Li recentemente, da editora Landmark, a edição bilíngue (português e inglês) de “O retrato de Dorian Gray”. A despeito da bela encadernação e da sobrecapa, a publicação saiu com alguns errinhos de digitação. Se por um lado isso não compromete seriamente o trabalho, por outro, é algo que precisa ser corrigido em possíveis futuras edições.
Texto da própria editora diz na sobrecapa: “Oscar Fingall O’Flahertie Wills Wilde publicou inicialmente ‘O retrato de Dorian Gray’ no periódico norte-americano ‘Lippincott’s Monthly Magazine’ [...], 10 anos antes de sua morte. Esta primeira versão é o lançamento que a editora Landmark promove junto aos seus leitores com os treze capítulos originais [...], sem as alterações posteriores da versão inglesa”.
Ora, exultei, não somente por ter o texto original, em inglês, nas mãos, mas principalmente por ter a oportunidade de ler a primeira versão do romance. Mas terminada essa leitura, foi inevitável refazer uma outra, a que contém as alterações posteriores, bem como inevitável foi o cotejamento entre as duas versões.
Vejam só: quando li o livro pela primeira vez, tive a impressão de que nada estava sobrando. O texto dessa primeira leitura é a versão inglesa, com vinte capítulos. Pois bem: a primeira versão do romance, repito, tem treze capítulos...
Ainda assim, manteve-se aquela primeira impressão de que não há coisas supérfluas na versão mais conhecida da obra, com os vinte capítulos. A diferença cabal é que na versão publicada pelo periódico americano os fatos são narrados com mais sutileza, são mais sugeridos do que escritos. Na versão inglesa, personagens são acrescidos, bem como, naturalmente, situações.
Ainda de acordo com o texto da Landmark, quando o texto foi lançado na Inglaterra, os editores da Ward Lock exigiram modificações na obra. Assim, sou levado a crer que o fato de as coisas serem ditas de modo mais óbvio na edição inglesa se deva a uma pressão dos editores, talvez numa tentativa de “facilitar” para os leitores, supostamente garantindo melhores vendas.
Contudo, indico a leitura das versões americana e inglesa — nessa ordem. É curioso acompanhar as modificações feitas por Wilde nos desdobramentos do enredo. Mas, ainda assim, algo cabal não se modificou: a psicologia dos personagens.
Não vou exagerar e dizer que Dorian Gray seja pouco interessante. Contudo, a personalidade mais rica da obra é a Lorde Henry Wotton. É ele quem confere um saboroso senso de humor ao livro, é dele que rimos, é dele que discordamos... Por fim, é ele quem exerce nefasta influência sobre o jovem Dorian Gray. À medida que a ação se desenrola, há falas de Dorian que bem poderiam ser de Henry.
Lorde Henry é sofisticado, rico, tem cultura, senso do belo. Sua voz é bonita, sua conversa é sedutora; com elegância, faz pilhérias, ridiculariza; é o “bon-vivant” que sabe extrair da vida as possibilidades que o dinheiro lhe proporciona. Contudo, é extremamente cínico. Fica-se com a impressão de que os cinismos de seus hilariantes aforismos não sejam necessariamente ditos por quem tem uma vida em paz.
No fim do livro, tanto na versão americana quanto na inglesa, Lorde Henry é o próprio a dizer: “Gostaria de trocar de lugar com você, Dorian”. Henry diz isso num momento em que exaltava a extrema beleza física de Dorian.
Tem-se uma situação inquietante: Henry, com sua fulgurante inteligência, e Dorian, com sua acachapante beleza, são insatisfeitos. O que vou dizer pode soar piegas, mas é sugerido que ambos não têm algo “simples”: a capacidade de amar. Estão voltados demais, de modo egoísta e vaidoso, para si mesmos.
A história de um jovem que se convence da própria beleza e que se diz predisposto a fazer o que for preciso para não envelhecer é um tema instigante. A história de alguém que vê, num quadro, a própria alma sendo conspurcada em nome da frivolidade é por demais sedutora para não ser lida.