sábado, 20 de março de 2021

Precocidade

José tomou ivermectina.
José tomou cloroquina.
Bradava a eficácia
do tratamento precoce.
Precoce foi a morte. 

sexta-feira, 19 de março de 2021

Zé pagava as contas em dia.
Montou pequeno comércio,
cujos impostos quitava com rigor.
Casou-se aos vinte e seis,
foi pai aos trinta.
Aos trinta e dois,
morreu de covid.

A natureza não se preocupa com 
nossas circunstâncias.
Nem Bolsonaro. 

quinta-feira, 18 de março de 2021

Trilogia “minha especialidade é matar”

1
Segundo o Houaiss, possível definição para “genocídio”: “Extermínio deliberado, parcial ou total, de uma comunidade”. Outra definição para o termo: (...) “Submissão a condições insuportáveis de vida”. Quem realiza genocídio ou quem extermina coletivamente é genocida. Não é desarrazoado chamar de genocida quem diz de si mesmo “minha especialidade é matar”.

2
Há os que — não raro, com cinismo — lavam as mãos, preferem ignorar a palavra, como se ela pairasse independente ou fora de quem a utiliza, como se ela não fosse sintoma de quem dela se vale. Ora, a palavra está ligada a quem a profere, é expressão de quem a emite, mormente quando dita de modo deliberado ou reiterado. Não se deve desvincular a palavra daquele que a expressa. Os que votaram em Bolsonaro sabiam das palavras que ele proferira antes das eleições que fizeram dele o presidente. Votaram de modo consciente em quem há tempos defende tortura e ditadores, votaram em quem dissera, antes das eleições, “minha especialidade é matar”.

3
Aquele que disser de si
“minha especialidade é dirigir”
pode ser chamado de motorista.

Aquele que disser de si
“minha especialidade é cuidar”
pode ser chamado de enfermeiro.

Aquele que disser de si
“minha especialidade é tocar”
pode ser chamado de instrumentista.

Aquele que disser de si
“minha especialidade é matar”
pode ser chamado de Bolsonaro. 

quarta-feira, 17 de março de 2021

Consequências

O poeta lê:
surgem poemas.

O músico lê:
surgem melodias.

O físico lê:
surgem explicações.

O “mito” não lê:
surge a morte.

O “mito” lê:
surge a morte. 

Visitação

O morto tem endereço.
A mãe o visita, conversa com ele; a mãe chora.
O morto nada diz.

O morto tem endereço.
O filho o visita, conversa com ele; o filho chora.
O morto nada diz.

O morto tem endereço.
A mulher o visita, conversa com ele; a mulher chora.
Um passarinho pousa e canta sobre o jazigo.
A mulher nada diz. 

O julgamento

Levaram, então, uma mulher: “Ela foi surpreendida em flagrante delito de adultério. A lei ordena que ela seja apedrejada. Você, que se acha cheio de razão, vai fazer o quê?”. O homem escrevia na terra com o dedo. Ergueu-se e lhes disse: “Quem não tem pecado que seja o primeiro a jogar uma pedra nela”. Mal tendo o homem começado a falar, já havia algumas pessoas fazendo gestos, como que atirando com revólveres ou com metralhadoras. O vozerio despejava impropérios. Foi quando um cidadão de bem, indo até o carro dele, pegou um fuzil e o descarregou sobre a mulher e sobre o homem. Houve risos, júbilo. Durante a agitação, as palavras que haviam sido escritas na terra foram apagadas. 

quinta-feira, 11 de março de 2021

Cadê a máscara?

Flávio Bolsonaro postou “nossa arma é a vacina”. Já o presidente, ontem, usou máscara em evento. Em Israel, Eduardo Bolsonaro usou máscara publicamente. Os dois primeiros, enquanto digito estas palavras, ainda estão fazendo de conta que defendem vacina e uso de máscara; o terceiro não conseguiu se manter no fingimento de civilizado. Ontem à noite, referindo-se a máscaras, declarou: “Enfia no rabo, gente”. Fez a declaração sem máscara. Não sei se executara a enfiadura indicada por ele.  

quarta-feira, 10 de março de 2021

Maia

Dentre os velhos cínicos, Rodrigo Maia é o mais recente a fingir que se preocupa com o Brasil. 

terça-feira, 9 de março de 2021

Entupidos

O povo se entope de ivermectina.
O povo se entope de cloroquina.

Os cemitérios se entopem de cadáveres. 

Fisiológico

O povo engole a mentira e
se torna claque do “mito”.

O povo engole a mentira e
vomita o que sobrou da ivermectina.

O povo engole a mentira e
caga o que sobrou da cloroquina.

O povo engole a mentira e
leva para o caixão o que sobrou de si. 

sábado, 6 de março de 2021

“Remédios”

De um lado, um governante que já deixara claro a que veio: “Minha especialidade é matar”. De outro, aqueles que, em vez de assumirem responsabilidades, delegam para um deus a resolução de problemas. Eles não são resolvidos. Vem a morte. Aí é um tal de “que deus o receba” ou um tal de “essa pandemia é vingança de deus” ou um tal de “que deus nos ajude”. Para que a consciência siga em paz, cloroquina, ivermectina e afins. 

quinta-feira, 4 de março de 2021

Sem leme

Prefeitos e governadores Brasil afora, muitos deles assumida e orgulhosamente sabujos de Bolsonaro, não contam agora com a ajuda dele. O cotidiano do cidadão é vivenciado não por ele, mas por governadores e, mais em especial, por prefeitos. O encontro no dia a dia se dá com prefeitos, não com o presidente. Eles é que têm de se virar para resolver um problema que muitos deles ajudaram a intensificar, quando manifestaram profunda sintonia com o “ideário” do chefe do executivo federal.

Este texto não é para defender prefeitos. Reitero: muitos deles são obedientes ao que o “guru” presidencial determina. Há deles por aí, por exemplo, que fazem questão de serem fotografados ao lado dele, sem que ninguém, evidentemente, use máscara. Afinal, para esse tipo de gente, máscara é artefato que atrapalha a felicidade. Este texto é somente para dizer que os prefeitos que tanto se encantaram com o presidente agora têm de se virar por conta própria em suas aldeias.

É paradoxal, é verdade, mas, no Brasil, quanto mais alto o cargo, menos satisfações os altos escalões dão. Longe das vítimas, é fácil para alguém desses escalões falar que são “frescura” e “mimimi”, palavras usadas hoje pelo presidente [1], a revolta quanto ao número de mortos pela covid e as reações contra a falta de política federal ao lidar com a pandemia. O presidente sabe que ninguém vai argumentar contra ele, pois ele está blindado, e quando confrontado por alguma pergunta a que ele tem obrigação de responder, ele vai embora. Assim, é fácil.

Sobrou para os governadores e, nas esquinas das cidades, para os prefeitos. Tanto estes quanto aqueles foram criticados hoje pelo presidente [2], ou seja, muitos desses governadores e desses prefeitos foram criticados e são agora abandonados por quem tanto bajularam. Surfaram na onda do bolsonarismo, foram eleitos; agora, veem-se abandonados pelo “‘mito’”. Estão sozinhos, estamos sozinhos.

O presidente sabe que poucos estão comprometidos em fazer a parte que cabe a cada um quanto à evitação do contágio pelo coronavírus. Propagar uso de remédios que nada resolvem no que diz respeito a tratamento contra a covid é mais fácil do que assumir a responsabilidade do cargo. Em jogada demagógica, e, por isso mesmo, eficaz, Bolsonaro afirmou hoje que políticos devem ir “para o meio do povo” [3]. 

De minha parte, digo que seria melhor se ele não desse as caras em público e cuidasse daquilo que é obrigação dele há muito tempo, que é a de conduzir, pelo menos com respeito, o manejo da epidemia no Brasil. Mas, claro, sei que dele, nem respeito virá. O Brasil estaria melhor se ele ficasse calado num gabinete qualquer. Ele sabe disso. 

quarta-feira, 3 de março de 2021

Mais chicotadas por favor

Alguns estarrecidos perguntam-se como apenas um homem, no caso, o presidente, esteja causando tantas mortes devido à não atuação dele para combater a pandemia. Ele não está sozinho e sabe disso. Conta com a tolerância da chamada grande mídia, que é a favor do neoliberalismo do Guedes e caterva. Essa mídia e outras empresas grandes apoiam a retirada de direitos trabalhistas (a reforma da previdência foi uma dessas estratégias).

Há o apoio de empresários muito ricos e o apoio da chamada grande mídia, que é comandada por empresários muitos ricos. De vez em quando, essa mídia finge uma oposiçãozinha. Esse quadro, por si, já praticamente garantiria a solidez da permanência do presidente no cargo. Todavia, não bastassem os apoios dos muito ricos, o presidente tem o apoio dos que não são muito ricos, os quais, por orgulho, crueldade ou burrice, têm aceitado a piora no poder aquisitivo e a tragédia por que passa o Brasil devido à covid.

Que o presidente nunca deu a mínima para a vida alheia, ele mesmo já havia evidenciado isso antes da eleição que o consagrou como chefe do executivo federal; o elogio dele a torturadores já escancara o desprezo que tem pelo outro. A covid seguirá matando e o presidente seguirá indiferente a funestos cortejos. O fato de ele contar com o apoio da população, mesmo ele nada fazendo para proteger a vida dessa mesma população, diz muito não somente sobre o que é o presidente, cuja crueldade e cujo despreparo ele mesmo já espalhava antes de ocupar o cargo em que está agora, mas sobre o país.

É comum ser veiculada a ideia de que o brasileiro é maior do que o bolsonarismo e as atrocidades que ele representa. Balela. Sem generalizações, fácil diagnosticar que, no todo, o brasileiro é cafona, individualista, violento, despreparado, indolente, paroquial, desinformado, ignorante, boçal, arrogante, incômodo, incivilizado, fanático, submisso; não tem senso de coletividade, de cooperação, de empatia. 

Se uma pessoa que tomava cloroquina morre por causa da covid, o brasileiro, em vez de escutar a ciência, prefere dizer que essa pessoa morreu lutando, prefere escutar um lunático que lucra com a desinformação. O fracasso do país ao lidar com a pandemia é o fracasso do brasileiro como povo. A morbidez social pela qual estamos passando é consequência não somente da desumanidade de um genocida nem somente da perversidade de grandes corporações, mas do caráter conspurcado e iludido de um povo que não enxerga a si mesmo. 

Os valores em que o bolsonarismo se inspirou foram tão bem-sucedidos que a vítima do chicote passou a exigir mais chibatadas. Enquanto a pele vai sendo marcada e o sangue começa a escorrer, a mão pesada aumenta a força dos golpes. Exausto, aquele que apanhou, mal tendo se erguido, já começa a desejar a próxima surra. Para criar a ilusão de que estará recomposto quando ela vier, ingere cloroquina e ivermectina. 

terça-feira, 2 de março de 2021

Carros e cinema

Há poderosas sequências cinematográficas que não me canso de rever; comento três em que há carros. A primeira (não em ordem preferencial, mas em ordem cronológica), os minutos finais de Thelma & Louise (1991), do diretor Ridley Scott, quando Thelma [Geena Davis] e Louise [Susan Sarandon] se olham e, a seguir, fecham seus destinos. A segunda é do filme Um Beijo Roubado (2007), do diretor Kar-Wai Wong, no momento em que Elizabeth [Norah Jones] e Leslie [Natalie Portman] se despedem, acenando uma para a outra, cada uma em seu carro, enquanto dirigem numa rodovia. A terceira é uma sequência que está em As Vantagens de Ser Invisível (2012), do diretor Stephen Chbosky, quando Charlie [Logan Lerman] vai para a parte de trás da caminhonete, enquanto escutamos uma narração dele mesmo; terminado o belo texto da narração, passamos a escutar “‘Heroes’”, do David Bowie. São três sequências catárticas.