sábado, 31 de agosto de 2019

Tia Olinda

Esta é minha tia Olinda; ela é irmã de meu pai (ele morreu há vinte anos). Olinda tem oitenta, é viúva há sessenta. Se não me engano, um trem de ferro passou por cima do ex-marido dela numa visita que ele fez a um parente em Barbacena. Viúva aos vinte anos, Olinda nunca se casou novamente. Ela e o ex-marido tiveram três filhos.

Há um tempão era ideia minha fotografar a tia Olinda, que é uma senhora simples e que mora no mesmo lugar, uma casa também simples, desde que tenho memória. Durante a sessão de fotos, ela disse que a casa estava desarrumada, mas comentei com ela que minha intenção era buscar certa espontaneidade não só no lugar, mas também em minha tia.

Para isso, nada de poses mirabolantes; ademais, não faria sentido pedir isso a uma senhora. Procurei apenas pedir a ela que se virasse e que ora encarasse a lente, ora não a encarasse. O ensaio foi breve e frutífero. A tia Olinda não ficou sem jeito diante da lente, para a qual ofereceu expressão e olhar fortes.

Enquanto eu tirava as fotos, ela ficou rememorando as histórias da família, em especial, as ligadas a mim e a meus irmãos. Num certo momento, disse-me que quando eu era pequeno, eu dizia que queria ser escritor quando eu crescesse. Eu jamais me lembraria disso. 

A rigor, mesmo depois de a tia Olinda ter mencionado a pequena história, não consigo me lembrar de alguma vez ter dito que eu queria ser escritor. Mesmo assim, fiquei contente em saber que na infância eu expressava esse desejo, que, afinal, concretizou-se. 

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Os insistentes

Não sabemos rastrear o fio da memória. Do “nada”, uma lembrança vem à tona. Hoje, eu me lembrei da Amway. Fiquei o dia todo com a lembrança na cabeça. Depois do trabalho, fiz breve pesquisa, na intenção de saber se a empresa ainda existe. Não entendi muito bem o que era (nem entendi há pouco, conferindo a página deles) a Amway quando algumas pessoas me procuraram para que eu me tornasse, se bem me lembro, consumidor e vendedor do empreendimento. Conferindo a versão brasileira do sítio deles, leio o trecho: “Somos a maior empresa de vendas diretas do mundo”. Há ainda: “Bônus de Ativação, Bônus de Performance, Bônus de Liderança, Bônus por Novas Qualificações”.

Não sei se a companhia mantém hoje o “modus operandi” da época em que alguns vendedores deles me procuraram. Ainda no sítio, há a informação de que estão no Brasil há vinte e sete anos, ou seja, desde 1992. A memória que tenho nunca foi prodigiosa quanto a datas, mas enquanto fiquei matutando sobre a Amway, tive a sensação de que os representantes dela haviam me procurado antes desse ano.

Não faço a menor ideia de como me acharam, não me lembro de nenhum dos que vinham aqui em casa. Nada de nomes, nada dos rostos deles; quase tudo sumiu. O que ficou: chegavam de carro e estavam sempre com roupas impecáveis. Pena que roupas não impedem chatice. Eram uns caras muito aporreantes. Fosse hoje, suponho que eu teria sido menos sutil; fosse hoje, eu teria achado um modo de pedir a eles que não mais me procurassem. Na época, não agi assim. Sou de 1970; isso quer dizer que eu tinha vinte e um ou vinte e dois anos quando esse pessoal chegava por aqui. A velhice não é pretexto para que se perca a polidez, mas tira o drama que há quando temos de pedir a alguém que não mais nos procure. Na época, não tive o expediente de deixar claro para eles que eu não estava nada interessado no que eles estavam me propondo.

Difícil imaginar uma pessoa menos apta para vender do que eu. Por falha minha, não sabiam disso; repetiam e repetiam, num proselitismo monótono, que eu deveria ser parte da Amway. Na época, não estando eu enganado, era mais ou menos assim: se eu topasse o negócio, eu teria de ser cliente da Amway, comprando uns produtos deles (não sei se são os mesmos tipos de produtos anunciados no sítio deles conforme o que conferi há pouco) e, ao mesmo tempo, não estando eu incorreto, tendo de oferecer a possíveis compradores esses mesmos produtos. Pode não haver exatidão nessa logística apontada por mim; mesmo assim, estou certo: eu teria de lidar com vendas.

A falta de talento para vender não impede a desconfiança quando dinheiro fácil é anunciado. O pessoal que vinha aqui em casa me enchia de fartas promessas de ganhos financeiros, o que, segundo eles, permitiria que eu realizasse meus sonhos, fossem eles quais fossem. Do pouco que ficou na memória daquelas visitas inconvenientes, há uma frase, dita por um dos caras que estavam aqui: “Meu sonho é enviar meus filhos pra estudar na Europa”.

Não sei se o sonho dele se concretizou. Que tenha se concretizado. A impressão que eu tinha na época é a de que o pessoal que vinha aqui estava iludido quanto à possibilidade de ficar rico em pouco tempo. Pode ser que tenham mesmo ficado ricos em pouco tempo, pode ser que sejam ricos hoje (torço mesmo para que sim); do que sei, é que minha inépcia para vender não me deixaria milionário, fosse eu seguir a proposta deles, nem daqui a um milhão, quinhentos mil e duzentos e treze anos. Além do mais, não tenho talento para ganhar dinheiro.

Eu me lembro vagamente de que havia uma espécie de hierarquia, uma classificação para os vendedores. Pedras preciosas é que nomeavam essas classificações. Nada entendo de gemas, mas digamos que o diamante fosse o topo no sistema criado pela Amway naquele tempo; o auge, pois, seria tornar-se um vendedor-diamante. Sei que eu não sairia da base da pirâmide.

Em retrospecto, percebo que errei ao não ter deixado claro para eles que eu estava achando tudo aquilo muito cansativo. Fui convidado a participar de pelo menos uma reunião. Claro que não fui. Isso, penso, deveria ter sido motivo para que eles não me procurassem mais. Eu não ter ido à tal reunião parece ter atiçado ainda mais o desejo deles em me tornar um dos integrantes da rede. Sim, eram um porre, mas isso não implica dizer que fossem maus indivíduos. Não lembro se eram de Patos de Minas. Na época, eu pensava neles como pessoas maçantes querendo dinheiro de um modo que não se ajusta ao que sou. 

Se alguém que trabalha na Amway (ou para a Amway) ler este texto, entenda que ele não é um ataque contra ela nem contra quem presta algum serviço para ela nem contra quem recebe salário da empresa nem contra quem tenha se tornado um vendedor rico, mas apenas o registro de lembrança que me chegou hoje, lembrança de uns caras insistentes e bem vestidos. Se você que me lê agora é um dos que vinham aqui, que você e seus companheiros de venda tenham ficado ricos. Tendo ficado ou não tendo ficado, sintam-se convidados para um café, desde que não insistam em me oferecer algo para eu vender.

terça-feira, 20 de agosto de 2019

Cinzas

Podem queimar o país.
Os bichos morrerão,
vão compor as
cinzas do amanhã.
Podem queimar o país.
O fogo infernal é aqui,
liberado numa assinatura,
festejado por demônios
em gabinetes,
em ricos infernos
e em pobres mentalidades.
Os homens morrerão.
Vão compor as cinzas
do depois de amanhã. 

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Bolsonaro e Johnny Bravo

Bolsonaro se comparou com Johnny Bravo. Concordo. A similaridade é exata tendo o presidente se dado conta do sarcasmo do desenho animado ou tendo o presidente não se dado conta do sarcasmo do desenho animado. Se Bolsonaro se deu conta, ele se assume tão ridículo quanto Johnny Bravo, que não é quixotesco, mas, sim, ridículo (Quixote tem bom coração, o que, claro, não é ridículo). Se Bolsonaro não se deu conta da paródia ou da sátira que é o desenho animado, ele estaria (o que não surpreende) reagindo como alguns leitores que, numa passagem do Viagens de Gulliver, supõem que o que está sendo debatido de fato é se o ovo deve ser quebrado pela ponta mais fina ou pela ponta mais grossa. Johnny Bravo é uma espécie de Bolsonaro “avant la lettre”; Bolsonaro é uma espécie de Johnny Bravo que se tornou presidente.