domingo, 31 de julho de 2016

A história por trás da foto (93)





Há um tempão, era meu objetivo fotografar palha de aço, depois de se atear fogo nela. É que o efeito que há quando a palha de aço é girada enquanto pega fogo é muito legal. Para concretizar minha intenção, contei, ontem, com a ajuda do amigo Luiz Araújo, que não somente sugeriu um lugar seguro em que as imagens pudessem ser feitas (é que as faíscas que são liberadas pela palha de aço podem causar incêndios), como se predispôs a passar correndo em frente à lente, a fim de que diferentes efeitos fossem produzidos enquanto eu fotografava.

Esse tipo de foto requer longa exposição. No caso das fotos desta postagem, esse tempo foi de trinta segundos; obviamente, a câmera estava apoiada em tripé. Somente na última foto da sequência o Luiz ficou sem sair do lugar; nas demais, ele passou correndo em frente à lente enquanto eu fotografava. Para que efeitos dessa natureza fossem produzidos, o Luiz prendeu a palha de aço naquelas presilhas que usamos quando prendemos a guia na coleira dos cachorros; essa guia, por sua vez, era girada. 

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Apontamento 346

Inicialmente, vontade de amor, vontade de amar. Depois, essa vontade se materializa: surge uma pessoa. A vontade de amar é irmã da busca pela beleza. Quer-se um amor, acredita-se no belo. A pessoa amada é bela. Quem ama é belo. A beleza que é buscada em si, no outro, nas coisas. O amor é o reino da beleza no cotidiano, nas coisas materiais, nas trivialidades. Vestir as roupas, dar uma última olhada no espelho, sair. O amor é dentro de casa e fora. Dentro de quem ama e fora. Olhar para as coisas com amor é melhor. Não para as coisas, que não precisam de que as olhemos com amor. É melhor para nós, que precisamos de amar e de amor. 

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Apontamento 345

Psiquicamente, a sociedade está doente. O equilíbrio é aparente, uma fina casca que reveste o tecido social. Sob esse frágil revestimento, multidões frustradas, tristes. Uma sociedade composta de indivíduos infantilizados, fracos, que se entristecem por causa de coisas sem importâncias — se colegas da empresa realizam uma festa e o sujeito não é convidado, ele fica ofendido, às vezes até deixando de conversar com os colegas que estavam na festa.

Em cenários assim, numa tentativa pueril de se afirmar e de camuflar a fraqueza que se tem, passa-se a fazer ataque gratuito e velado contra o outro, não raro antes mesmo de se ter sofrido um ataque. As redes sociais escancaram isso. Do nada, o sujeito escreve coisas como “aqueles que me invejam vão assistir à minha vitória”, “minha capacidade é maior do que sua inveja” ou outros clichês do gênero. Há dias, numa academia, uma garota estava usando uma camiseta com os seguintes dizeres: “Que toda inveja se transforme em massa magra”. A rigor, uma análise corajosa e minuciosa acabaria por revelar que a vida de ninguém é invejável.

De antemão, a pessoa, nesse tipo de frase, apresenta as armas, as disputas, as retaliações. O outro é invariavelmente o capaz de sentir inveja, o empecilho para que objetivos sejam alcançados; se forem, é preciso dizer ao outro, de modo intempestivo e deselegante, que o outro terá de engolir, por causa da inveja a ele atribuída, a vitória alcançada. O outro é o inimigo, o obstáculo. Se o ataque é para alguém específico, se é uma indireta para determinada pessoa, imaturidade torná-la pública. Que se diga para o alvo do ataque o que os outros não precisam ler.

Não há a proposta do encontro, da sintonia, da comunhão, da partilha, do congraçamento. O que existe é o embate, a proposta belicosa, o desafio, a ofensa gratuita, o ressentimento. Há alguns dias, enquanto eu estava almoçando num restaurante, uma pessoa chega ao local; na camisa que ela usava, os dizeres “fuck you”. O sujeito sai para as ruas, entra num recinto para almoçar e está dizendo aos que passarem pelo caminho dele para eles irem se foder. Quando li o que estava escrito na camiseta dele, lamentei não estar usando uma com algum trecho do John Lennon. Na ocasião, eu me lembrei de “Mind games”, que diz: “Love is the answer”. 

"Eu quero saber"

Saborosos segundos de música pop: o “aú” em “I wanna know”, com o Alesso. 

quarta-feira, 27 de julho de 2016

O discurso de Michelle Obama

Assisti há pouco ao discurso da Michelle Obama durante a convenção nacional dos democratas. Já era minha intenção conferi-lo. Depois de ler elogioso texto de Sarah Larson, publicado na New Yorker, deixei de adiar e assisti ao discurso.

Trata-se de política, é claro, mas é incrível o quanto o discurso dela faz o obtuso Donald Trump soar mais estúpido do que o que ele já é por si. Michelle Obama acertou no tom, que passa pelo humor, pela incisividade e, como não poderia deixar de ser, pelos recentes eventos sociais nos EUA.

Logo no começo, num comentário que mistura leveza com cuidado de mãe, ela menciona o primeiro dia em que as filhas dela foram à escola depois de ela e de o marido estarem na Casa Branca. Segundo Michelle, havia utilitários pretos para levar as filhas dela ao colégio, guarda-costas armados; já dentro dos carros, as filhas encostaram os rostos contra o vidro do carro. A única coisa que ela diz ter conseguido pensar foi: “O que fizemos?”.

A partir daí, as filhas dela são o fio condutor a partir do qual Michelle Obama elenca as razões pelas quais apoia a candidatura de Hillary Clinton para presidente dos EUA. Com sobriedade, humor e contundência (“acordo todos os dias numa casa que foi construída por escravos”), Michelle provou que a arte do discurso ainda existe. 

Apontamento 344

Recentemente, quando houve a tentativa de golpe militar na Turquia, os estúdios da CNN no país foram invadidos pelos militares. Desde o 11 de setembro, deixei de ser o fã da CNN que eu era. À parte isso, se na Turquia invadiram a emissora, claro que era para que ela não divulgasse o golpe que então tentava se instalar. Por aqui, quando há golpe, parte da grande mídia não precisa ser invadida pelos golpistas. 

Apontamento 343

O problema não é a assessoria de comunicação de Temer, no que teria sido uma tentativa de popularização da imagem dele, chamar a imprensa para cobrir a ida do presidente à escola do filho dele no primeiro dia de aula do garoto. O problema é parte da imprensa ter atendido ao chamado. 

Apontamento 342

Conhecimento gera mistério. 

terça-feira, 26 de julho de 2016

A titânica "Todo mundo quer amor"

O Jesus não tem dentes no país dos banguelas, dos Titãs, é um discão. Uma das faixas geniais é “Todo mundo quer amor”. Os dois primeiros versos são líricos: “Todo mundo quer amor / Todo mundo quer amor de verdade”. Todavia, esse lirismo logo é quebrado assim que o Arnaldo Antunes começa a interpretar a letra, que não é cantada, mas, sim, declamada. E que interpretação! Além do mais, a quebra do lirismo, presente em toda a declamação, ocorre também quando há os palavrões, que, não bastassem reforçarem a universalidade da afirmação “todo mundo quer amor”, são antilíricos.

O uso do palavrão, por si, é fácil; todavia, é difícil usá-lo num contexto em que a impressão que se tem é a de que só um palavrão caberia. Alguém (não lembro quem) disse que o palavrão tem o lugar dele (assim como todas as demais palavras). Esse alguém disse que quando a gente bate o dedinho do pé numa quina, só um palavrão nos “salva”. (Essa coisa de haver a palavra certa me remeteu ao John Lennon: perguntaram para ele o motivo do desespero em “Help”. Ele respondeu dizendo que estava precisando de... socorro. Completando, alegou que quando a pessoa está se afogando, ela não diz algo do tipo “por favor, venha aqui me salvar, pois estou me afogando”.)

Em “Todo mundo quer amor”, não se fica com a sensação de que o uso dos palavrões é forçado. Ou com a sensação de que foram usados para irritar a sensibilidade de algum pudico. Combinam tanto com o que é a letra, que é difícil imaginar algo que daria certo no lugar deles. Isso, por si, já é muito, mas há mais: é uma faixa profundamente em sintonia com a poética e com o espírito dos Titãs. 

domingo, 24 de julho de 2016

À tua boca

Gosto da tua boca 
Quando ela é silêncio.
Gosto da tua boca 
quando ela dá forma a tuas palavras.
Gosto da tua boca
quando meus lábios encostam nela.
Gosto da tua boca 
quando sedenta por gozo.

Dedico à tua boca fabulosa, 
uma ode e um beijo. 
Embora breve a ode,
que seja longo, o beijo. 

Uma formiga sem qualidades

Sempre volto à questão do trabalho. Se eu não me policiar, acabo me tornando monotemático. Não que eu me culpe por isso. Mas sempre busco variações, seja por atender a um desejo interno de escrever algo com outro teor, seja na ilusão de soar eclético. Só que desta vez volto à arena trabalhista. Que o assunto não esteja cansando supostos leitores.

Nas páginas iniciais de “O homem sem qualidades”, do Robert Musil, o narrador, segundo tradução de Lya Luft, diz: “Ganhou-se em realidade, perdeu-se em sonho. Não nos deitamos mais sob a árvore, espiando o céu entre o dedo grande do pé e o dedo médio, mas trabalhamos; também não devemos nem passar fome nem sonhar demais, se quisermos ser eficientes, mas comer bifes e fazer exercício. É exatamente como se a velha humanidade ineficiente tivesse adormecido sobre um formigueiro; quando despertou a humanidade nova, as formigas tinham entrado no seu sangue, e desde então ela precisa fazer movimentos incessantes, sem conseguir se livrar desse chatíssimo ímpeto de fanatismo pelo trabalho”.

Qualquer cidade com cem mil habitantes já deixa nítido que a imagem do formigueiro, usada por Musil, cai bem para o mundo que criamos para nós. Talvez, nessa comparação, possa-se dizer que elas, as formigas, sejam mais organizadas do que nós. Sendo ou não, vistos de cima, somos, por assim dizer, formigas nos movimentando pelas cidades.

Boa parte desse movimento é causado pelo trabalho. Rendemo-nos a um furor veloz que precisa ser produtivo, que necessita de números, de estatísticas, de bater as metas do mês anterior ou do ano anterior. Joga-se sobre o indivíduo a responsabilidade por coisas que não dependem só dele. Se a venda de março foi inferior à de fevereiro, a culpa é sempre de quem não soube navegar nas “águas de março”. É mais fácil culpar alguém do que admitir que há coisas que não estão sob nosso controle.

O maior ato de rebeldia é acreditar na individualidade. Que seja luta inútil, mas é luta nobre de que não se pode desistir. Tal qual é configurado no todo, não se pode deixar que o trabalho seja nosso dono. Em maior ou menor grau, todos somos vítimas do mundo. É preciso fugir dos algozes, que são poderosos. Todos estão aí para nos impedir de sermos o que somos, ainda que não tenhamos exatidão quanto ao que somos.

Apesar dessa inexatidão, estamos muito longe de sermos o que quer de nós o mercado. Quando me refiro ao trabalho, não defendo uma horda de preguiçosos, mas uma legião de criativos. São poucos os que têm a oportunidade de trabalhar naquilo que de fato sabem fazer, em algo que não tome mais da metade de suas vidas com alguma coisa que terá embotado a criatividade. No mundo trabalhista como ele é, no geral, o que querem de nós são somente números, seja de horas a mais trabalhadas, seja de metas a serem batidas.

Nem menciono a impossibilidade de cada um fazer o que tivesse vontade de — isso é privilégio de poucos. O que sempre defendo é que não podemos ser engolidos pela sanha trabalhista. É imprescindível preservar em nós o poderio que temos de criar, não importa o pendor da criatividade. Precisamos achar um tempo para nós, para o que somos.

Volto a Musil. Ainda nas páginas iniciais de “O homem sem qualidades”, e ainda na tradução de Lya Luft, lê-se: “E como a posse de qualidades pressupõe certa alegria por serem reais, podemos entrever como uma pessoa que não tenha senso de realidade nem em relação a ela própria pode sentir-se de repente um homem sem qualidades”. O trabalho, na maior parte dos casos, impede que tenhamos acesso a nossas maiores riquezas. Privados da realidade que somos em essência, tornamo-nos formigas sem qualidades. 

"A lenda de Tarzan"

A vida real não tem Tarzans que intercedam a favor dos colonizados. Menciono isso porque a relação do colonizado com o colonizador é um dos temas abordados por “A lenda de Tarzan” (2016), em cartaz nos cinemas. A direção é de David Yates; o roteiro ficou por conta de Adam Cozad e de Craig Brewer.

O embate entre colonizados e colonizador não é novo. Foi assim na hoje chamada América Latina, é assim no Congo que serve de cenário para “A lenda de Tarzan”. Mal tendo chegado à América, os europeus quiseram saber se havia ouro; no filme, a busca é por diamantes, que o colonizador sabe existirem.

A partir daí, é inevitável que também esteja presente na produção o embate entre o que se convencionou considerar civilizado e o que é tido por selvagem. O europeu, ao invadir, considera-se superior precisamente por se ver como o civilizado na relação que tem com os nativos, que são vítimas do poderio do invasor.

No filme de David Yates, há o mote de que a natureza é superior à civilização. Assim, é claro, o homem... natural, que literalmente dialoga com a natureza, é eticamente superior ao citadino, a despeito da tecnologia e da etiqueta inventadas pela civilização.

Alexander Skarsgård faz um ensimesmado Tarzan; Margot Robbie interpreta uma topetuda Jane. Samuel L. Jackson está na pele de George Washington Williams, que, fazendo um mea-culpa, está do lado de Tarzan. Christoph Waltz é, mais uma vez, o vilão, que se chama Leon Rom.

Rom tem um rosário que sempre carrega consigo. Há um cinismo amargo nisso, pois o rosário que ele porta é usado como arma (sic). Esse rosário, precisamente pelo que tem de signo religioso, acaba remetendo à prática de alguns colonizadores religiosos que, em nome da catequização ou da salvação da alma dos chamados selvagens, acabavam, sim, levando maus tratos e morte.

Deixando de lado essas minhas digressões, é preciso lembrar que “A lenda de Tarzan” é, antes de tudo, um filme de aventura, é entretenimento. É mais uma releitura da criação de Edgar Rice Burroughs, a qual, desde o começo do século XX, tem seduzido a imaginação de leitores e de espectadores. 

Manga

O Artur da Távola tem uma crônica cujo título é “Manga, pelo amor de Deus”. De minha parte, já comentei anteriormente que a manga está muito longe de estar dentre as frutas de que gosto. A verdade é que não gosto de manga. Isso não quer dizer que eu não as ache bonitas. Tanto é assim que ao me deparar com a que está nesta postagem, a única saída foi tirar a foto. 

Cortesia que não houve


Há alguns dias, tentei achar na internet um texto que publiquei há muito, muito tempo num “site” dedicado à língua inglesa. Digitando no Google o título do texto e meu nome, não achei o que escrevi. Suponho que a página em que o escrito foi publicado não mais exista.

O curioso é que acabei chegando a um endereço no Pinterest em que publicaram uma foto de minha autoria sem minha autorização. No perfil, escreveram: “Photo courtesy of Lívio Soares de Medeiros”. Contudo, nunca fui consultado quanto ao uso da imagem. Nos “prints” que estão nesta postagem, tapei com tarja vermelha os nomes dos que divulgaram a foto na rede social.

Sei que a internet é assim: valem-se do trabalho alheio sem consulta do autor ou autores do trabalho. A primeira pessoa a se deparar com alguma foto minha usada sem minha autorização foi o amigo Rusimário Bernardes, que, há muito tempo, me enviou “link” em que havia uma foto que tirei de uma antiga máquina de datilografia. Também não fui consultado quanto ao uso dessa foto.

No dia em que procurei pelo texto que eu havia publicado na página voltada para a língua inglesa, eu havia usado o celular. Nessa ocasião, eu havia acessado dois “links” no Pinterest em que havia a mesma foto minha (a que está no “print” de tela desta postagem). Creio que um usuário copiou ou compartilhou a imagem do outro (não sei como funciona o Pinterest, de modo que não sei se há mesmo a possibilidade de compartilhamento).

De qualquer modo, a postagem a que cheguei no Pinterest dá uma medida de como as pessoas se sentem à vontade para compartilhar o trabalho de alguém sem sequer consultar o autor. Fosse eu agir estritamente de acordo com leis de direito autoral, eu poderia, no mínimo, exigir que a foto fosse retirada do Pinterest. Não farei isso, mas tentarei entrar em contato com quem postou a imagem. Mesmo aqui em Patos, fotos minhas já foram divulgadas em “sites” de notícias sem os créditos. Não encrenquei contra eles, mas pode ser que um dia vão se deparar com quem encrenque... 

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Em corpo

Desejo teu corpo
e o que ele gera:
tuas palavras, 
tua voz,
tua inteligência, 
tua chegada, 
teus versos,
tua comida, 
teu otimismo.

Teu corpo gera amor.
Não morre o meu
enquanto corpo eu tiver. 

terça-feira, 19 de julho de 2016

Fotopoema 395

“Quanto mais meus óio chora, mais o mar quebra na praia”

Não é fácil criar música que tenha a intenção de manter tradições populares. Empresários não investem nesses trabalhos, as rádios não os executam e boa parte da nova geração, que pouco se vale do rádio para escutar música, em suas redes sociais ou dispositivos eletrônicos, tem acompanhado o que anda sendo feito no que a mídia convencionou chamar de sertanejo universitário.

Num contexto assim, é louvável que Luiz Salgado invista numa vertente que, antes de ser música, tem um papel social importante, que é o de não abrir mão de tradições. Elas compõem aquilo de que somos feitos. Negá-las é negligenciar um manancial poderoso e poético. Conhecer aquilo que é nossa substância não implica fechar os olhos para o que vem de fora, para o novo, para o outro.

“Quanto mais meus óio chora, mais o mar quebra na praia” é o mais recente (o quinto) CD de Luiz Salgado; o trabalho tem quinze faixas. Não há corte radical no CD se comparado aos demais já lançados por Luiz Salgado. Todavia, de modo mais intenso, o artista se mostra capaz de promover uma gostosa mistura entre elementos caipiras e sonoridades atuais.

Estão presentes no CD a religiosidade interiorana, o cerrado, o canto triste do sertanejo, a folia de reis, a temática social, a viola. Um dos grandes méritos de “Quanto mais meus óio chora, mais o mar quebra na praia” é ter conseguido fazer com que esses elementos não soem datados (de fato, não são), mas evidenciar que têm muito a dizer sobre o que somos.

Em contrapartida, os robustos arranjos imprimem nas canções uma profunda sintonia com o que há de mais, digamos, urbano, contemporâneo. O trabalho é tradição; ao mesmo tempo, soa atual. Há mistura de gêneros, de influências, sem que o todo pareça saturado. Tradição sem ressentimento, modernidade sem concessões mercadológicas.

Nessa amálgama feita do que é antigo e do que é novo, o trabalho tem viola caipira e solo de guitarra. É um CD lírico, um cântico às tradições que abraça com bela alma musical os recursos atuais. Luiz Salgado está tradicional como sempre, atualizado como nunca. 

Invenção de mim

Ao sabor do vento,
que haja esta brisa.
As demais coisas,
que as tempere eu.
O rio sabe que não
deve correr por aí
subindo montanha.
Que eu flua tal rio
nesse meu destino
em que me invento. 

Páginas de amor

Há que se ler “A dupla chama: amor e erotismo”, do Octavio Paz. Num texto de rara elegância, o escritor discorre sobre sexo, erotismo e amor, analisando como a humanidade os tem exercido ao longo dos séculos, tanto no ocidente quanto no oriente. Tratado do amor que recebeu tom poético, “A dupla chama: amor e erotismo” é de leitura saborosa.

O livro é um ensaio de rara lucidez lírica. Tem o rigor do gênero, sem todavia se entregar a uma linguagem emproada, o que não é raro nesse tipo de texto. Paz traça uma linha histórica que evidencia como a humanidade tem lidado com o amor e suas manifestações, desde os gregos clássicos até a modernidade. Nesse passeio temporal, a antiguidade greco-latina e Molly Bloom podem conviver numa mesma página, numa escrita que tem critério e graciosidade.

História, antropologia, literatura, psicanálise, teologia e filosofia compõem o arcabouço de que Octavio Paz se vale, diferenciando o sentimento amoroso da ideia do amor que é adotada por uma sociedade e uma época. O livro alega que o sentimento amoroso tem existido em todos os tempos e em todos os lugares. O que varia é o modo como determinada sociedade, em determinado contexto, vive esse sentimento, produzindo, a partir daí, uma ética e uma estética amorosa que é modificada ao longo do tempo. 

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Alice e Júlia

Esta postagem vai para meus amigos Dell Luiz e Maysa. As filhas deles, Alice (de touca vermelha) e Júlia, nasceram hoje pela manhã. 

Grenouille ou a incapacidade de sentir

Há ecos naturalistas (refiro-me ao Naturalismo do século XIX) em O perfume, do Patrick Süskind. Além disso, há o fantástico, no sentido sobrenatural do termo. Nessa linha de pensamento, a criação de Süskind é um romance fantástico-naturalista.

Já escrevi que Jean-Baptiste Grenouille, personagem central do livro, é o mais recente grande monstro da literatura. Pode figurar no mesmo panteão em que esteja, digamos, um conde Drácula. Isso, por si, já é uma grande conquista para O perfume.

Admirável também em Süskind são a elegância e o refinamento de seu estilo ao contar a história de uma criatura incapaz de sentir algo que lembre, ainda que de longe, entendimento do outro ou compaixão. Drácula é capaz, a seu modo, de expressar sentimento. Grenouille, não.

Ele é uma coisa imprecisa. Sim, coisa. Acima, usei a palavra “monstro” para me referir à criação de Süskind. Todavia, é difícil definir Grenouille, dar um nome a ele, adjetivá-lo. Ele é um vazio, um vácuo, a maior expressão da incapacidade de sentir algo que pareça bom. Ele é a indiferença pelo outro.

Desconheço maior ausência de sentimento do que a que há no personagem. Sua vileza tem elementos que bem conhecemos: ele engana, manipula, mata... Contudo, Grenouille é a impossibilidade da redenção, da compreensão do que é humano.

Ele é o egoísmo exacerbado, levado a consequências hiperbólicas. Para ele, não há diferença entre lidar com o corpo de alguém que acabou de matar e mexer num pedaço de couro velho. O dom olfativo de Grenouille não é usado como oferta, mas como coroação de si mesmo. Ele precisa do outro, não num sentido em que pudesse haver uma nota de bondade. O outro, para o perfumista, é material para sua alquimia, um produto químico.

O perfume pode ser lido como poderosa alegoria da esterilidade que o egoísmo pode produzir. Os não humanos de Philip K. Dick ou a criatura de Victor Frankenstein têm fraquezas que nos são familiares. O personagem de Süskind é de outra espécie, um não humano que, ao se glorificar, extingue-se. Grenouille é a absoluta incapacidade de amar. 

Narradores felizes

Há narradores felizes. O narrador de “O amor nos tempos do cólera” é feliz; Riobaldo, a despeito do que conta, é um dos narradores mais felizes que há. A persona literária de Borges é muito feliz. Essa persona e Riobaldo têm em comum o encantamento pelo mundo, pela metafísica, pela cogitação. Otto Lara Resende, em suas crônicas, foi outro que criou um narrador muito feliz. 

domingo, 17 de julho de 2016

Ao luar

Sempre que me acho lúcido,
desejo cometer versos.
A Lua, lá no alto agora, 
jogando luz sobre
os cantos da noite,
clareia minhas ideias,
fazendo de mim e de ti
astros iluminados. 

Fragmento

Vontade de ficar perto, de ir ficando. Ficando mais para depois ficar mais, adiando despedida, chegando mais perto nossos corpos que têm vontade de ficar mais e ir ficando mais do que podem ficar. Nem nos apartamos direito. Saudade de ficar perto de novo. Então eu rendo louvores. Escrevo. Que tua alma fique cheirosa quando ler. É que esse corpo teu me enlouquece. Essa tua boca... Não sei se olho para, se beijo. Tento não olhar demais, mas teu corpo todo é ímã que puxa meus olhos, meu corpo. Se caminho para onde estás, faz sentido. O resto é vagar. 

"Das 5h às 7h"

Há muito de previsível em “Encontro marcado” (2014), que tem roteiro e direção de Victor Levin. Essa previsibilidade, que está durante o filme e também em seu desfecho, não faz com que ele seja ruim. O enredo é simples: Brian, aspirante a escritor, vinte e quatro anos, envolve-se com Arielle, nove anos mais velha do que ele. Ela é casada e mãe de duas crianças; ele é solteiro, não tem filhos.

O jovem escritor é interpretado por Anton Yelchin, que morreu recentemente; quem está no papel da mulher casada é Bérénice Marlohe. Ela vive um casamento aberto: tanto ela quanto o marido podem ter amantes. Só há uma regra: os encontros extraconjugais devem ser realizados entre 17h e 19h. O título original do filme é “5 to 7” (Das 5h às 7h).

Sim, Brian e Arielle se apaixonam. Isso implica a quebra de “contrato” não só entre eles, mas também deles com Valery (interpretado por Lambert Wilson), que é marido dela. Na relação de Valery com Arielle, não somente sabem que o outro tem amante, mas também fazem com que haja convivência dos amantes com a família deles.

O complicador do enredo é justamente a paixão entre Brian e Arielle. Ela, pelo menos aparentemente, lida melhor com o sentimento do que ele, que, não resistindo, propõe a ela que abra mão do casamento. A solução para o emaranhamento, embora previsível, é de tom acertado, adulto. À parte isso, “Encontro marcado” tem a beleza interminável de Bérénice Marlohe. 

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Fotopoema 394

Questionário

Em quem você pensa quando você se toca?
De quem é o rosto que procura na multidão?
Com quem queria estar agora?
Ao lado de quem quer estar durante a gargalhada?
Com quem sente vontade de compartilhar o texto?
Com quem sonha?
De quem tem saudade?
Com quem devaneia?
Para quem quer contar sobre o passeio?
Com quem quase entra em contato todos os dias?

Você responderia às perguntas acima com um só nome? 

Na roça

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Corpo literário

Que eu escreva com cuidado e com força, 
como se tua pele fosse a superfície de minhas palavras. 
Que meu texto tenha delicadeza e vigor, 
como se estivesse eu amando teu corpo. 

"Imitação de Cristo"

A leitura precisa ser feita com espírito aberto, sensato, crítico. Ser contra o nazismo não deveria impedir uma pessoa de ler “Minha luta”, do Hitler; pode-se gostar de Neruda sem ser comunista, ou mesmo apreciar Llosa sem ser de direita. Não ser cristão não deveria impedir alguém de ler “Imitação de Cristo”, de Tomás de Kempis (1380-1471).

A edição que tenho foi publicada pela Martin Claret. A tradução é de Luiz Fernando Guimarães. O livro de Kempis, escrito de modo simples, direto, já no título deixa claro o que uma pessoa dever fazer para alcançar plenitude depois da morte. Para Kempis, obviamente, Cristo é o modelo, o que dever ser seguido ou... imitado para que tenhamos acesso ao paraíso.

De cunho prático, “Imitação de Cristo”, em essência, é um tratado contra as ilusões que são cultivadas pelo homem enquanto não chega a hora da morte. Ao postular que as almejadas glórias sejam vaidade, o livro reverbera o Eclesiastes, que diz: “Então examinei todas as obras de minhas mãos e o trabalho que me custou para realizá-las, e eis que tudo era vaidade e correr atrás do vento, e nada havia de proveitoso debaixo do sol”.

Poder-se-ia alegar que Kempis está enganado ao postular a existência de vida eterna após a morte, que para se evitar a danação, uma vez terminada a vida terrena, deve-se seguir o que Cristo pregou. Mesmo assim, seu livro permite uma leitura desvinculada de questões religiosas, exatamente por ter um caráter sumamente prático; o ponto forte de “Imitação de Cristo” não é afirmar a salvação dos bons, mas, sim, oferecer soluções práticas para a vida que levamos aqui na Terra.

Não faço aqui um julgamento irresponsável, interpretando a bel-prazer o que Kempis escreveu ou desvinculando o livro de seu contexto. “Imitação de Cristo” é um livro carregado de ideologia católica. O que o torna universal, é claro, não é o que ele tem de religiosidade: é o que ele recomenda para o dia a dia; o objetivo de Kempis é ofertar uma espécie de guia para a salvação, mas o caráter prático da obra faz com que “Imitação de Cristo” possa ser praticado, por exemplo, por um ateu ou um budista.

Ao propor humildade, falta de ilusão quanto ao que somos e desapego com relação a coisas materiais, Kempis advoga a favor das ações. Não é preciso ser adepto de nenhuma religião para se constatar a sensatez de trechos como “devemos ler livros simples e devotos com a mesma disposição que lemos os eruditos e profundos. Não devemos ser influenciados pela autoridade do escritor, seja ele um grande astro literário ou não, e sim pelo amor à verdade simples. Não devemos perguntar quem está falando, mas prestar atenção ao que é dito”.

Naturalmente, a prédica de Kempis vem acompanhada de catolicismo. Num trecho, escreve: “Deveríamos apreciar bastante paz se não nos preocupássemos com o que os outros fazem e dizem, pois tais coisas não nos dizem respeito. Como pode um homem que se ocupa com assuntos que não são seus, que procura distrações fora de si e que pouco se recolhe ao seu eu interior, viver em paz?”. A citação, que não precisa estar ligada a nenhum dogma para ser vivenciada, vem, por sua vez, acompanhada do seguinte trecho:

“Abençoados sejam os simples de coração, pois eles terão abundância de paz.

“Por que alguns santos se dedicavam de forma tão perfeita e determinada à contemplação? Porque tentaram refrear completamente em si mesmos todos os desejos terrenos, assim foram capazes de se ligar a Deus com todo o coração e concentrar-se livremente em seus pensamentos mais íntimos”.

Ainda que o catolicismo de Kempis possa, de antemão, “afugentar” muitos, “Imitação de Cristo” é atemporal não pelo viés religioso que tem, mas por seus conselhos e sugestões terem um viés que nos seja útil para o cotidiano. Tanto é assim que é difícil supor algo mais atual do que “diferenças de opinião muitas vezes dividem amigos e conhecidos, mesmo entre religiosos e devotos”. 

No meio do caminho...

"A terceira margem do rio"

terça-feira, 12 de julho de 2016

Convite

Vou participar da 24ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Acabei de receber confirmação da Chiado Editora de que estarei no evento no dia 30 de agosto, das 12h às 12h50, quando haverá sessão de autógrafos do livro Dislexias, que foi lançado pela Chiado neste ano. 

segunda-feira, 11 de julho de 2016

"Beleza americana"

Ninguém é o que parece ser. Parece-me que esse pensamento define a essência de “Beleza americana” (1999), do diretor Sam Mendes; Alan Ball é o roteirista. Quando o filme foi lançado, antes mesmo de o assistir, era fácil nutrir a expectativa de que seria um filmão, pois um título assim só poderia ter uma ironia amarga.

Na primeira vez em que o conferi, não me ocorreu o quanto a cor vermelha está presente no filme, seja num buquê, num vestido, numa porta; essa cor e tudo o que ela possa simbolizar. O tom de vermelho em “Beleza americana” é vivo, escuro, fazendo lembrar a cor de alguns vinhos ou a do sangue. Toda essa vivacidade contrasta com o tom desbotado das vidas dos personagens.

Eles são tão miseráveis que quase sentimos pena deles. São existências monocórdias e emperradas buscando algo que não seja fingimento social. Ninguém é santo; ninguém é diabo. Pode-se considerá-los desequilibrados, mas há neles nuances e sutilezas que não os fazem cair em maniqueísmos fáceis e reducionistas. São pessoas “somente” tentando ser felizes, por mais elusivo que o conceito de felicidade possa parecer. 

sábado, 9 de julho de 2016

Brincando com fogo

Quando ministro curso de fotografia, sempre digo que água e fogo são grandes assuntos enquanto se fotografa. Onde há água ou fogo, que se aguce o olhar.







Apontamento 341

Não faltam grilhões: o trabalho não desejado, o Estado, as religiões, as ideologias. Somos todos barrados, limitados, impedidos; estamos cercados. Em meio a sistemas, o corpo de cada um. O corpo e a capacidade de amar que pulsa sob a pele. Em maior ou menor grau, somos todos adestrados. Ainda assim, subjaz em cada um o poder e a vontade do corpo.

Um dos desejos do corpo é a vontade de amar. Vontade que desestabiliza sistemas, pessoas — se o indivíduo não souber lidar com a energia que seu corpo tem. O corpo é selvagem, não quer saber de regras. Felizes os que sabem escutar seus apelos, os que não são arruinados pelos mecanismos que insistem em domar, canalizar para atividades laborais ou sublimar, seja como for, o que temos de energia.

Num mundo em que somos tão cerceados, vigiados e esquadrinhados, muitas pessoas nunca ficam sabendo que são o amor em movimento, em potencial, em latência. Amor: sexo, inteligência, delicadeza, confiança, arte, cumplicidade, força. O amor é uma possibilidade de se tentar alguma libertação. O corpo é talhado para o amor; o amor quer um corpo; este quer amar. 

Livre

Haicai 48

Manhã, melodia.
Buscar cedo o
Sol de todo dia. 

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Chegada

Se há motivo para que
você tenha vindo, não sei.
Você veio, você chegou.
Tendo chegado,
me causou amor.

Penso em você
em tudo o que é dia,
em tudo o que é noite.
No que é dia
e no que é noite,
existem 
chuva,
montanha,
livro,
ave,
palavra,
cerrado.

No que dura o dia
e no que dura a noite,
sou durante.
Enquanto há luz,
enquanto há breu,
que eu entregue para você
o que em mim é amor. 

Enfeites juninos

Apontamento 340

É muito comum as pessoas fazerem menção à pegada que o outro tem. “Pegada” é uma dessas palavras imprecisas que sabemos o que é quando estamos com quem a tem. Nessa imprecisão, há algo de literalmente palpável quando as pessoas, cheias de... pegada, louvam o ato erótico.

A pegada não está ligada só a questões do corpo. Claro que ela é dependente dele, mas, ao mesmo tempo, tanto maior ela é quanto mais ela possa contar com a imaginação ou com a inteligência. Precisamente por não depender só do corpo, há um convite e uma vontade que vêm daquilo que em nós e no outro não é só corporal.

Nessa mistura cujos elementos não sabemos precisar, há corpo, inteligência, imaginação, senso artístico, modos de encarar o mundo. No encontro dos corpos que vão se unindo no desejo de possuir o que é do outro e de dar ao outro o que se é, aquilo que não é palpável vem à tona, louco para desaguar na pele e na alma do outro. Um gozo que é feito de corpo, de imaginação, de inteligência, de sons, de tatos, de fogos. 

Fogo

Ontem, eu estava indo para o trabalho quando me deparei com este fogo às margens da BR-365. Mesmo sem câmera fotográfica, tive vontade de registrar a cena. O jeito foi me valer do celular. 

Apontamento 339

Não sei se é verdadeira, a história de Demóstenes com os seixos na boca, bem como não sei se os fonoaudiólogos aprovam o que o orador grego teria feito. Isso pouco importa. Há histórias que valem não pela literalidade, mas pelo que têm de alegoria ou de símbolo. 

quarta-feira, 6 de julho de 2016

Você na saudade

Quando a memória tem afeto: saudade.
Quando a memória tem gosto: saudade.
Quando a memória tem cheiro: saudade.
Quando a memória tem timbre: saudade.
Quando a saudade tem você: amor. 

terça-feira, 5 de julho de 2016

Dando bandeira







Como se fosse um presente

Nuvens migram para
perto do horizonte,
onde são tingidas
de tom roseado
pelo Sol que está
quase nascendo.

Todo esse espetáculo
não é para mim,
embora eu o contemple.
Sem desejar,
é como se o dia
me desejasse
um bom dia. 

domingo, 3 de julho de 2016

Apontamento 338

Não descreio da existência da inspiração. O que digo, é que o escritor profissional não deve contar com ela para escrever. Se o momento é inspirado, que haja por parte de quem escreve a capacidade de transformar esse elã em palavras que lhe agradem. Na ausência da inspiração, que o escritor produza, pois o trabalho de escrever é um trabalho como qualquer outro.

O Romantismo recrudesceu o mito do poeta inspirado que, benfeito, recebe das musas a graça da palavra. Uma concepção assim tem um apelo muito sedutor no imaginário das pessoas, que gostam de supor a criação artística como que necessariamente atrelada à inspiração, quando, a bem da verdade, é algo mais ligado a trabalho mental, a atitude e a disciplina. 

sábado, 2 de julho de 2016

"Bom dia, Ramón"

Ramón (Kristyan Ferrer) é um jovem mexicano que já tentara atravessar a fronteira do México para os EUA por quatro vezes; falha na quinta. É quando um amigo menciona uma tia que mora na Alemanha, para onde Ramón vai. Tendo chegado, não consegue contato com a tia do amigo. Sem dinheiro, só com a roupa do corpo e sem falar nada de alemão, Ramón está perdido numa cidade do interior da Alemanha, passando frio e fome. A partir desse quadro, o diretor e roteirista de “Bom dia, Ramón (Guten Tag, Ramón, 2013), Jorge Ramírez-Suárez, constrói uma história delicada e poética, temperada com um humor simples e cativante.

A vida de Ramón começa a melhorar quando ele tem contato com Ruth (Ingeborg Schöner), mulher gentil e solitária (ela tem como companhia somente os vizinhos do lugar em que vive) que se oferece para ajudá-lo, proporcionando a ele a possibilidade de ganhar algum dinheiro e dando a ele abrigo no porão do apartamento em que ela vive. Em pouco tempo, Ruth apresenta Ramón aos demais moradores do prédio, que abriga velhos solitários.

Devido a seus bons modos e a ser muito solícito, o jovem mexicano vai se tornando amigo dos moradores do prédio; a exceção é Schneider (Karl Friedrich), que acaba denunciando a situação ilegal de Ramón na Alemanha. A solução para o imbróglio pode não convencer, mas isso não estraga o filme, que é permeado de ternura.

Um dos pontos altos é quando Ruth convida Ramón para jantar na casa dela. Ele nada domina do alemão nem ela domina nada do espanhol. Ainda assim, os dois mantêm um “diálogo”. Ela diz a ele o que foi o passado dela; ele diz a ela a saga por que passou até estar junto a ela. Mesmo sem que nenhum entenda nada do que o outro esteja falando, estabelece-se uma curiosa sintonia entre os dois. É uma cena bonita.

“Bom dia, Ramón”, em sua simplicidade, é retrato do que pode haver quando se está disposto a saber quem é o outro. Ruth e Ramón pertencem a culturas bem diferentes uma da outra; ele é jovem, ela é velha. A despeito disso, a película destaca o que a ausência de preconceitos pode gerar no encontro com o outro. Nesse sentido, paira em “Bom dia, Ramón” um inspirador tom whitmaniano. Em tempos tão migratórios, mas, ao mesmo tempo, tão intolerantes e preconceituosos, o filme, em vez de denunciar as mazelas que o preconceito cria, evidencia a beleza da alteridade, do reconhecimento do outro e do respeito por ele. 

Sonho e palavra

Estando eu de olhos abertos,
tu és o sonho que eu tenho.
Estando eu de olhos fechados,
tu és o sonho que eu tenho.
Mais um dia, mais um sonho.
Mais uma noite, mais um sonho.
Tão real quanto o sonho, o poema. 

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Do fundo do cérebro 2

Em texto de 1987, Mario Vargas Llosa escreve sobre “Lolita”, do Nabokov. O último parágrafo-frase do texto é “sí, cumplidos los treinta, Dolores Haze, Dolly, Lo, Lo-li-ta, sigue fresca, equívoca, prohibida, tentadora, humedeciendo los labios y acelerando el pecho de los caballeros que, como Humbert Humbert, aman con la cabeza y sueñan con el corazón”.

No dia vinte de março deste ano, publiquei postagem em que mencionei o que uma aluna dissera certa vez em sala de aula; segundo ela, a gente ama é do fundo do cérebro. A estudante me disse na ocasião de quem ouvira o comentário, mas não lembro quem possa ter sido.

À parte isso, o Llosa já havia usado a expressão “aman con la cabeza” na segunda metade da década de 80. Não se trata aqui de buscar a gênese desse pensamento ou dessa expressão. A questão é que a ideia de que se ama com a cabeça é atraente demais. Penso que voltarei ao tema. 

A invasão

Surge, na linha reta do horizonte, 
o não imaginado por aqueles que, 
em terra, observam o que traz o mar. 
O não convocado flutua sobre águas. 
Agiganta-se o olhar nu do contemplador.
O não concebido deixa as águas 
e pisa solo firme, doce, pródigo.
Vem do mar azul o buscador, que já 
embarcara tingindo d’ouro seu destino. 
A ele chegando, chama-o de paraíso.
Todavia, bafeja nele ares infernais. 
Deixa de ser jardim, o éden invadido.