terça-feira, 16 de outubro de 2018

O herói

Há obras de arte que têm o poder de nos revelar o que cada momento é: mágico, mágica. Uma dessas obras é O Herói (2017), do diretor Brett Haley. O roteiro é dele e de Marc Basch. O filme tem uma densa simplicidade. Cheguei a ele por acaso; numa madrugada qualquer, há alguns dias, entrei em casa, liguei a TV. Conferi uma breve sequência do trabalho. Foi o bastante para adicioná-lo em minha lista de filmes a serem assistidos.

Sam Elliott interpreta Lee Hayden, ator de faroeste outrora famoso e que agora vive de gravações de comerciais. Setenta e um anos, separado e com uma filha (com quem não se relaciona), Lee fuma muito e bebe. Logo nas cenas iniciais, ficamos sabendo que ele tem câncer e que morrerá em breve. Na casa de Jeremy Frost (interpretado por Nick Offerman), de quem Lee compra drogas, ele conhece Charlotte Dylan (interpretada por Laura Prepon).

Lee sabe que não tem muito tempo de vida. Mesmo assim, fica postergando o momento em que contará para a ex-esposa e para a filha sobre o câncer. Brett Haley capta a angústia de Lee com tomadas próximas e câmeras em movimento. O trabalho é poético, tocante. Lee sente a vida se esvaindo; Haley, captando os detalhes da expressão de Lee ou se aproximando dos objetos que ele toca, vai construindo uma narrativa de uma beleza esmagadora: não queremos que Lee morra.

Metalinguagem, poesia, lirismo, ternura, perdas, pedras, erros, mágoas. O Herói é feito daquilo que compõe a vida de qualquer um. São os nossos dramas, nossas derrotas, nossas vitórias, os objetos que tocamos, os que amamos ou aqueles cujos corações despedaçamos. Heróis somos nós, não sei se apesar do que somos ou por causa do que somos. O Herói é um filme que vale uma vida. A cena em que Charlotte lê o poema “Dirge Without Music”, da poeta Edna St. Vincent Millay, para Lee é uma das cenas mais doces e tocantes que já presenciei. (A sequência remete àquela do filme Quatro Casamentos e um Funeral, em que se lê “Funeral Blues”, do W.H. Auden.)

Há obras de arte que nos elevam, que nos levam ao som das ondas do mar ou da música de Edvard Grieg. O Herói é de uma beleza possível, alcançável. Para que essa beleza seja tocada e para que ela nos toque, é preciso ter senso de poesia. Se você suspeita de que não tem, assista ao filme: você perceberá que tem. 

A besta

É o fim do Brasil.
Não, não é:
o país nem começou.
Não começou e
já morre escatológico.
O que poderia ter dado certo
não teve início.
Sempre se pode recomeçar,
mas nos esquecemos de começar.
Melhor enterrar de vez
o que nem nasceu. 

Tiros no ar

A leitura frequente leva a coincidências. Ontem, li sobre projeto de lei apresentado pelo deputado Eduardo Bolsonaro; o texto concede a qualquer cidadão o direito de entrar armado em avião sem apresentação de documento (sic). Também ontem, pouco depois de ler sobre esse projeto, retomei a leitura de O Sol É para Todos [To Kill a Mockingbird], da escritora Harper Lee. No livro, há o trecho:

“(...) — Filho, repito que, mesmo que você não tivesse se descontrolado, eu teria pedido para você ler para ela. Queria que você a conhecesse um pouco, soubesse o que é a verdadeira coragem, em vez de pensar que coragem é um homem com uma arma na mão. Coragem é fazer uma coisa mesmo estando derrotado antes de começar — prosseguiu Atticus”. [1]
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[1] Harper, Lee. O sol é para todos. Tradução de Beatriz Horta. 23ª edição. Rio de Janeiro. José Olympio. 2018. Pág. 143.