“O calor, como uma roupa, dá vontade de o tirar”, escreveu Fernando Pessoa em “Livro do desassossego”, coleção de apontamentos escritos por Bernardo Soares, mais um dos heterônimos de Pessoa. Em “O planeta dos macacos”, Pierre Boulle escreve, por intermédio do narrador Ulysse Mérou, segundo tradução de André Telles: “A temperatura era elevada, mas suportável”. Até então não sabemos o que seria exatamente uma temperatura elevada. Depois, há dois-pontos esclarecedores, em trecho no qual se diz “cerca de vinte e cinco graus centígrados”.
Fernando Pessoa era português; não há como saber a que temperatura o heterônimo se referia ao se queixar do calor. O trecho não tem indicação da época do ano a que o apontamento se refere; houvesse tal indicação, seria possível um parâmetro, ainda que aproximado, da temperatura que teria levado à queixa de Bernardo Soares.
Já Pierre Boulle era francês. O narrador criado por ele define como “elevada” uma temperatura de vinte e cinco graus centígrados. Nós, brasileiros, viventes em país tropical, não adjetivaríamos, suponho, como alta uma temperatura de vinte e cinco graus. Não é descabido imaginar que o calor sentido por Bernardo Soares fosse, para nós, brasileiros, uma temperatura, quem sabe, um tanto amena.
O ponto de partida de qualquer compreensão é, antes de tudo, o que somos, aquilo que nos é inteligível, o que nos é familiar. Se um calor de vinte e cinco graus parece elevado para um, mas suave para outro, isso não deve ser encarado como falta de capacidade ou como imprecisão da palavra em alcançar nossos meandros, mas, sim, como possibilidade de exercício de compreensão do outro a partir de simples relato quanto à temperatura de um ambiente.