quarta-feira, 29 de abril de 2020

Moro e Bolsonaro

Moro e Bolsonaro são da mesma laia. Pertencem a uma elite que se julga superior a quem não está nela e que tem entranhados em si os dois grandes males do Brasil: a ignorância (em qualquer sentido do termo) e a mentalidade escravocrata. Moro e Bolsonaro são farinha do mesmo saco.

A diferença que existe está na superfície. Bolsonaro é atrapalhado, um bufão sem tato, um tosco cujos atos e cujas palavras denunciam o tempo todo o troglodita que ele é. Moro tem o verniz da civilidade, da sofisticação; ele sintetiza o que muitos dos iludidos da classe média e da elite (parte daquela acha que faz parte desta) pensam que ele é: um sujeito refinado, elegante.

A sofisticação de Moro é casca, é pose, são convenções. Em essência, ele é tão boçal, preconceituoso e bobo quanto Bolsonaro. Nenhum dos dois tem fulgor mental nem espírito coletivo. Os dois são adeptos da necropolítica, os dois têm um projeto de Brasil que deve ser somente para os muito ricos, o que os torna, em essência, expressão de uma classe que se julga superior às demais, de tudo fazendo para manter os privilégios que têm não por méritos próprios. 

Os dois são tacanhos, desprezíveis e defendem um Brasil para pouquíssimos, travestidos de conduta ilibada (argh!), de retidão e de combate aos corruptos. Não há nada disso em nenhum deles. Por baixo da pose de um e do destrambelhamento do outro, há dois sujeitos presunçosos, nefastos e elitistas. Não passam de símbolos de uma parte do Brasil que é feia e que se julga iluminada. Moro é um Bolsonaro de fraque. 

"E daí?"

Não lembro se foi o Borges ou o Jung... Um deles escreveu que quando uma pessoa morre, todo o gênero humano perde. Mas, bem sabemos, há pessoas para as quais a vida do outro não importa. Bolsonaro é uma dessas pessoas. Para ele, milhares de mortes por causa da covid-19 são comentadas com uma desrespeitosa declaração, nítido sintoma de falta de empatia, de espírito público; declaração nada condizente com alguém que ocupa o cargo de presidente de um país. No entorno, a claque, subserviente, bajuladora e tão descarada quanto o autor do comentário, riu. Outros patéticos, à distância, riram também. Há uma plateia enorme respondendo a estupidezas em uníssono: “E daí?”. 

Dos modos de matar

Quando, no dia 20 de abril, Bolsonaro foi perguntado sobre o número de mortos na pandemia atual, ele disse que não é coveiro (ele está mais preocupado em blindar os filhos, indicando amigo da família para a polícia federal). Todavia, mesmo não sendo coveiro, apoia torturadores, disse que o erro da ditadura foi não ter matado mais e nega quando há mortes (“o exército não matou ninguém”). Sim, Bolsonaro não é coveiro, mas prefere ignorar que a política também mata. 

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Jogada esperta

Se vivêssemos num país, Bolsonaro e Moro teriam de prestar contas à justiça, depois das declarações dadas por este mais cedo. Sabe-se que nada disso vai ocorrer. Moro chegou a dizer que o presidente trocou o comando da PF para ter acesso a investigações e a relatórios da entidade, o que não é permitido pela legislação. No fim das contas, sabemos que nem Moro nem Bolsonaro nem seus filhos terão de explicar alguma coisa.

Moro interferiu nas eleições, já sabia, antes mesmo delas, das ligações da família Bolsonaro com milícias, já sabia dos elogios a torturas... Uma vez como ministro, fingiu não saber de Queiroz, fingiu não saber da milícia digital perpetrada por um dos filhos de Bolsonaro, fingiu não saber dos inúmeros delitos do presidente (já mencionados por mim em outro texto). Não era preciso ser gênio para saber que Bolsonaro seria um desastre como mandatário. Mesmo assim, Moro embarcou. Ainda que não seja candidato a presidente nas próximas eleições presidenciais, saiu-se bem ao deixar o cargo de ministro. 

A maioria da população não levará em conta que ele é um dos responsáveis pelo engodo e pela ascensão do bolsonarismo, pois essa mesma maioria é pró-Moro exatamente por isso. Em lance bem jogado, desvencilha-se, pelo menos por enquanto, do que Bolsonaro representa. A noção de tempo é perfeita: a saída de Moro não soa precipitada nem dá a entender que veio tarde. Os mentores dele sabem o que fazem. 

Se Moro for candidato a presidente, conta, desde já, com o apoio dos demais cínicos (agora dizem terem se arrependido do voto para presidente), que fingiram não saber o tipo de gente que Bolsonaro é. Moro é um desses cínicos, mas não é bobo. Espertalhão, sendo ou não sendo candidato a presidente, saiu como o bom mocinho da história, o que ele nunca foi. 

terça-feira, 21 de abril de 2020

Sobre Pablo Villaça

Ontem, terminei o curso Forma e Estilo Cinematográficos, ofertado pelo crítico de cinema Pablo Villaça. Foi a primeira vez que ele ministrou as aulas online. São dez, cada uma delas com duração de duas horas. O curso aborda os aspectos técnicos que estão a serviço do que o cinema transmite. Embora, evidentemente, ele seja uma arte que pode ser apreciada por leigos, o curso de Pablo Villaça fornece ferramentas que possibilitam uma apreciação mais abrangente do que ocorre no universo de um filme.

Questões como forma e estilo, a diferença entre o gosto pessoal e o julgamento crítico, os elementos da narrativa cinematográfica, o cenário, o figurino e a maquiagem, a luz, a fotografia, a montagem e o som são debatidas. Enquanto vai analisando com olhar de lupa o que é peculiar de cada uma dessas áreas do cinema, Pablo Villaça ilustra as explicações com cenas extraídas de mais de uma centena de trechos de filmes, pertencentes a épocas e a gêneros variados.

O curso contagia não somente pelo vasto conhecimento que Pablo Villaça tem de cinema, não somente em virtude da paixão que ele tem por essa arte, mas também por uma faceta que o profissional tem e que eu não conhecia: ele é um excelente professor. É didático ao explicar, simplifica sem tornar as coisas simplórias e não tem afetação no tom de que se vale. Não bastasse, proporciona, em doses agradáveis, espontaneidade e humor.  

Durante o curso, respondendo a mensagem enviada por mim, Pablo disse que antes de ser crítico de cinema, é escritor. Sobre a crítica tal qual escrita por ele, digo: o patamar a que Pablo elevou a crítica cinematográfica faz com que ela se torne um novo gênero (que ainda não sei nomear), sem, ao mesmo tempo, deixar de ser crítica cinematográfica. Como exemplo, cito o primeiro parágrafo do texto que Pablo Villaça escreveu sobre o filme A Chegada, do diretor Denis Villeneuve:

“Há amores tão imensos que insistimos em vivê-los mesmo sabendo que a experiência resultará inevitavelmente em dor. Não há razão que explique nossa decisão de abraçá-los e o fascinante é que, mesmo que houvesse, não a ouviríamos. São amores tão fortes que parecem existir fora do tempo: não nos lembramos de como éramos antes deles e nem conseguimos nos imaginar como seríamos (ou seremos) depois”.

O sentido do parágrafo é amplificado quando já sabemos o enredo do filme; todavia, mesmo sem saber do que trata A Chegada, o trecho que separei existe por si, é belo por si, independe do filme a que se refere. Nesse sentido, é que advogo o pensamento de que a contribuição de Pablo Villaça para a crítica cinematográfica vai além dela como gênero textual (o que, em si, já é uma enorme e formidável contribuição para a cultura). Ele adentra um território que não é o da crítica, ou, para dizer de um jeito melhor, um território que não é unicamente o da crítica, que, se escrita por ele, pode ter humor, análise detalhada, aguda percepção psicológica ou lirismo em textos que primam por uma linguagem cujo estilo é de elegância rara, literária. (Vale lembrar que além de escrever sobre cinema, Pablo Villaça, em suas redes sociais, publica textos sobre política e sobre sua vida pessoal.)

A primeira vez que escutei falar do Pablo Villaça, quem o mencionou foi o Adriano, um colega de trabalho que tive e que já acompanhava o que o crítico escrevia.  Não lembro há quantos anos isso se deu; do que sei, é que desde então venho acompanhando o legado que Pablo Villaça tem produzido. Quando ele anunciou que faria uma versão online do curso Forma e Estilo Cinematográficos, eu logo me matriculei. O que houve de ruim no curso é que ele terminou. 

sábado, 18 de abril de 2020

Sobre literatura e fotografia

O NAC, Núcleo de Arte e Cultura do Unipam (Patos de Minas), enviou-me algumas perguntas relativas a meu trabalho literário e a meu trabalho fotográfico, pedindo-me que gravasse um vídeo respondendo aos questionamentos. Ei-lo.

Cinco cópias — devidamente assinadas

O burocrata seria útil se ele se esquecesse dos colegas de trabalho, se ele não obrigasse os outros a perder tempo com o que ele inventa por não ser capaz de inventar outra coisa. O burocrata é o defensor de uma linha de produção em cuja essência só há repetição de algo que não faz a menor falta para o andamento do mundo trabalhista. O universo da burocracia não aceita que, muitas vezes, a melhor maneira de fazer com que um trabalhador produza é deixá-lo em paz. 

Permanecesse o defensor da burocracia com suas inutilidades, quieto em seu canto com seus carimbos, seus formulários e suas assinaturas, não haveria problema. Só que não: o burocrata impede que o outro seja o melhor de si, o que torna o burocrata um entrave que julga estar contribuindo para o progresso, o bem-estar, a organização. O burocrata é um empecilho para o crescimento do que o outro tem de melhor, por obrigar o outro a ficar envolvido com tarefas repetitivas, inócuas, imbecis, sem sentido nem lógica. 

O burocrata é, antes de tudo, um ser que não reflete sobre o que ele poderia fazer para não infligir ao próximo um tormento. Feliz o que não tem um burocrata por perto no local de trabalho. O burocrata é torpe porque dá a seu inútil trabalho um ar de produtividade, de quem arregaça as mangas, quando na verdade é o mentor de engrenagens que atravancam o bem-estar de quem trabalha. Qualquer ambiente de trabalho seria mais produtivo sem a burocracia. Nem as frequentes e inúteis reuniões de que o mundo corporativo não abre mão são tão corrosivas quanto a burocracia. 

Só um espírito destituído de imaginação e sem senso de humor é capaz de enxergar utilidade no que é um fardo oneroso, consumidor de tempo que poderia ser usado em algo que preste. A burocracia é a sistematização do tédio e da burrice, a negação de tudo o que é engenho, inspiração, colaboração, fulgor, senso estético. Em sua sordidez, faz pose de imprescindível, quando na verdade não passa de algema disfarçada de eficácia. Os grilhões da burocracia são feitos de papel, de assinaturas, de carimbos, de refeituras de um mesmo trabalho, comprovações do que já está comprovado. O defensor da burocracia tolhe, escraviza, mutila, mata. 

segunda-feira, 6 de abril de 2020

“Grande” Brasil: Verezas

O presidente tem mais um ex-apoiador, o Carlos Vereza. Mais um para o time dos cínicos. Insisto, repito, reitero: o presidente tem de ser acusado de muita coisa, mas não pode ser acusado de estar sendo o que ele não era. Nada nele mudou desde quando ele era deputado. As circunstâncias mudaram; ele, não. Hoje, ele é mais nocivo não porque seja diverso daquele que um dia foi, mas porque tem mais poder do que tinha quando não ocupava a presidência.

Se houve alguma mudança, terá sido o recrudescimento de características que ele já deixava claras: empáfia, ignorância, desdém pela vida, elogio à violência, odes a torturadores, negação da ciência, apoio a milicianos... Não faz o menor sentido dizer-se decepcionado com o presidente, pela simples razão de que nada nele mudou. As características que mencionei são exatamente as razões pelas quais parte do eleitorado votou nele e sempre vai apoiá-lo. Vereza e malta não se dignam nem de serem genuínos. Vereza e súcia não têm o pretexto de que não sabiam que o presidente era como é. Ele mesmo já divulgava o que é muito antes de ser candidato ao cargo que hoje ocupa. Ele jamais posou de cândida ovelhinha. 

Há eleitores do presidente que o apoiam pelas razões que mencionei acima, ou seja, que o apoiam por ele defender a morte de quem tem uma visão de mundo diferente da dele (“o erro da ditadura foi não ter matado mais”) ou por ele ter desprezo pela vida do outro (“o exército não matou ninguém”). Embora eu não concorde com quem apoia ditaduras, homenageia milicianos e faz elogio da tortura, coisas que já eram sabidas antes de o presidente ser eleito, pelo menos os que são pró-morte alheia assumem que são: não ficam com essa balela de “ah, eu me decepcionei com o presidente” ou algo do tipo “eu pensei que o cargo fosse conferir a ele alguma polidez”... 

As arbitrariedades presidenciais neste cenário de covid-19 são apenas o preâmbulo de outras crueldades, desumanidades e inconsequências que estão por vir. Tudo ainda vai piorar muito — ou, levando-se em conta os que não negam que votaram no presidente não apesar de ele ser quem sempre foi, mas exatamente por ele ser quem sempre foi, tudo ainda vai melhorar muito. No time dos que creem em melhora está um Junior Durski, por exemplo, que, pelo menos, não vem com a lenga-lenga de ter suposto que a conduta do chefe do executivo seria diferente. Esperar que o presidente fosse diferente do que está sendo seria como esperar que um monte de cascalho se transformasse numa macieira — ou vice-versa. 

Não faz sentido dizer-se decepcionado com quem nada mudou. Não cabe a desculpa de que o caráter presidencial não fosse conhecido. Todo mundo já sabia do destempero, do gosto pela violência, da falta de espírito, da negação da história. Nunca houve da parte do mandatário a menor tentativa em negar esse tipo de coisa. É uma infâmia dizer-se decepcionado com o presidente. 

sábado, 4 de abril de 2020

Jejum

As classes

Diz o professor:
“A classe dos professores é desunida”.

Diz o músico:
“A classe dos músicos é desunida”.

Diz o fotógrafo:
“A classe dos fotógrafos é desunida”.

Diz o locutor:
“A classe dos locutores é desunida”.

Diz o Lívio: 
“A classe dos humanos é desunida”. 

quarta-feira, 1 de abril de 2020

O desbunde da leitura

Vou começar a leitura do curioso livro Happiness Found in Translation: a Glossary of Joy from Around the World, escrito por Tim Lomas. Cheguei à publicação após ler matéria na revista The New Yorker sobre não lembro mais que assunto.

A ideia de Lomas foi reunir palavras dos mais diversos idiomas que passassem ideias positivas, relacionadas a diversas temáticas. Tendo o livro chegado, iniciei o ritual de observá-lo, tateá-lo, cheirá-lo, folheá-lo (não necessariamente nessa ordem). Nesse deleite, deparei-me com a palavra saudade, que já consta de alguns dicionários de inglês, e com o verbo desbundar. Na explicação do sentido do verbo, escreveu o autor:

“Exceeding one’s limits.
“The liberation of shedding one’s inhibitions (e.g., in having fun).
“The pleasure of relaxing uptight self-control”.