Acabei de ler uma frase no “Meditações”, do Marco Aurélio, que bem poderia ter sido a epígrafe de “Cem anos de solidão”: “Próximo decerto o teu esquecimento a respeito de tudo, e próximo o esquecimento de tudo a respeito de ti”.
quarta-feira, 14 de junho de 2017
De Marco Aurélio para García Márquez
Contadoras de histórias
A senhora Dean, de “O Morro dos ventos uivantes”, é para o senhor Lockwood o que Šahrāzād é para o rei Šāhriyār no “Livro das mil e uma noites”.
Ha Ha Ha
Há momentos em que a leitura de “Paddy Clarke Ha Ha Ha” (publicado em 1993), escrito por Roddy Doyle, acaba remetendo à de “O senhor das moscas” (1954), do William Golding, muito mais pela faixa etária dos personagens do que por pontos em comum mais intrínsecos, embora possa haver relação especular entre os dois livros. O de Golding é sombrio; as crianças, quando obrigadas a se organizarem para sobreviverem, revelam-se capazes de atrocidades. Já no livro de Doyle, elas, as crianças, embora tenham potencial destrutivo, não vão além de exercerem o típico sadismo de boa parte delas quando têm em torno de dez anos. Em Doyle, há adultos segurando as rédeas; em Golding, em boa parte da história, não.
“Paddy Clarke Ha Ha Ha” é narrado em primeira pessoa por Patrick Clarke, o Paddy que dá título à obra. Ele mora na Irlanda, na fictícia Barrytown; a história se passa na segunda metade da década de 1960. Paddy narra o cotidiano dele em casa, na escola e na convivência com os pares na região em que vive. Paddy tem dez anos; é o mais velho dos irmãos. As duas irmãs mais novas, ainda bebês, praticamente não aparecem. Já a convivência com o irmão Simbad (cujo nome real é Francis), que é um pouco mais novo que Paddy, é esmiuçada pelo narrador.
À primeira vista, o livro é uma crônica das travessuras, brigas, pequenos problemas, graças e rotina de Paddy Clarke. Todavia, à medida que a narrativa vai avançando, professores ora paternais ora sádicos entram em cena, as tensões entre os pais de Paddy vão surgindo. Os eventos dizem respeito a um passado recente do narrador. O modo de contar de Paddy é veloz, tem cortes súbitos, que fazem o texto pular de uma história para outra de modo inadvertido.
Os diálogos que Paddy tem com o pai, que também se chama Patrick, são um dos pontos altos do livro. Boa parte das conversas entre os dois são muito divertidas, mesmo quando o garoto quer entender coisas como “Terceira Guerra Mundial Iminente”, judeus, árabes, israelenses, guerra no Vietnã.
A despeito de alguma briga mais séria na escola, Paddy é um típico garoto com liberdade para brincar nas ruas de Barrytown, aporrinhando os vizinhos e praticando pequenos furtos. A tensão maior fica por conta do problema que há entre os pais de Paddy; o garoto sabe que a mãe apanha do pai de vez em quando. Há momentos em que o livro assume um tom poeticamente melancólico. Paddy quer proteger a mãe, mas não sabe como. Os ataques do pai contra ela não são explícitos; o garoto fica, quando já deitado, tentando escutar a discussão entre os pais, os passos deles pela casa. No mais das vezes, ele não testemunha a violência. Ele sabe que ela existe, ele lamenta não ter a capacidade de proteger a mãe, mas narra, sim, a atmosfera do ambiente quando das brigas do casal.
Nesses momentos, há fragilidade e uma triste ternura na narrativa; é quando o peso de ser criança vem à tona de modo mais contundente. Uma tensão começa a pairar. Mesmo não havendo violência explícita, o leitor fica algo tenso quanto ao que as páginas seguintes trarão, por já estar envolvido pelo garoto Paddy Clarke.
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