domingo, 19 de fevereiro de 2017

Pressa

Num tempo em que tudo tem de ser rápido, em que nada pode demandar esforço, qualquer texto de dez linhas já é chamado de textão. Ao se deparar com a disposição das palavras no papel ou na tela, o leitor nem começa a leitura. Há mais o que fazer. No tempo da pressa, o mínimo já é demais. O amor tem de ser feito com pressa, a leitura não pode demandar mais do que alguns segundos, a atenção não pode se concentrar por mais de alguns minutos.

Se não se reserva tempo para se apreciar coisas que demandam algum esforço, nem é preciso dizer que o tempo dedicado a coisas que exigem disciplina por parte de algum criador é buscado por poucos. Nem tanto porque deixam de realizar porque terão público pequeno (eles sabem de antemão que o público será restrito), mas porque há poucos que não caíram na armadilha da rapidez, do conhecimento que vem fácil, da felicidade virtual ou da que vem por meio de fármacos.

O texto tem de ter poucas linhas, os cortes no filme precisam ser rápidos, os diálogos na vida real não podem ser profícuos. Tudo tem de ser rápido, tem de ser palatável. Nada pode dar trabalho, nada pode exigir esforço, nada pode demandar concentração.

A escola, que deveria ser por excelência o espaço do pensamento e da disciplina (não a disciplina militar), acaba se rendendo ao mundo da rapidez e do entretenimento. Em busca de uma linguagem que esteja em sintonia com o que a contemporaneidade tem de perigoso e de prejudicial, a escola, não raro, acaba investindo em estratégias tão superficiais e fugazes quanto as futilidades do mundo da rapidez e da ilusão das coisas fáceis.

Alega-se que o professor que não tiver a habilidade de ser uma espécie de dublê de animador de programa de auditório de consumo fácil nem tiver sempre uma apresentação qualquer (qualquer mesmo) para ser projetada numa parede ou numa lousa branca não fará sucesso. Esse professor, nesse viés, não conseguiria se comunicar com as novas gerações, que estão conectadas, que têm informação nas pontas dos dedos, que têm acesso imediato ao que está do outro lado do mundo.

O caso aqui não é o de compor um manifesto contra a tecnologia e suas praticidades. Isso seria patético. A questão é que, para soar sedutora, a escola, com frequência, acaba embarcando em modismos que, em essência, retiram da pessoa uma das coisas mais poderosas que ela tem, que é a capacidade aprimoramento mental.

Num mundo em que tudo tem a obrigação de ser fácil, agradável, indolor, engraçado, charmoso, sedutor e carismático, professores que não ficam fazendo macaquices em sala de aula têm, amiúde, a competência colocada em dúvida, às vezes a ponto de serem demitidos. Certa vez, numa pós-graduação, um docente teve avaliação ruim por parte dos alunos a partir de critérios que são sintomáticos da contemporaneidade: segundo vaticínio dos discentes, que não eram mais de vinte, o professor era incompetente porque falava baixo, dava aula sentado, não era engraçado e não se valia de eslaides.

Mesmo no ensino superior, o pensamento de que as coisas vêm fáceis e de que devem ser transmitidas com facilidade tem imperado. As pessoas querem rapidez, querem o sucesso agora, não podem dedicar anos de suas vidas ao cultivo de um ideal, de uma habilidade, de um aprendizado, de um livro. Para estar em sintonia com o que é contemporâneo, a rapidez é condição de que não se pode abrir mão. Quem tem uma abordagem que não se pareça com isso estaria obsoleto, retrógrado, sem graça, ranzinza.

O conhecimento não impede o humor, a leveza, o gracejo. Mas não se pode ter medo de mostrar às pessoas que o conhecimento de que essas mesmas pessoas se valem não veio no tempo de uma conversa num aplicativo de celular. Conhecimento e felicidade genuína demandam esforço, disciplina. Nem a escola nem o cinema nem a televisão nem os livros precisam ser caretas, engessados. Mas é preciso não cair na ilusão de que aquele que, em uma hora, deu uma olhadela em trinta páginas na internet, ouviu quinze ou vinte músicas, bateu papo em aplicativos eletrônicos em trinta e três grupos e acompanhou o jogo pela televisão ganhou mais do que aquele que passou esses mesmos sessenta minutos concentrado na leitura de algum livro, ainda que esteja ele carcomido pelas traças. 

Festa da empresa

Quantos são?
Quarenta?
Cinquenta?
Não importa.
Cada um é mais do que o bastante,
mais do que não sabe.

Há risos, piadas, olhares, rusgas encobertas.
Observo os rostos, os gestos, os caminhares,
a fumaça do churrasco, a música, os corpos que, 
por enquanto tímidos (ainda não houve álcool o bastante),
querem se libertar: o chefe não está,
e se estivesse, não seria para dar ordens,
ainda que seja o que ele queira (ele sempre quer).

É só a festa da empresa.
Iguais a tantas que ocorrem neste momento
e a todas que já ocorreram.
As quarenta ou cinquenta pessoas são um todo.
Parecem felizes, predispostas à pândega.

Eu escrutino cada um.
Aquele ali ri alto, mas está apreensivo,
pois não sabe se a namorada vai perdoá-lo.
Aquele acabou de chegar com a esposa e com os filhos;
não se cogita que ele preferiria estar em casa descansando.
Aquela outra chegou com o marido e com o filho;
não se supõe que ela gostaria de estar com o amante.
Outro casal vai pegar chope;
não se sabe o quanto estão bem um com o outro.
Mais adiante, lá no canto, o que veste camisa azul
não suporta mais o jeito mandão e asséptico da esposa.
Aquela outra se sabe conservadora, mas queria ser diferente.
Aquele outro pensa que precisa deixar o comodismo de lado.
O rapaz de preto se aproxima da chefe pensando em seduzi-la.
Ninguém sabe da paixão que a moça de vermelho nutre pelo
colega de trabalho, que está usando  bermuda e camiseta.
Esquadrinho os outros, sabendo-me esquadrinhado. 

A festa prossegue.
Ao mesmo tempo em que é um grupo,
com suas leis físicas e pessoais,
é feita de pessoalidades,
com suas leis físicas e pessoais.
Mistura do todo com o que é cada um,
a festa se move, se embebeda, 
revela-se, abraça-se, beija-se,
num misto de faz de conta,
confissões e desejos, que,
neste momento da festa,
já são menos velados.