terça-feira, 27 de abril de 2021

Haicai

Não há apostasia.
Querem, do presidente,
a mortal aleivosia.

quinta-feira, 22 de abril de 2021

A mais gostosa e iluminadora solidão é a que se tem no banheiro

Sou cantor de banheiro. Apresento-me para multidões, canto melhor do que o Robert Plant, toco guitarra melhor do que o Celso Blues Boy. Vou lavando a alma, enquanto berro o mais desafinado que consigo as canções que vão comigo para o banho: já tenho a coleção musical que curto em cartão de memória que está no telefone. Via “bluetooth”, conecto o telefone à caixa de som; ambos tomam banho comigo. 

O resto é me apresentar em plateias mundo afora. Gosto de deixar, no celular, o programa de execução de música no modo aleatório. Caso surja uma canção que não estou interessado em escutar-berrar-junto, já deixo o telefone posicionado de modo que, mesmo sob a ducha, consigo pular de faixa.

No banho de hoje, o tocador de canções escolheu, minutos depois do início do banho, “Where the streets have no name” — a gravação original (tenho outras versões da canção). Mal o teclado deu sinais de vida, já fiquei doido. Quando veio o baixo, eu já estava contagiando um estádio inteiro. Esgoelei o máximo que pude. Enquanto eu “cantava”, eu me lembrei de um texto que li certa vez na revista The New Yorker, um belo ensaio sobre o U2. Lembro-me de que o crítico fez comentários sobre “Where the streets have no name”.

Terminada a faixa, peguei uma toalha, sequei o rosto e me preparei para a próxima canção do show. O tocador de música logo veio com 

Moro onde não mora ninguém
Onde não passa ninguém
Onde não vive ninguém
É lá onde moro
Que eu me sinto bem
Moro onde moro

De repente, mal tendo começado a emitir o segundo verso da canção, dei-me conta de que há, em termos de letra, possíveis afinidades ou sintonias entre “Where the streets have no name” e “Moro onde não mora ninguém” (sábio tocador de canções). Assim sendo, where the streets have no name, moro onde não mora ninguém. 

De pai para filho

A história ocorreu ontem, dia 21 de abril de 2021. O atendente perguntou a um garoto de uns cinco anos:
— Você está bem?
O garoto respondeu:
— Eu estou ótimo!
Surpreso com o tom muito animado da resposta, o atendente disse:
— Que bom! O que deixou você tão bem?
— Estou feliz porque o coronavírus acabou. Graças a Deus.
— Hum... Fica esperto. Ele não acabou, não.
— Acabou, sim. Meu pai é que me contou. 

Burocracia

A burocracia é uma arte e uma ciência: a arte de implementar o que é inútil e a ciência de institucionalizar o que não serve para nada. 

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Leda Nagle

Ao ler a notícia falsa, Leda Nagle não exerceu um dos mais básicos princípios do jornalismo: conferir a veracidade do que divulga. Ela agiu como as milhares de pessoas que acreditam em teorias da conspiração, em cloroquina, em duendes. Enquanto lia a “notícia”, a apresentadora comentou “isso é tudo, menos política”. Há décadas, Leda Nagle é tudo, menos jornalismo. 

sábado, 17 de abril de 2021

Ilha de Vera Cruz

Na Ilha de Vera Cruz,
cloroquina,
máscara de oxigênio e
intubação.
Sobre o leito,
o corpo morre.

Há correria,
passos se agitam:
é preciso descartar o cadáver
para que outro corpo ocupe o leito
(corpos gastam).

A poucos metros dali,
risos abertos, 
sem máscaras de proteção.
Em meio ao júbilo,
a rolha de um vinho espoca.
Bocas sorridentes se revezam,
beijando o bico da garrafa. 

quinta-feira, 1 de abril de 2021

José e Maria

José e Maria moram em Patos de Minas.
Os dois sabiam que estavam com o coronavírus.
Decidem visitar a mãe dele, 
que não mora em Patos de Minas.
Após a visita, a mãe morreu de covid.
José e Maria voltaram para a casa deles.
Foram (e são) avistados em público, sem máscaras,
praguejando contra o uso delas,
orgulhando-se de tomar cloroquina e ivermectina.