O que faz uma obra de arte não é a temática de que ela trata, mas o modo como essa temática, seja ela qual for, é desenvolvida. Essa premissa vale para Você nem Imagina [The Half of It], em cartaz na Netflix. Direção e roteiro são de Alice Wu. O filme estreou recentemente.
Há livros que dizem a que vieram logo no primeiro parágrafo (alguns, logo na primeira frase). Alguns filmes dizem a que vieram logo na abertura. Essa premissa vale para Você nem Imagina. De cara, o tom poético, engraçado e irônico que permeia a obra. Nos primeiros segundos, questões filosóficas são trazidas para o universo juvenil.
Leah Lewis interpreta Ellie Chu, sobrenome que funciona como onomatopeia com a qual é atazanada pelos colegas de escola. Ellie tem 17 anos, mora na fictícia Squahamish. É a melhor aluna da turma; perdeu a mãe quando ainda era criança. Mora com o pai, que, a despeito da titulação acadêmica (ele é doutor), não conseguiu o êxito profissional almejado. Para ajudar nas despesas da casa, Ellie faz, mediante pagamento, trabalhos escolares para os colegas de sala.
Em certo dia, é abordada por Paul Munsky (Daniel Diemer), um dos colegas dela; ele quer que ela escreva uma carta para Aster Flores (Alexxis Lemire), em quem ele está interessado, como se fosse ele o autor da carta. (Sim, no momento em que isso é mencionado, é inevitável: o telespectador se lembra do enredo de Cyrano de Bergerac.) Só que Ellie também está interessada em Aster, o que é evidenciado já nas cenas iniciais.
A princípio, Ellie recusa escrever a carta, chegando a evitar encontros com Paul nos corredores da escola. Todavia, uma conta de energia elétrica cujo pagamento está atrasado faz com que ela, por 50 dólares, tope escrever a carta para Aster, como se Paul fosse o autor do libelo amoroso.
É curioso como Você nem Imagina consegue abordar grandes questões existenciais sem deixar de ser um filme com temática adolescente. O roteiro de Alice Wu é hábil ao mostrar a inadequação de Ellie, inteligente demais, mas que ainda não se achou. Também é fascinante como há espaço para que conheçamos Paul, de quem, a princípio, acha-se graça, pelo que ele tem de caricato e de ingênuo, mas que, ao longo da história, vai revelando camadas que vão descortinando o jovem de bom coração que, no fundo, ele é. Paralelamente, tem-se a bela Aster, que é namorada de Trig Carson (Wolfgang Novogratz), ele, sim, um babaca.
Referências literárias e filosóficas, metalinguagem, dramas juvenis, perdas, reflexões sobre a vida, partidas... Você nem Imagina é sobre a vida e o que ela tem de sublime e de ridículo; é sobre o amor e o que ele tem de sublime e de ridículo. Squahamish é qualquer lugar; Ellie Chu, Alter Flores, Paul Munsky e Trig Carson estão nos corredores das escolas mundo afora. Sensível e divertido, Você nem Imagina é poesia, cuja delicadeza conta ainda com a bela direção de fotografia de Greta Zozula.
O filme de Alice Wu tem o velho e delicioso paradoxo: ao não querer soar grandioso, grandioso ele se torna. Enquanto eu assistia à produção, houve momentos em que me lembrei de Juno (2007), do diretor Jason Reitman (o excelente roteiro é de Diablo Cody). Juno MacGuff, Paulie Bleeker, Ellie Chu e Paul Munsky seriam ótimos amigos. Eu tentaria fazer com que conhecessem Holden Caulfield, de O Apanhador no Campo de Centeio, do J.D. Salinger. (Ah, quando for assistir a Você nem Imagina, não deixe de reparar na bela e potente voz de Leah Lewis.)