segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Poema malcriado


Anteontem, tive a honra de ter mais um poema que escrevi musicado por um amigo. Dessa vez, pelo Hérico Noronha. Assim que leu o Poema Malcriado, que postei mais cedo no Facebook, o Hérico comentou que o texto havia ficado a cara do Arnaldo Antunes. Diante disso, em tom de brincadeira, sugeri a ele que musicasse o poema. O resultado está nesta postagem.

A rigor, o texto foi escrito em treze de dezembro de 2011, data em que o postei aqui. Tentando achar outra postagem também aqui, acabei me deparando com o poema. Foi então que me decidi por publicá-lo no Facebook.

Ao Hérico, muito obrigado por ter musicado as palavras e muito obrigado pelas conversas divertidas que tivemos via WhatsApp, enquanto decidíamos que rumos tomar quanto à letra e ao astral da melodia criada pelo Hérico. 

Luzes e nódoas

Vira e mexe, como diriam os antigos, eu cito um trecho do Manuel Bandeira no qual ele diz que a poesia é “nódoa no brim”. Uma rápida consulta em meu blogue me revela que já mencionei esse trecho do Bandeira em pelo menos três postagens.

Volto a ele pela mesma temática sobre a qual já escrevi: em termos modernos, uma beleza imaculada demais pode, de modo paradoxal, não ser tão sedutora quanto uma beleza “conspurcada”. Metaforicamente, é preciso haver uma nódoa, sob o risco de se incorrer numa beleza limpinha demais, bem-comportada demais.

É preciso “estragar” o belo, “dessacralizá”-lo, “desrespeitá”-lo. Uma beleza que descambe para a assepsia absoluta corre o risco de parecer artificial. Podemos ter o anseio de sermos imaculados ou de produzirmos algo imaculado, mas sob qualquer aspecto estamos longe disso. Além do mais, nossas “impurezas” têm seu encanto e beleza. Belezas e encantos humanos, é verdade, mas belezas. Ainda bem que temos nódoas.

Ontem, folheei alguns livros do Manoel de Barros em busca de uma frase dele. Eu me lembrava do teor dela, mas não me lembrava das palavras exatas. Enquanto a procurava, eu me deparei com o seguinte trecho, extraído de “O livro das ignorãças”:

“Aos blocos semânticos dar equilíbrio. Onde o abstrato entre, amarre com arame. Ao lado de um primal deixe um termo erudito. Aplique na aridez intumescências. Encoste um cago ao sublime. E no solene um pênis sujo” (1). Os oximoros que o poeta usa intensificam a ideia de que o imaculado deve ser “poluído”. É quando fica pleno de humanidade.

O preceito do Manoel de Barros acabou me remetendo a um do Mario Benedetti, que li recentemente. Cito como está no texto original, com tudo em minúsculas:

“com o desejo mais terno do que outras noites
tateou as pernas da mulher nova
que felizmente não eram de carrara (...)
com o polegar e o indicador reconheceu os lábios
que felizmente não eram de coral” (2).

A idealização é capaz de prodígios, de produzir obras-primas. Ela é inevitável; perpassa não só nosso imaginário, mas toda a história da arte. Seria irresponsável afirmar que idealizações não contém verdades humanas.

O Modernismo, que para muitos produziu uma arte “menor” se comparada com a arte clássica, investiu pesado na dessacralização do fazer artístico e da arte em si mesma, o que é uma de suas grandes conquistas. Boccaccio, Rabelais, Cervantes ou Sterne já haviam feito uma saudável farra com a literatura. No Modernismo, isso se tornou muito forte.

Trechos como o de Manoel de Barros ou o de Benedetti, citados acima, são exemplos do que a literatura moderna conquistou. São nódoas a revelar nossa condição de seres que comportam o sublime e o sujo. Em nós, o elevado e trivial se misturam. Que haja luzes e nódoas.
_____

(1) BARROS. Manoel de. O livro das ignorãças. 4ª edição. Rio de Janeiro. Record. 1997. Pag. 21.
(2) BENEDETTI, Mario. O amor, as mulheres e a vida. Tradução de Julio Luis Gehlen. Campinas. Verus. 2010. Pág. 63.

Morte líquida

Uma gota de lucidez
num mar de desrazão.
Mergulhou nela.
Afogou-se. 

Mariposa

O Manoel de Barros, no livro “Concerto a céu aberto para solos de ave”, escreveu que “besouro no estrume está no palácio”. Lembrei-me ontem, pela manhã, do aforismo do poeta quando me deparei com essa mariposa pousada no piso do banheiro.

Que pena

Ontem, eu estava brincando com o Tito, meu cachorro. Na beirada do continente de ração dele, vi as penas; decidi tirar uma foto.

Acho que as penas não são do Tito.

Fora de alcance

Sei onde estás.
Não te amasse,
não desejaria eu
que teu lugar
estivesse ao
alcance de
minhas mãos.

Apontamento 353

Encaro a palavra como possibilidade de lucidez. A lucidez em si é bela. E pode ter nuances. Tanto é assim que existe a poesia.

Os que são contra a democracia

 Os que em nome de um patriotismo canhestro defendem mais um golpe militar, alegando que há uma presença comunista pairando no Brasil, não somente revelam ignorância histórica, mas são, em si, a ameaça. Dizendo serem patriotas, invadem a Câmera dos Deputados e pedem ditadura que afaste os comunistas que dizem estar enxergando.

Há um paradoxo: anunciam uma ameaça que é teórica, ao mesmo tempo em que se tornam, na prática, a ameaça. Em nome do que não há (o comunismo), têm implementado o que há — a violência deles contra o outro e contra as instituições, as quais somente são úteis se estiverem a serviço deles.

Eu não concordo com o conservadorismo e com o elitismo da Câmara e do Senado. É vergonhoso aceitarem jantares oferecidos por Temer (e bancados por nós) para que aprovem PEC contra a educação e contra a saúde. Todavia, isso não me dá o direito de invadir as Casas.

A grande ameaça à democracia tem vindo de quem diz que a democracia está sendo ameaçada. Inventando inimigos, seja por má-fé, seja por burrice, eles é que estão querendo minar o regime democrático, defendendo, dentre outras aberrações, golpe militar. O perigo que representam é real, palpável.

Ostentando preconceitos e divulgando riscos inexistentes, eles é que são o entrave para que a democracia avance. Inventando perigos e contando com a anuência da grande mídia, são eles, o perigo. Para destruírem conquistas democráticas, inventam e espalham monstros. Uma das pessoas que invadiram a Câmara gritava: “O general está vindo”. Se depender deles, virá.

Preconceito e loucura

A doença da sociedade brasileira tem sido escancarada em virtude dos desdobramentos políticos e das redes sociais. O que outrora era velado é divulgado em todo o País, exibindo uma face doentia e preconceituosa. O que me leva a escrever isso é o ocorrido hoje (20/11) em São Paulo.

O Movimento Brasil Livre (MBL) e o Vem pra Rua convocaram manifestação em apoio à operação Lava Jato, em São Paulo/SP, na Avenida Paulista. Todavia, no mesmo local, estava ocorrendo a XIII Marcha da Consciência Negra.

A reação de um homem ao estar diante de uma integrante da Marcha da Consciência Negra foi típica do momento de burrice e de perigosa intolerância pela qual o Brasil tem passado. Usando um chapéu verde e amarelo sobre o qual estava escrito o nome do País e uma bandeira do Brasil pendurada no pescoço, o homem gritou para a manifestante: “Tira foto do meu pau! Eu tô louco, sim! Eu sou machista, sim! Vagabunda!”.

Tem-se então que ele pode manifestar o preconceito dele. Pode exibi-lo, pode se orgulhar dele. Na ótica dele, basta usar um chapéu com as cores da bandeira nacional e atacar o outro para que se possa ser considerado patriota. A moça que disse que a bandeira do Japão era manifestação comunista (depois ela se retratou) também se disse patriota.

Desse modo, o conceito de patriotismo é desvirtuado já em sua raiz; a partir do instante no qual esse “patriota”, em nome do que ele considera o banimento da corrupção, propõe um País que exclua, por exemplo, o negro, ele está indo contra o que está no DNA do lugar em que vive.

Não bastasse, esse “patriotismo” de parte dos que põem sobre o corpo a bandeira do Brasil e saem em manifestações que dizem ser contra a corrupção é seletivo nos protestos que realizam. O corrupto é sempre o outro.

O problema é sempre o outro, o que imprime a esse “patriotismo” mais um elemento: a ausência de cosmopolitismo, por mais que se viaje pelo mundo. É que o cosmopolitismo, em essência, não é o mesmo que viajar. Ele diz respeito a um estado mental em que há o interesse em saber o que é outro, seja quem for esse outro, seja em que país for.

Autorretratos na Torre Eiffel e vinhos saborosos em restaurantes legais podem não ser expressão de cosmopolitismo. Uma pessoa que, numa manifestação, xinga a outra do modo como o que citei acima não quer saber nem do outro nem de seu País. Ele está, sim, defendendo o interesse de seus iguais, de seus pares.

Para uma parcela da população do Brasil, se o outro é preto e vem, digamos, de Cuba, está roubando os empregos daqui; se o outro é loirinho, tem olho azul ou verde e fala inglês, ele está contribuindo para nosso crescimento. O preconceituoso jamais enxerga que o crescimento cultural é possível com qualquer outro, não só o outro que atenda a quem o preconceituoso considera detentor de humanidade.

O ocorrido na Paulista é sintomático de um Brasil que mostrou haver nele pessoas inflamadas que estão dispostas a tudo em nome seja de golpe militar seja de um processo de “limpeza” do País. Nesse mundo, cores outras ou ideias outras seriam banidas em nome da ordem e do progresso, lema que tanto gostam de bradar.

Sem o interesse genuíno pelo outro, a visão doente que têm de patriotismo e de cosmopolitismo seria risível. Seria. Eu queria ter achado graça da moça que disse que a bandeira do Japão era evidência de invasão comunista no Brasil, mas não consigo rir de coisas assim. Considero a ignorância exacerbada perigosa demais para que eu consiga zombar dela. Ela é doentia e numerosa. Não bastasse, tem apoio de parte dos grandes meios de comunicação.