segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Processo

Não há mecanismo 
lógico nem industrial 
para se chegar à poesia.
Não sei se há engrenagem 
para que ela se achegue.
Mas sei de muita coisa
que a faz ir embora. 

A cabeça de um neurocirurgião

Relatos médicos, quando não técnicos demais, sempre me interessaram. Que eu me lembre, o primeiro livro que li supostamente escrito por um médico foi o “Confissões de um ginecologista”, que consegui, na década de 80, numa biblioteca pública local. Uma pesquisa rápida na internet me revela que o livro é de 1972; foi publicado, sem o nome do autor na capa, pela Record.

Sempre interessado na questão médica, e em especial na relação médico-paciente, acabei chegando aos livros do Oliver Sacks (1933-2015), os quais sempre recomendo com entusiasmo. Também já escrevi alguns textos sobre a falta de humanidade de alguns médicos, que tratam os pacientes como se fossem somente números.

Seguindo meu interesse nessa área, terminei de ler “Sem causar mal” [Do no harm], do neurocirurgião inglês Henry Marsh. A tradução é de Ivar Panazzolo Júnior; o livro foi publicado pela nVersos. Num estilo direto, sem delongas, Marsh narra casos com que teve de lidar como médico.

É espantosa a coragem com que o autor conta os fracassos que teve ao longo de sua profissão. Não nos esqueçamos de que fracassar, no caso de um neurocirurgião, pode implicar danos sérios para o resto da vida de um paciente. Há erros retumbantes. Num deles, o caso de um paciente que ficou em estado vegetativo depois de ter sido submetido a uma cirurgia realizada por Marsh.

Como todo grande livro, terminada a leitura, o que há um retrato multiforme e difícil da condição humana. Um médico se desnuda, confessa seus erros; o que surge é a complexidade que é essa coisa de ser gente. Os relatos são secos, duros. Marsh não pede ao leitor que tenha comiseração dele nem se vale de autopiedade. Ele conta os casos.

Não bastasse, relata os problemas pelos quais passou nas vezes em que foi paciente e quando teve de assistir à morte da mãe, a qual não resistiu a um câncer que teve. Sem se meter a análises transcendentais acerca da condição humana, o livro, nem por isso, deixa de apresentar o quanto ser gente é complicado. E ser gente quando se está doente, mais ainda. Este é um dos pontos altos da obra: sem cogitar teorias sobre o pós-morte, leva-nos a uma reflexão sobre o que é viver, sem conclusões definitivas e sem receitas fáceis.

Enquanto acompanhamos as ruminações feitas pelo médico, não raro enquanto ele está pedalando sua bicicleta, meio de que muito se vale ao ir para o trabalho, realizamos nós a reflexão do que estamos fazendo de nossas vidas e do que é nosso cérebro. Ao mesmo tempo, Marsh não deixa de apresentar a funesta burocracia de sempre, que contaminou também o sistema de saúde.

O livro é um monumento. A sinceridade com que Henry Marsh narra seus fracassos é espantosa. Não há eufemismos, não há delongas, o que ainda faz com que “Sem causar mal” seja uma aula de estilística, ao contar, indo direto ao ponto, sem truques manjados, a difícil tarefa de ser um neurocirurgião. Mesmo não sendo intenção dele, o livro é uma aula de como narrar. “Sem causar mal”, embora trate muito de morte ou de pesadas sequelas de que ficaram padecendo vários dos pacientes do autor, é sobre a força da vida.