quinta-feira, 5 de novembro de 2015

"MEDIANERAS"

É muito bom quando filmes ou livros continuam existindo dentro da gente depois de conferidos. Há filmes ou livros que nos deixam com saudade. Já estou com saudade de “Medianeras” (2011), do diretor Gustavo Taretto; o roteiro é dele também. No elenco, Javier Drolas (Martín) e Pilar López de Ayala (Mariana).

O filme é um delicado e reflexivo retrato do que são as relações (amorosas) no mundo de hoje. Na execução, Taretto fez com que Buenos Aires se tornasse, por assim dizer, personagem do filme. Mostra-se a relação do homem com as grandes cidades. Cada pessoa acaba sendo mais uma em meio às multidões. Em outras palavras: a solidão de cada um em meio aos aglomerados. 

Se a cidade é cenário, também é cenário a clausura de cada um. Pessoas fechadas em apartamentos e fechadas em si mesmas — mas que procuram gente, ainda que diante de um teclado de computador. Procurar gente é também um modo de querer ser achado. 

“Medianeras” faz uma terna e delicada reflexão sobre as relações virtuais em que, se, por um lado, há comunicação, por outro, cada um está em seu próprio lugar, diante de seu próprio monitor, digitando sua solidão. Comunica-se com o mundo, é verdade, mas não há o encontro físico.

Como toda obra artística primorosa, “Medianeras” possibilita desdobramentos. São elementos do enredo a função social da arquitetura, a despersonalização que as metrópoles ou as multidões causam, o paradoxo da solidão humana num mundo que possibilita, graças à tecnologia, o contato com o antípoda. Com ar despretensioso, o filme diverte e convida à reflexão.

Os percursos de Martín e Mariana acabaram me remetendo ao belo poema “Amor à primeira vista”, da autora polonesa Wisława Szymborska. Certa vez, quando escrevi sobre o filme “O voo”, também inseri o poema de Szymborska em meu comentário. Pela segunda vez, uma produção cinematográfica me remete ao texto dela, que transcrevo a seguir. A tradução é de Regina Przybycien.
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Amor à primeira vista — Wisława Szymborska

Ambos estão certos 
de que uma paixão súbita os uniu. 
É bela essa certeza, 
mas é ainda mais bela a incerteza.

Acham que por não terem se encontrado antes 
nunca havia se passado nada entre eles. 
Mas e as ruas, escadas, corredores 
nos quais há muito talvez se tenham cruzado?

Queria lhes perguntar, 
se não se lembram — 
numa porta giratória talvez 
algum dia face a face? 
um “desculpe” em meio à multidão? 
uma voz que diz “é engano” ao telefone? — 
mas conheço a resposta. 
Não, não se lembram.

Muito os espantaria saber 
que já faz tempo 
o acaso brincava com eles.

Ainda não de todo preparado 
para se transformar no seu destino 
juntava-os e os separava 
barrava-lhes o caminho 
e abafando o riso 
sumia de cena.

Houve marcas, sinais, 
que importa se ilegíveis. 
Quem sabe três anos atrás 
ou terça-feira passada 
uma certa folhinha voou 
de um ombro ao outro? 
Algo foi perdido e recolhido. 
Quem sabe se não uma bola 
nos arbustos da infância?

Houve maçanetas e campainhas 
onde a seu tempo 
um toque se sobrepunha ao outro. 
As malas lado a lado no bagageiro. 
Quem sabe numa note o mesmo sonho 
que logo ao despertar se esvaneceu.

Porque afinal cada começo 
é só continuação 
e o livro dos eventos 
está sempre aberto no meio.