verdugos, que podem fazer, com dinheiro público, quantas luas de mel quiserem. 

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

A rocha, o vendaval, a onça sem fome


Há dias, recebi um vídeo, que, tenho a impressão, é montagem. Nele, uma escavadeira, sem intenção de, deixa uma rocha descer uma encosta. Segundos depois, a rocha se aproxima de um carro azul. Nesse momento, o espectador tem dimensão abrangente do tamanho da rocha; ao que parece, ela vai esmagar carro e motorista, que buzina. A rocha para ao lado do carro, tocando-o de leve. Nesse momento, o vídeo termina, com uma voz masculina comentando: “Nossa Senhora! Se essa mulher não buzina, a pedra não tinha parado, não”.

Não sei como a voz sabia que era uma mulher que estava dirigindo (pode até ser que nem houvesse motorista dentro do carro, tendo o barulho de buzina sido acrescentado depois, em edição), não sei onde o fato teria ocorrido, não sei quando teria ocorrido. Sendo peça de ficção ou sendo um breve registro do que estava diante da câmera do celular, o vídeo vai além do divertido comentário feito pelo homem, mesmo já valendo a pena pelo humor que tem.

Antes de eu comentar sobre o alcance não apenas humorístico do vídeo, ele me remeteu a uma montagem fotográfica que me enviaram há alguns anos. No registro aéreo, feito com grande angular, havia uma série de casas de madeira destruídas, quem sabe, por um vendaval, por um tornado ou por algo assim. Em meio aos destroços, intacta, incólume, altiva, orgulhosa, bem no meio do quadro fotográfico, uma única casa. Claro que a inverossimilhança, nesse caso, não é problema. A imagem vale não pelo caráter de realidade com que não se preocupou (nem tinha de se preocupar), mas pelo que ela prega: além da foto, havia uma frase de cujas palavras não me lembro com exatidão. Eram mais ou menos assim: “O Senhor protege a casa do que tem fé” (o que nos leva a concluir que, na fotomontagem, os que estavam nas casas derrubadas não tiveram fé ou não a tiveram, talvez, o bastante — não sei se a fé tem gradações ou se é algo absoluto).

Tanto o vídeo quanto a foto ilustram a crença de que ações ou rogos humanos têm poder de interferir no curso dos acontecimentos ou da natureza, como se os acontecimentos se importassem com a gente, como se a natureza se importasse com a gente. Certa vez, um amigo comentou que, esperando por um ônibus num abrigo, em estrada de roça, percebeu uma onça atravessando o caminho. Ela olhou para ele por um ou dois segundos; logo após, foi embora. Conclusão do amigo: “Ela não estava com fome nem tinha filhotes com fome”.

Se o felino estivesse com fome ou se os filhotes dele estivessem com fome, o amigo poderia ter sido uma opção no cardápio. Não passariam pela cabeça do bicho coisas como “Fulano é gente fina, é um professor responsável, é dedicado pai de família. Vou poupá-lo”. Um vendaval ou um furacão destrói indiscriminadamente, sem levar em conta a fé das pessoas ou sem levar em conta se o cidadão já quitou a última prestação da casa. Uma rocha despencando pela ribanceira não vai mudar o trajeto nem vai parar de rolar por causa de uma buzina, que pode ter sido acionada num reflexo (o que não mudaria a trajetória da rocha).

A natureza é indiferente a prédicas, a apelos, a orações. O homem a modifica não por intermédio do que diz ou do que pensa, mas por meio do que desmata, do que polui, não importa o nome que se dê (desespero na hora do aperto, reflexo, fé) no instante em que alguém roga ou buzina na intenção de modificar a física, a química, a biologia. Do mesmo modo que nada intervirá a favor da zebra no momento em que o leão estiver a centímetros do pescoço dela, nada interferirá a nosso favor quando uma onça faminta ou que se sente ameaçada estiver a centímetros de nos abocanhar. Se nos safarmos, não terá sido por causa de algumas palavras proferidas nem por causa de uma buzina a percorrer o espaço com desespero. A natureza teria sossego se o homem, sempre tão preocupado com o próprio umbigo, se contentasse com proferir palavras ou com buzinar. 

Parvoíces

Bolsonaro é um parvo cruel eleito por cruéis parvos. Prova disso é que continuam o apoiando. O envolvimento do presidente com neonazistas, para ficar em divulgação recente, e a manutenção do apoio ao governante dizem muito sobre ele e sobre os que o elegeram. Afinal, a desumanidade de Bolsonaro já era bem conhecida antes da eleição; afirmar "eu não sabia dela" é cinismo. O que muitos não supunham é a desumanidade dos que o elegeram. 

terça-feira, 20 de julho de 2021

O som da palavra

No que a palavra “vagido” nomeia, em seu primeiro sentido, há algo de primitivo, de atávico, de não domado. Ao mesmo tempo, há algo de delicado; essa delicadeza, não a sinto no som e na fúria de “vagido”, que me passa a sensação de algo bestial, antigo, sem ternura. “Vagido” é forte demais para o que nomeia; vem de madrugadas escuras, frias e impiedosas. É grito animalesco, grave, terrífico. 

segunda-feira, 19 de julho de 2021

Todo dia

Coisas que não acabam:
louças para lavar
e estupidez.

Coisas que se multiplicam:
estupidez 
e louças para lavar.

Coisas que dão trégua:
louças para lavar
e limpidez. 

sexta-feira, 16 de julho de 2021

Casca de banana

Inácio não tomava casca picada de banana com água. Morreu devido ao então novo vírus, que assolou o planeta naqueles tempos. João Inácio tomava casca picada de banana com água. O vírus não o matou. Ana e José eram um casal; deduziram que João Inácio sobreviveu ao vírus por ingerir o preparado de casca de banana com água. O “mito” deles berrava sobre a eficácia da mistura. Regozijantes, os produtores de banana fecharam contrato com o governo. O vírus entrou em Ana e José. Quando ele morreu por causa do assalto virótico, Ana disse que pelo menos o marido lutara pela vida. 

quarta-feira, 14 de julho de 2021

Desejo

Que Bolsonaro fique bem. Que a obstrução intestinal, no futuro, torne-se, em processo metonímico, intestino preso. 

Velha ineficácia

O ministério da saúde do governo Bolsonaro admitiu que o chamado “kit covid” é ineficaz para combater a doença. É o mesmo que dizer que não existe tratamento precoce ou que cloroquina e ivermectina de nada adiantam se usadas contra o coronavírus. Os sensatos já sabiam disso. Muitos dos quinhentos mil mortos pela covid, não. Mas sabe-se que muitos continuarão tomando o kit, recomendado por Bolsonaro, por alguns “médicos” e por “especialistas” de WhatsApp. 

sábado, 10 de julho de 2021

Números

500 mil já morreram de covid. Se depender do pouco inteligente, aí são outros 500. 

sexta-feira, 9 de julho de 2021

Luz, penumbra, sombra

Fotografar é lidar com a luz, seja jogando luz sobre algo, seja se valendo da luz que sobre algo incide, seja revelando a luz que de algo emana. Essas três instâncias podem coexistir num registro fotográfico. Manejando a luz, o fotógrafo é capaz, caso queira, de criar uma gradação que pode ir da penumbra à sombra. Luz, penumbra e sombra são outras três instâncias que podem coexistir num registro fotográfico. 

O “guru” e o “messias”

Olavo de Carvalho já declarou ser contra serviço público de saúde. Depois de anos no exterior, está no Brasil, para se tratar em hospital público. Dessa vez, a fim de se virar nos Estados Unidos, não pediu dinheiro a seus seguidores. Que ele fique bem. Entrementes, pesquisa XP/Ipespe diz que 63% dos brasileiros desaprovam a maneira como Bolsonaro tem administrado o país. Já o Datafolha afirma que 57% dos entrevistados acham Bolsonaro pouco inteligente. Ele não merece tal eufemismo. Em contrapartida, por ter o cérebro que tem, não terá argúcia para deduzir as implicações de “pouco inteligente”. 

quarta-feira, 7 de julho de 2021

Reescrevendo

Se o Brasil fosse um país sério,
Bolsonaro não mais seria presidente.

Se o Brasil fosse um país,
Bolsonaro não seria presidente. 

segunda-feira, 5 de julho de 2021

Possível, é...

Outro país é possível.
Um que seja 
inteligente e fraterno.
Esse outro Brasil 
nunca existiu
nem jamais 
existirá. 

sexta-feira, 2 de julho de 2021

Quanto vale a "fé"

No Brasil, grupo evangélico fez oferta paralela de vacina para prefeituras. (Aleluia, irmãos!: em nome de um deus, corrupção.) 

Na África do Sul, e por aqui não é diferente, líder da Universal convence fiéis a doarem casas e carros à igreja. Segundo o Intercept Brasil, o “religioso” disse: “Você pega um versículo, pega algo muito atraente aos olhos e faz as pessoas acreditarem que é bom. E eles darão suas casas, seus carros. Não por causa da fé deles, mas porque você falou”. (Aleluia, irmãos!: sempre foi lucrativo investir na burrice alheia.)

Amém. 

quinta-feira, 1 de julho de 2021

Wizard

Os que concordam com genocidas
ora ficam em silêncio,
ora gritam,
ora posam de patriotas,
ora oram.

Autores e arautos de infernos,
são bestas fétidas sob 
ternos de fino cortes
e vestidos de caras grifes.

Neles, o sorriso é alvo.
Deles, o povo é alvo. 
Wizard se cala,
Bolsonaro berra.

Sem ar, sem dinheiro,
sem vacina, sem vergonha,
há quem beije o chão 
que o “mito” pisou. 

quarta-feira, 30 de junho de 2021

Mãos impuras

A donzela elegeu miliciano,
elegeu quem lucra com vacina
e com a morte do povo,
elegeu quem põe fogo no país

Brada contra a corrupção,
faz caridade no Natal,
diz amar a natureza.

Sabe manter as aparências:
palmas suaves e unhas reluzentes
não delatam o sangue que escorre. 

Comoção 2

Gente, olha só que fofo: o governo Bolsonaro teria pedido propina de um dólar por dose de vacina. Só um dólar! A nobreza me comove. 

Comoção 1

Luiz Paulo Dominguetti Pereira afirmou que o governo Bolsonaro pediu propina de 1 dólar por dose de vacina. Estou estarrecido: pediram só um dólar. 

sábado, 26 de junho de 2021

Nos braços do inimigo

Se o deputado federal Luís Miranda tiver dito a verdade à CPI da covid, há motivo para que o presidente seja destituído do cargo. Arthur Lira segue reiterando que continuará barrando os pedidos de destituição (o que Rodrigo Maia fez). Apoiadores do presidente não veem problema algum no “mito” mesmo se Luís Miranda tiver dito a verdade. No auê, Bolsonaro, sem máscara, em aglomeração, tira máscara usada por criança, no país que detém o segundo lugar com mais mortes de crianças por covid. Mas entregar uma criança a Bolsonaro diz muito sobre quem estava responsável por ela. 

sexta-feira, 25 de junho de 2021

Existe alternativa

Por um lado, é preciso louvar a bela iniciativa da editora Autonomia Literária por ter ela editado Realismo capitalista, de Mark Fisher (1968-2017); por outro, justamente em função de o livro ser um monumento, merecia uma edição mais cuidadosa: os erros de português que a tradução tem são numerosos, amadores, irritantes. O livro merece mais.

Realismo capitalista é paradoxal: a lucidez lancinante constata a maçada em que estamos por causa do capitalismo/neoliberalismo; ao mesmo tempo, essa mesma lucidez propõe possíveis alternativas, ainda que elas não exibam contornos exatos; não é propósito do livro sugerir uma solução pronta. Num tom quase casual, Fisher mistura o erudito e o popular, longe de academicismos mas íntimo de uma contundência iluminadora.

É um livro contra, em seu sentido pejorativo, a individualidade, tão queridinha do neoliberalismo, que, exitoso, faz recair unicamente sobre o indivíduo as derrotas que ele vivencia. A balela da meritocracia talvez seja a faceta mais conhecida desse individualismo; todavia, Fisher vai além, discorrendo sobre outro aspecto cruel do neoliberalismo: se o sujeito tem uma doença mental, somente ele é o responsável por isso. O autor leva em conta a dimensão químico-cerebral de problemas psíquicos, mas ele tem a clareza de entender que esses problemas podem ser reflexos de uma sociedade doente: “É óbvio que toda doença mental tem uma instanciação neurológica, mas isso não diz nada sobre a sua causa” [1] (itálicos de Fisher).

A expressão que Fisher usa para esse estado de coisas é “privatização do estresse”. Se o cidadão sucumbe diante de pressões neoliberais, a culpa é somente dele, que, nesse estado de coisas, seria fraco, incapaz. Não bastasse, há ainda o peso da burocracia, que acabou infestando e apodrecendo os serviços públicos. No campo da educação, o autor descreve com exatidão o que se dá em decorrência dessa opressora e estúpida burocracia: “No caso de inspeções de escolas e universidades, o que será avaliado em você não são suas habilidades como professor, mas sua diligência como burocrata” [2].

A solução de Fisher para que uma alternativa ao neoliberalismo seja implementada não tem contornos nítidos, não é um manual com tópicos exatos sobre como resolver a enrascada em que estamos. Além do mais, as saídas que o autor aponta contam com a existência da democracia e de instituições, como, por exemplo, um parlamento, não importa o regime governamental. Fácil perceber que no caso do Brasil uma alternativa que dizime o projeto neoliberal está, no contexto atual, distante.

Todavia, não nos enganemos: em Realismo capitalista, a constatação de que o neoliberalismo venceu não é para que nos entreguemos à ideia de que não há alternativa, “mantra” apregoado por Margaret Thatcher. Há, sim, alternativa. Ela não se evidencia ainda, mas não virá do indivíduo, sobre quem já recaem coisas demais. Dentre outros bens, Fisher escancara que o capitalismo baniu a solidariedade. Não caiamos no conto de que não há nada a ser feito: “É nossa tarefa desenvolver alternativas às políticas existentes, mantê-las vivas e disponíveis até que o politicamente impossível se torne politicamente inevitável” [3].

_____

[1] Fisher, Mark. Realismo capitalista. Tradução de Rodrigo Gonsalves, de Jorge Adeodato e de Maikel da Silveira. Autonomia Literária. 2021. Pág. 67.
[2] Idem. Pág. 87.
[3] Ibidem. Pág. 151.