Sou cantor de banheiro. Apresento-me para multidões, canto melhor do que o Robert Plant, toco guitarra melhor do que o Celso Blues Boy. Vou lavando a alma, enquanto berro o mais desafinado que consigo as canções que vão comigo para o banho: já tenho a coleção musical que curto em cartão de memória que está no telefone. Via “bluetooth”, conecto o telefone à caixa de som; ambos tomam banho comigo.
O resto é me apresentar em plateias mundo afora. Gosto de deixar, no celular, o programa de execução de música no modo aleatório. Caso surja uma canção que não estou interessado em escutar-berrar-junto, já deixo o telefone posicionado de modo que, mesmo sob a ducha, consigo pular de faixa.
No banho de hoje, o tocador de canções escolheu, minutos depois do início do banho, “Where the streets have no name” — a gravação original (tenho outras versões da canção). Mal o teclado deu sinais de vida, já fiquei doido. Quando veio o baixo, eu já estava contagiando um estádio inteiro. Esgoelei o máximo que pude. Enquanto eu “cantava”, eu me lembrei de um texto que li certa vez na revista The New Yorker, um belo ensaio sobre o U2. Lembro-me de que o crítico fez comentários sobre “Where the streets have no name”.
Terminada a faixa, peguei uma toalha, sequei o rosto e me preparei para a próxima canção do show. O tocador de música logo veio com
Moro onde não mora ninguém
Onde não passa ninguém
Onde não vive ninguém
É lá onde moro
Que eu me sinto bem
Moro onde moro
De repente, mal tendo começado a emitir o segundo verso da canção, dei-me conta de que há, em termos de letra, possíveis afinidades ou sintonias entre “Where the streets have no name” e “Moro onde não mora ninguém” (sábio tocador de canções). Assim sendo, where the streets have no name, moro onde não mora ninguém.
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